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24 de março de 2013

Pink Floyd na Lua







As pessoas não sabem, mas fazer parte de uma
grande banda de rock é como estar em uma jaula.

–– Roger Waters.  




Uma unanimidade: trata-se de um dos discos mais estranhos, belos e cultuados do século 20. A alquimia entre beleza e estranhamento começa na capa, com aquele fundo preto e o facho de luz que atravessa um prisma em formato de triângulo, tornando-se arco-íris, para prosseguir nas melodias – hipnóticas, psicodélicas, sofisticadas, em letras sobre a vida cotidiana, o amor, as perdas, tristeza, ambição, dinheiro, demência, medo de envelhecer e, principalmente, o valor da amizade.

Em 24 de março de 1973, foi lançado aquele que muitos consideram o melhor álbum de uma lenda no panteão do rock e da cultura pop chamada Pink Floyd – um disco que se mantém há décadas, desde o lançamento, entre os mais vendidos da história, primeiro no formato LP e agora em CD e arquivos digitais. 'The dark side of the Moon' merece ser definido como 'emblemático' – palavra que muitos usam, nem sempre com propriedade. Emblemático e obra-prima – com novidades musicais e técnicas que seriam rapidamente incorporadas pela maioria de outras bandas e outros artistas que viriam depois, todas em referência explícita ao guitarrista e vocalista Syd Barrett (1946–2006), mentor do grupo, criador das ideias musicais e estilísticas, autor do nome da banda e de todas as canções dos primeiros discos.

Barrett deixou o Pink Floyd em 1968 – mas os integrantes sempre afirmaram que, mesmo ausente, ele permaneceu como a mais forte influência na concepção e nos arranjos dos discos lançados por Roger Waters (compositor, baixista e vocalista), Nick Mason (compositor e baterista) e Richard Wright (compositor e tecladista), que desenvolveram arranjos e adaptações para as principais ideias sobre música e estilo inventadas por Barrett desde que os quatro eram estudantes em Cambridge, em meados da década de 1960.










 

 


Formação original do Pink Floyd 
no dia da comemoração da assinatura
do contrato com a gravadora EMI para o
lançamento do primeiro álbum da banda
e na primeira foto promocional em estúdio.

Nas imagens que registram a comemoração
(acima e abaixo), a formação original com
Roger Waters, Nick Mason, Syd Barrett
 e Richard Wright em Londres, no início de
 maio de 1967, época dos primeiros shows
da banda com o nome Pink Floyd.
No alto, fotografia e arte para celebrar
o 40º aniversário do lançamento de
The dark side of the Moon:
o designer Storm Thorgerson, criador
da imagem original do prisma da capa do
álbum de 1973, criou 40 variações que
estão disponíveis para download no
site oficial do Pink Floyd
















O  nome do grupo, abreviação de The Pink Floyd Sound, foi criado por Barrett em homenagem aos músicos de blues Pink Anderson e Floyd Council. Os amigos de escola começaram a ensaiar juntos em 1965 e, no ano seguinte, contaram com um lance de sorte logo na estreia do nome Pink Floyd: o cineasta Michelangelo Antonioni assistiu a um dos primeiros shows do grupo, em Londres, num intervalo das filmagens de outra obra-prima, “Blow Up”, e convidou os quatro para compor a trilha sonora de “Zabriskie Point”, seu próximo filme.



De 'Blow Up' a 'Zabriskie Point'



Com o aval de Antonioni destacado na imprensa e o sucesso de “Blow Up”, o Pink Floyd lança as primeiras canções ('Arnold Layne' e 'See Emily Play') e se torna o favorito do Underground. Quando surgiu o primeiro álbum, em 1967, 'The piper at the gates of dawn', a plateia já disputava ingressos para seus shows em casas que, por conta da banda, se tornariam lendárias – entre elas, The Roundhouse, Bar-B-Que, The Marquee Club, UFO Club.
 








Pink Floyd na Lua: no alto, a banda
 no camarim, na última apresentação com
Syd Barrett, em janeiro de 1968, no palco
do Hastings Piers, Inglaterra, e na fotografia
escolhida para a capa de Ummagumma,
com David Gilmour (em primeiro plano)
como mais um integrante oficial da banda.

Abaixo, o cartaz original para a turnê no
Japão, em 1972; Waters, Mason, Wright
Syd Barrett fotografados em 1967
no Hyde Park, em Londres, cenário
do filme Blow Up, de Michelangelo
Antonioni; a formação original da banda
em agosto de 1968, após a saída definitiva
de Syd Barrett (na foto em rosa, a partir da
esquerda, Nick Mason, David Gilmour,
Richard Wright e Roger Waters) – e uma
seleção das versões criadas por
Storm Thorgerson para a capa original
de The dark side of the Moon






pink-floyd-dark-side-of-the-moon-cover-art-fine-pointillism






Depois do primeiro álbum do Pink Floyd, viriam outros clássicos imbatíveis da era do rock, todos dedicados a Barrett e com letras e canções criados a partir de suas ideias originais: 'A saucerful of secrets' (1968), 'More' (1969), 'Ummagumma' (1969), 'Atom heart mother' (1970), 'Meddle' (1971), 'Obscured by clouds' (1972) e, finalmente, 'The dark side of the Moon' (1973).

A trajetória do Pink Floyd e as reverências ao talento inaugural de Barrett ainda incluiriam 'Wish you were here' (1975), 'Animals' (1977), 'The Wall' (1979). Há ainda os singles, as participações em trilhas sonoras de filmes, as coletâneas, os registros de shows ao vivo e um concerto impressionante, “Live at Pompeii”, transformado em documentário que chegou aos cinemas em 1972, com a banda tocando seis longas composições no Piazza Anfiteatro, nas ruínas de Pompeia, na Itália, dirigido por Adrian Maben e gravado em 1971 sem ninguém na platéia. 














 

David Gilmour, que havia sido professor de guitarra de Barrett, chegou depois dele ao Pink Floyd – a princípio para atuar como guitarrista e backing vocal, mas também passou a protagonizar o papel de 'pomo da discórdia' em todas as gravações de estúdio e nas turnês, em conflitos que terminaram por levar ao fim da banda. Wright deixou o grupo em 1979 e Waters, que assumiu o posto de líder depois da saída de Barrett, declarou em 1985 o fim do Pink Floyd. Mas a história teria ainda um triste capítulo: inconformado com o fim da banda, Gilmour promoveu uma longa e intensa batalha na Justiça para continuar usando o nome e o repertório do Pink Floyd. 



Processos e reprises diluídas



Por fim, David Gilmour acabou ganhando a causa, com um arsenal de liminares e advogados. Em seguida, montou uma nova banda (com participação ocasional de Mason e Wright) e lançou dois álbuns usando o nome Pink Floyd, com reprises diluídas e previsíveis dos grandes sucessos da banda – "A momentary lapse of reason” (1987) e “The division bell” (1994). A maioria dos críticos e dos fãs, entretanto, preferem considerar discos e shows de Gilmour como trabalho solo, da mesma forma que muitos consideram “The final cut” (1983) um trabalho solo de Roger Waters, mesmo que ele seja na temática e na técnica um disco do Pink Floyd e tenha contado com participação de todos os músicos da banda original, à exceção de Richard Wright. 

 




.








Pink Floyd na Lua: no alto, um inflável gigante
chega ao Central Park, em Nova York, para o
cenário do show Animals, do Pink Floyd, em
maio de 1977. Acima, o reencontro do Pink Floyd
no Hyde Park: David Gilmour, Roger Waters,
Nick Mason e Richard Wright no palco para o
show em Londres, em 2005, no concerto beneficente
Live 8”. Abaixo, David Gilmour, Nick Mason,
Roger Waters e Richard Wright no deserto de
Zabriskie Point, na Califórnia, cenário do
filme de 1970 de Michelangelo Antonioni,
fotografados em 1973 por Storm Thorgerson
para o encarte de The Dark Side of the Moon










 
Em 2005, depois de quase duas décadas, os integrantes do Pink Floyd voltariam a se reunir para uma única apresentação no concerto beneficente 'Live 8'. Depois disso, Wright morreu em 2008 e somente em 12 de maio de 2011 Roger Waters, Mason e Gilmour voltaram a se encontrar no palco, em Londres, para um show de Waters na 'The Wall Tour'. Tocaram juntos dois clássicos do Pink Floyd: 'Comfortably numb' e 'Outside the Wall' – não por acaso outra homenagem a Syd Barrett – cuja presença, ideias e personalidade levaram Waters à criação de Pink, personagem central em 'The Wall', o disco e o filme, autêntica ópera-rock escrita por Waters e dirigida por Allan Parker em 1982.

A experiência de ouvir 'The dark side of the Moon' pode ser quase transcendental. Conheci o disco quase uma década depois do lançamento, quando ganhei o LP de presente de aniversário. Foi uma descoberta e tanto – que ainda perdura com toques de nostalgia a cada vez que ouço o disco ou apenas uma ou outra de suas dez canções. Sua mistura de beleza e estranhamento, com o passar do tempo, tem reforçado as lendas, que vão da simetria impressionante dos acordes do disco com as cenas do filme 'O mágico de Oz', de 1939, à inserção quase mística de mensagens cifradas e frases inteiras com ruídos bizarros do programa de TV do grupo de comediantes Monty Python, idolatrado pelos integrantes do Pink Floyd e por sua legião de fãs.










Imagens raras: todos os integrantes
do Pink Floyd com Syd Barrett (no alto)
David Gilmour (sentado), reunidos
na mesma foto, em 1973. Abaixo,
David Gilmour e Syd Barrett de pé e
a nova formação da banda, também
em 1973, na primeira foto promocional
após a decisão de afastar Syd Barrett.

Também abaixo, na foto em cores,
uma das últimas imagens promocionais do
grupo produzidas por Storm Thorgerson
em Londres, no início dos anos 1980



















O lugar de Syd Barrett



As lendas sobre o disco e suas versões saborosas são alimentadas por suas sucessivas reedições em novos formatos e suportes – entre elas a recente "The dark side of the Moon – Immersion box set", com seis CDs e DVDs que incluem remasterizações, demos, documentários e muitas entrevistas com o grupo e com técnicos que participaram das gravações no estúdio Abbey Road, entre junho de 1972 e janeiro de 1973, com participação importante do produtor Alan Parsons. Também não faltam itens de colecionador na memorabilia da banda – com destaque para o documentário 'Classic Albums: Pink Floyd and the making of The dark side of the Moon' (DVD, 2003), de Matthew Longfellow, e duas biografias, semelhantes e complementares.

Os dois livros, que receberam títulos quase idênticos no Brasil, foram escritos por jornalistas reconhecidos como especialistas: 'Os bastidores de The dark side of the Moon' (Editora Zahar), de John Harris, e 'Nos bastidores do Pink Floyd' (Editora Évora), biografia do grupo assinada por Mark Blake. Tanto Harris como Blake vão fundo nos detalhes da história da banda, reunindo depoimentos surpreendentes, mas ambos coincidem no destaque e no carisma de Syd Barrett, que contagiava a todos de imediato.












"Syd Barrett era um jovem com imenso e estranho carisma. Quando saiu da banda, inicialmente seus amigos acharam muito difícil continuar sem ele”, escreve Mark Blake, para quem o criador e mentor do Pink Floyd foi um poeta brilhante e um guitarrista dos melhores e mais inovadores, dos primeiros a explorar por completo as capacidades sonoras da distorção, as variações da técnica do instrumento e novidades que estavam surgindo, entre elas a máquina de eco. Syd Barrett, conclui Blake, influenciou em definitivo não só todo o som personalíssimo e incomum do Pink Floyd, mas também tudo o que foi feito por diversos músicos, diversas bandas e diversos artistas depois dele. Não é pouco.



por José Antônio Orlando.



Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Pink Floyd na Lua. In: _____. Blog Semióticas, 24 de março de 2013. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2013/03/pink-floyd-na-lua.html (acessado em .../.../...).



Para visitar o site oficial do Pink Floyd, clique aqui.
 















11 de novembro de 2011

Desobedeça!







Que fogo poderia se igualar a um raio de sol num dia de inverno? 
–– Henry David Thoreau, "A Winter Walk" (1863).   
 


Tempos de proliferação dos mais diversos aparatos de controle na vida cotidiana – com aprovação de leis controversas e tantas proibições que, para alguns, ferem as liberdades individuais, além de muitos problemas que vão da instalação indiscriminada de câmeras de vigilância, invasões rituais de privacidade e denúncias intermináveis de corrupção envolvendo o poder público. Tempos em que é bem-vinda a lembrança de ensinamentos marcantes e questionadores sobre o que parece estabelecido e sobre o que poderia vir a ser, tais como encontramos nos escritos do pensador Henry David Thoreau (1817-1862).
O texto mais conhecido do autor norte-americano, "A Desobediência Civil", publicado em formato de livro em 1849, permanece extremamente atual e, por certo, mais polêmico e mais explosivo do que na época em que Thoreau viveu. Trata-se de uma das defesas da transgressão mais célebres dos últimos séculos: no argumento brilhante do autor, notável por sua atuação como historiador, filósofo, estudioso das ciências naturais, abolicionista e poeta, a desobediência individual surge como forma de oposição legítima frente a tudo o que seja injusto.
Nada mal para um ensaio de ocasião em que o autor queria tão somente explicitar suas razões para se recusar a pagar seus impostos: Thoreau, que passaria à posteridade como um dos grandes escritores norte-americanos e pioneiro com sua teoria relativa à desobediência civil, escreveu seu célebre ensaio como um ato de protesto contra a escravidão e contra a guerra de seu país contra o México, que na época teve grande parte de seu território anexado pelos Estados Unidos.


 



Desobedeça! No alto e acima, grafites
na cidade de Woodbridge, Inglaterra, em
fotografias de Arthur Loosley. Também acima
e abaixo, um pensador muito à frente de seu
tempo: o escritor norte-americano
Henry David Thoreau retratado
em daguerreótipo datado de 1856
e atribuído ao pioneiro da fotografia
Benjamin Maxham (1810-1895)








Sem negar que as formas republicanas e democráticas de governo sejam um avanço político, a obra de Thoreau (traduzida pela primeira vez no Brasil em 1984, pela Rocco, com o título "Desobedecendo - A Desobediência Civil & Outros Escritos") critica a aplicação indiscriminada do princípio do poder da maioria e defende a rebeldia de indivíduos e minorias contra padrões majoritariamente instituídos. As ações de Thoreau e seus escritos têm caráter anarquista e libertário, motivo pelo qual sua força e originalidade vêm sendo retomadas e atualizadas por personalidades distintas em contextos diversos, incluindo de Leon Tolstói e Mahatma Gandhi aos movimentos hippie, da contracultura, da atitude rock'n'roll e das mais variadas ações pelos Direitos Humanos e pelas causas ambientais e ecológicas.
 


A lei e o cumprimento da lei



Thoreau, pensando à frente de seu tempo, interroga o senso comum: se toda pessoa é dotada de uma consciência, por que deve prevalecer sempre a consciência do legislador ou do aplicador da lei? Para o filósofo, o argumento que alega serem os legisladores ou os "fiscais" do cumprimento da lei os representantes legítimos da coletividade, eleitos por uma maioria, não surge como resposta convincente. 







De acordo com Thoreau, a tirania de uma lei não é abrandada por sua origem majoritária. Tal defesa da rebeldia como forma efetiva de ação política teve interpretações radicais, no decorrer do último século, e influenciou a política e as artes. A lição ideológica de Thoreau alcançou consciências iluminadas em 160 anos de história – abarcando pensadores, escritores, artistas, poucos políticos e heróis pacifistas como Mahatma Gandhi (1869-1948), líder da libertação da Índia da condição de colônia da Inglaterra, até as sociedades alternativas do movimento hippie, as contestações estudantis e as revoluções comportamentais que proliferaram desde a década de 1960.

Com o passar do tempo, a arte do pensamento e das palavras de Thoreau projetou utopias de liberdade e participação social, presentes ainda hoje na mobilização popular que cada vez mais volta às ruas, no mundo inteiro, pelos direitos das minorias e contra a discriminação racial e sexual, na luta pela preservação do meio ambiente e na resistência contra leis autoritárias e opressoras, da recente primavera dos países do mundo árabe ao vazamento explosivo de informações confidenciais dos governos de países do primeiro mundo no WikiLeaks, passando pelas manifestações crescentes nas ruas de países da Europa, nos Estados Unidos e também no Brasil.






Um protesto que entrou para a história:
milhares de estudantes em greve tomam
as ruas de Paris no mês de maio de 1968.
Abaixo, o momento histórico recriado no
cinema em 2003 por Bernardo Bertolucci
em Os Sonhadores (The Dreamers).

Também abaixo, 1) o sociólogo e filósofo
Herbert Marcuse, um dos mentores da
nova esquerda, dos movimentos estudantis
de 1968, da contracultura e da resistência
contra a guerra do Vietnã, em visita à
Universidade de Berlim, em 1968,
rodeado por estudantes; 2) a fotografia
de Stephen Shames que registra dois
adolescentes em cima da estátua em uma
manifestação em frente ao tribunal de
New Haven, Connecticut (EUA), durante
o julgamento de militantes do grupo
Panteras Negras em 1970; 3)
duas fotografias
de Mario De Biasi durante os protestos de
maio de 1968 em Paris, Étudiants à l'entrée
de la Sorbonne (Estudantes na entrada da
Sorbonne); 4) dois registros da concentração
para a Passeata dos Cem Mil contra a
censura e contra a ditadura militar, no
Rio de Janeiro, em junho de 1968, com a
presença de muitos artistas e intelectuais; na
foto em preto e branco, Clarice Lispector (de pé),
Paulo Autran (olhando para Clarice)
e Odete Lara (ao centro); na foto em cores,
entre outros, Clarice sentada à direita e,
ao lado dela, Dias Gomes; e 5) montagem
com cenas da cobertura jornalística
sobre a censura e a repressão policial
durante ditadura militar instalada com
golpe de 1964 no Brasil




















Para a artista plástica Teresinha Soares, que na década de 1970, no auge da ditadura militar, apresentou instalações ousadas que fizeram história, a contestação sempre será a palavra de ordem. "O mundo está aí, cheio de problemas. Nesse sentido, é preciso ver a questão do feminino diretamente ligada à arte do contestar", argumenta, lembrando muitos episódios recentes que foram notícia e causam repulsa e indignação. "Para quem lutou contra os desmandos da ditadura no Brasil, é difícil demais ver a maioria silenciar diante de paradoxos absurdos", protesta a artista. "Não dá para ficar calada diante de tanta arbitrariedade". 



Rupturas com a tradição


"A rebeldia e a contestação são os elementos comuns a todos os modernos na cultura e na arte, desde os movimentos da vanguarda do início do século 20", aponta Eneida Maria de Souza, professora da UFMG e autora do recém-lançado “Janelas Indiscretas” (Editora UFMG), que investiga certos aspectos da cultura e da literatura no Brasil e os cânones do Modernismo à Tropicália.

"Ainda hoje", destaca a professora, "a contestação é a condição para que a obra tenha reconhecimento como obra de vanguarda. Se pensarmos no pós-moderno e na atualidade, mesmo que a obra trabalhe com pastiches e citações, seu valor tem que surgir de algo novo, de original, em relação à tradição e ao lugar-comum".
















Na cena política, entretanto, Eneida reconhece que o valor da rebeldia e da contestação está ausente, com poucas exceções. "No Brasil, infelizmente, a contestação na política, na maior parte das vezes, tem caído no vazio. A contestação na política sempre vem a reboque dos interesses imediatos, oportunistas, dos partidos políticos", completa, lembrando episódios do acúmulo quase diário de denúncias de corrupção e quebra de decoro que vêm se arrastando por causa da ausência de contestação popular.

Referências à desobediência civil propostas por Thoreau, um dos precursores dos movimentos libertários de nossa época, são encontradas em homens que estiveram à frente de seu tempo – numa lista em que também é preciso destacar musas que marcaram época com suas revoluções singulares, como as brasileiras Chiquinha Gonzaga, Maria Lacerda de Moura, Nísia Floresta, Pagu, Carmen Miranda, Luz del Fuego, Elvira Pagã, Anaíde Beiriz e Leila Diniz, entre muitas outras.

Há também referências às ideias de Thoreau em quase toda a bagagem de muitos rebeldes também na cultura pop, de Rita Lee e Os Mutantes com a geração tropicalista à sociedade alternativa de Raul Seixas, Novos Baianos e Secos & Molhados; de heróis da era do rock como Bob Dylan, John Lennon, Jim Morrison, Janis Joplin e Jimi Hendrix à utopia representada pelo Festival de Woodstock, em 1969, e daí à rebeldia grupal dos primeiros movimentos punks, passando por lideranças universais surpreendentes do Terceiro Mundo como Bob Marley e Che Guevara, pelas guerrilhas de libertação colonial e contra as ditaduras militares em países da América Latina e da África, pelas vanguardas do Modernismo e pela tradição da ruptura dos adoráveis malditos na literatura, no cinema, na música, no teatro, na dança.





Che Guevara (1928-1967), comandante
da revolução cubana, posa em 1960 para
a célebre fotografia de Alberto Korda
intitulada Guerrilheiro Heroico. Abaixo,
Carlos Marighella, militante de esquerda,
político, escritor e guerrilheiro, assassinado
pela ditadura militar em 1969, fotografado
na redação do extinto Jornal do Brasil,
na cidade do Rio de Janeiro







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Sem a influência das ideias de Thoreau seria impossível também conceber a existência de muitos clássicos da literatura e obras ideologicamente transgressoras identificadas com a cultura das mídias – a exemplo do bom e velho rock´n´roll. Entre as muitas obras derivadas de Thoreau, há algumas que preservam seu espírito libertário e contestador, ganhando uma impressionante atualidade, a exemplo de "On the road" (1957) de Jack Kerouac e outros clássicos da Geração Beatnik, que se mantêm emblemáticas depois de décadas. O mesmo valor antecipatório acontece com certos romances da ficção científica como “Admirável Mundo Novo” e “1984”.  



Valores do "futuro"

 

Escrito pelo inglês Aldous Huxley (1884-1963) e publicado em 1932, “Admirável Mundo Novo” narra um hipotético futuro em que as pessoas são pré-condicionadas a viverem em harmonia com as leis e regras sociais, dentro de uma sociedade organizada por castas. Qualquer semelhança com os tempos sombrios da atualidade não terá sido, talvez, mera coincidência: a sociedade desse "futuro" criado por Huxley não possui nenhuma ética religiosa, nem solidariedade nem valores morais. No admirável mundo novo de Huxley, qualquer dúvida e insegurança dos cidadãos era dissipada com o consumo compulsivo de uma droga conformista e calmante sem efeitos colaterais aparentes chamada "soma". 



















Cenas da Era do Rock:
a partir do alto, Leila Diniz, musa
libertária no desfile de 1972 no
carnaval carioca, na Banda de Ipanema,
e no beijo em Betty Faria na praia de
Ipanema, Rio de Janeiro, em 1969,
em fotografias de Antonio Guerreiro:
imagens e atitudes que revoltaram os
conservadores e quebraram tabus em
uma época em que a repressão 
da
censura e da ditadura militar dominavam
o Brasil. Também acima; a célebre reunião
dos mentores da Tropicália na capa do
LP lançado em 1968; Raul Seixas, um
dos pioneiros do rock com sotaque
brasileiro e profeta do misticismo e da
sociedade alternativa; e Bob Dylan,
o menestrel dos anos 1960.

Abaixo, Jim Morrison, o poeta-xamã,
um dos principais "malditos" da cena do rock,
líder da banda The Doors; John Lennon,
que passou de ex-integrante dos
Beatles a herói pacifista, e foi assassinado
em 1980; Bob Marley, primeiro grande astro
da cultura pop saído do Terceiro Mundo;
dois registros da concentração para a
Passeata dos Cem Mil contra a censura
e contra a ditadura militar, no Rio de Janeiro,
em junho de 1968, pelo fotojornalista
David Drew Zingg (1923-2000): na primeira
imagem, Edu Lobo e Othon Bastos à direita e
Chico Buarque de óculos escuros à esquerda;
na segunda, entre outros, Ítala Nandi,
Chico Buarque e Gilberto Gil
 
















O escritor Aldous Huxley não foi o único a antecipar o futuro sombrio. Publicado em 1949, exatamente um século depois de "A Desobediência Civil", "1984" o romance do também inglês George Orwell (1903-1950), descreve uma sociedade totalitária do futuro (daí a data fatídica do título), na qual as mínimas ações e até a expressão facial dos indivíduos são vigiadas por aparatos tecnológicos a serviço de um suposto "Big Brother" – que tudo vê, tudo controla e tudo sabe, agindo com plenos poderes em nome do Estado e usando vigilância e informação para punir qualquer dissidência, mantendo no poder a estrutura do autoritarismo.

Ironia do destino e sinal dos tempos: em nossa época, a metáfora do "Big Brother" virou título para a franquia mundial do "reality show" na TV – que extrai seu apelo de audiência justamente do exibicionismo e da "invasão" da privacidade alheia. No romance, que foi adaptado para o cinema também em 1984, um humilde funcionário desobedece as leis e o senso comum ao se apaixonar. Quanto tenta enfrentar a repressão, é esmagado pelo sistema.






A capa da primeira edição do
romance de George Orwell,
publicado em 1949, e uma cena
do filme, que chegou aos cinemas
no ano de 1984, dirigido por
Michael Radford, com John Hurt,
Richard Burton e Suzanna Hamilton.

Abaixo, George Orwell (pseudônimo
de Eric Arthur Blair) em 1941, durante
a Segunda Guerra Mundial, época em
que trabalhou nos estúdios da BBC;
e na ilustração de capa da revista Time
às vésperas de 1984, em novembro de 1983,
apresentado como "o pai do Big Brother"




Imagem relacionada






Apesar do desfecho pessimista do romance, George Orwell segue a cartilha de Thoreau – afinal, um cidadão solitário ou uma minoria renitente são os agentes mais prováveis de uma ação positiva e bem-sucedida de desobediência civil. No lado oposto aos que ousam desobedecer, a multidão e suas maiorias silenciosas podem continuar seu caminho e obedecer, conformadas.

Mas, por outro lado, a multidão ou as minorias ou o indivíduo solitário podem ainda pressionar contra a repressão dos dissidentes – e podem, também, começar a desobedecer, descobrindo a defesa da diversidade e estabelecendo a tolerância à divergência como regra primeira de convivência. Neste caso, a lição de Thoreau terá superado as barreiras de seu tempo e fincado suas raízes libertárias no tempo presente.






Graúna, símbolo da contestação
e da luta pela liberdade, criação de
Henfil (1944–1988), acima, em um
cartum que foi publicado no extinto
Jornal do Brasil após as eleições de 1986







Brasileiro revê esquerda dos EUA


Livros sobre a esquerda norte-americana são praticamente inexistentes no Brasil. Há quem acredite até que a esquerda nunca existiu ou nunca teve importância no país em que o capitalismo mais prosperou. Ledo engano – que começa a ser desfeito com a publicação de "A Nova Esquerda Americana: de Port Huron aos Weathermen (1960-1969)", livro de Rodrigo Farias de Sousa, lançado pela Editora FGV. 
 
 




Versão revista e ampliada da dissertação de mestrado do autor, premiada na seleção anual promovida pela Universidade Federal Fluminense (UFF), "A Nova Esquerda Americana" revela os trunfos de Rodrigo na pesquisa documental, valendo-se de depoimentos e entrevistas com lideranças políticas de uma época em que a utopia de construir um mundo melhor e mais justo pareceu bem próxima para um grande número de pessoas no mundo inteiro.

"Logo no começo da pesquisa, que conclui como tese e agora sai em livro, percebi que eu precisava seguir numa direção diferente", explica o autor, em entrevista por telefone. "Não queria ser repetitivo com um tema tão importante em nossa época. Optei pela esquerda dos Estados Unidos dos anos 1960 porque era e ainda é um tema relativamente pouco conhecido por aqui. O que há no Brasil são obras importantes falando sobre 1968 ou sobre assuntos específicos daquela época, como as barricadas de maio dos estudantes em Paris, os protestos contra a guerra do Vietnã, a revolução do rock'n'roll ou a contracultura que explodiu de repente no mundo todo".








Duas imagens do documentário
Woodstock (1969), com roteiro,
fotografia, produção e direção de
Michael Wadleigh, o único cineasta
a registrar na íntegra o evento mais
mitológico da era do rock.

Abaixo, três fotografias de 1969 de
protestos contra a Guerra do Vietnã,
mobilização central da luta política
da esquerda nos EUA nas décadas
de 1960 e 1970












"Mas há também algo da maior importância que ainda hoje têm consequências que foi o movimento estudantil norte-americano naquele período. É um tema que raras vezes é divulgado na mídia e que não havia sido ainda abordado no Brasil. O que é surpreendente, considerando o papel dos EUA na história do século 20 e nos anos 1960 em particular”, destaca Rodrigo.

A lacuna sobre aquele contexto naquele momento da história é difícil de explicar, concorda o autor de "A Nova Esquerda Americana”. “Quando se fala de 1968, lembramos das barricadas estudantis do maio francês ou dos protestos dos estudantes brasileiros contra a ditadura que deram origem à luta armada. Mas poucos sabem sobre este período nos EUA, que foi terrivelmente turbulento e que pouquíssimas vezes chegou ao cinema e à mídia em geral".






Em uma narrativa sedutora, que enumera eventos que fizeram história e análises por vezes poéticas, a pesquisa apresentada em seus percalços – contando na primeira pessoa a história do autor, brasileiro que estuda a história do estrangeiro no território estrangeiro – Rodrigo Farias de Sousa consegue alcançar reflexos do passado no tempo presente, em especial a vitória espetacular de Barack Obama nas eleições para a sucessão do retrógrado governo de George W. Bush, além dos empreendimentos tecnológicos e visionários de protagonistas como Steve Jobs, entre outros que surgiram nas últimas décadas e foram tidos, à primeira vista, como propostas estéreis e delirantes.


Zabriskie Point: rebeldia e silêncio infinito


Como resultado, o livro de Rodrigo Farias de Sousa lança luzes sobre a complexa cena política atual e os primórdios das grandes questões contemporâneas nos anos 1960 - quando surgem nos EUA, com notável vigor, as lutas sociais das chamadas "minorias": lideranças feministas, gays, negros e outras etnias mobilizam-se, enquanto surgem inovações na arte e no movimento estudantil.
 






A investigação apresentada pelo autor revela o jogo de efervescência cultural e política nas universidades dos EUA, um cenário que também foi retratado em "Zabriskie Point" (1970), de Michelangelo Antonioni – uma obra-prima da contracultura e da contestação traduzidas em cinema, com os longos planos de panoramas em silêncio infinito, característicos do cineasta, e trilha sonora hipnótica que inclui Rolling Stones, Grateful Dead, Jerry Garcia e The Youngbloods, com destaque para o até então pouco conhecido Pink Floyd.

Na trama que a câmera de Antonioni observa, dois protagonistas, os estreantes Daria Halprin e Mark Frechette, são reunidos pelas forças do acaso e da sorte e encontram o idealismo de uma revolta universitária no campus, viajam em uma mistura de fuga e aventura. Terminam sozinhos, em silêncio, no monumental deserto de Zabriskie Point, na Califórnia.






Roger Waters, Nick Mason, Syd Barrett
e Richard Wright em Londres, em 1966,
antes da primeira apresentação com o
nome Pink Floyd - abreviação de
The Pink Floyd Sound, uma escolha
de Barrett em homenagem aos músicos
de blues Pink Anderson e Floyd Council.

O cineasta italiano Michelangelo Antonioni
assistiu a este primeiro show em 1966, durante
um intervalo das filmagens de Blow Up, e
convidou os quatro estreantes para compor
a trilha sonora do que seria seu próximo
filme, Zabriskie Point. O guitarrista
David Gilmour juntou-se aos integrantes
da banda depois das gravações dos primeiros
discos, quando Barrett acabou se afastando


Veja mais em: Pink Floyd na lua 

 





A vida imita a arte: depois das filmagens tumultuadas, o filme de Antonioni sofreu boicote dos estúdios na distribuição e estreou em poucos cinemas nos Estados Unidos. Pelo mundo afora, em 1970, foi aplaudido pelo público e pela crítica em vários festivais, mas não conseguiu espaço nos circuitos comerciais e permaneceu fora de circulação durante décadas. A bela Daria Halprin rejeitou muitos convites em Hollywood e abandonou a carreira de atriz quando se casou com o ator e diretor Denis Hopper, de “Sem Destino / Easy Rider”. 

Mark Frechette, por sua vez, protagonizou um drama que lembra muito o de seu personagem em "Zabriskie Point": não conseguiu um papel de destaque em nenhum outro filme e, desempregado, acabou envolvido, em 1973, em um mal sucedido assalto a banco no qual um dos cúmplices foi morto. Preso e condenado a uma pena de 15 anos, Mark Frechette morreu na prisão.

O paralelo com "Zabriskie Point" surge no livro "A Nova Esquerda Americana" apenas de passagem, mas serve como analogia à perfeição para o relato que Rodrigo Farias de Sousa apresenta. Com precisão e argumentos apresentados em narração que lembra lances de intrigas da ficção, o autor lança luzes sobre causas e consequências dos rumos dos Estados Unidos e do mundo a partir do grupo Students for a Democratic Society (SDS), que reforçou na mentalidade do cidadão mediano da América e de muitos outros países, por extensão, a partir dos idos do final dos anos de 1960, a urgência que não se pode adiar para uma mobilização de lutas pelos direitos civis e contra o que seja injusto.



por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Desobedeça. In: Blog Semióticas, 11 de novembro de 2011. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2011/11/desobedeca.html (acessado em .../.../...).



O cineasta Michelangelo Antonioni
com Daria Halprin e Mark Frechette
no deserto de Zabriskie Point, em
Death Valley (EUA), em 1969.
Abaixo, a cena final de Zabriskie Point




 


'Aqui estão os loucos. Os desajustados.
Os rebeldes. Os criadores de caso.
Os pinos redondos nos buracos
quadrados. Aqueles que veem as coisas
de forma diferente. Eles não curtem
regras. E não respeitam o status quo.
Você pode citá-los, discordar deles,
glorificá-los ou caluniá-los. Mas a única
coisa que você não pode fazer é ignorá-los.
Porque eles mudam as coisas. Empurram
a raça humana para a frente. E, enquanto
alguns os veem como loucos, nós os vemos
como geniais. Porque as pessoas loucas
o bastante para acreditar que podem mudar
o mundo, são as que o mudam.'

  Bilhete para Thoreau (1969), de Jack Kerouac (foto abaixo)






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