Há
algumas fotografias, bem como grafites e outras expressões da
chamada “arte de rua”, que podem ser destacados como modelos
exemplares para aqueles fenômenos que o principal teórico da
Semiótica, Charles Sanders Peirce (1839-1914), define com o conceito
de “sinequismo” –– ou seja, a representação do “continuum”
que produz o sentido. O conceito encontra similaridades e aproximações com outras formas que o senso comum nomeia como “ilusões de ótica”, incluindo estados alterados de percepção que a psicologia e a psiquiatria denominam como “pareidolia” ou “apofenia”. Nos termos descritos e desenvolvidos pela concepção metafísica de Peirce, o sinequismo tem um alcance epistemológico e ontológico, indicando a possibilidade de formulação de hipóteses ou
interpretações que envolvam a ideia de continuidade tanto para a
produção como para a potencialização de sentido em determinados
aspectos e circunstâncias de espaço, tempo, sentimento e/ou
percepção.
O
conceito de sinequismo vai encontrar, nos pressupostos da semiótica
de Peirce, uma complexa rede de argumentos sobre a lógica dos
procedimentos de raciocínio ou dos significados pragmáticos que a
mente estabelece diante de cada fenômeno. Sobre tal complexidade vale reproduzir aqui alguns trechos
brevíssimos extraídos do seu imenso arcabouço teórico. Em
primeiro lugar, segundo Peirce, “assim como afirmamos que um corpo
está em movimento, e não que o movimento está em um corpo, do
mesmo modo devemos dizer que nós estamos no pensamento, e não que
os pensamentos estão em nós”, conforme citado em “Collected Papers” 5.289,
1868 (observação: para citações dos "Collected Papers" de Peirce, convencionou-se que o primeiro dígito refere-se ao volume e, após a pontuação, o número do parágrafo; o trecho citado, portanto, foi extraído do volume 5, parágrafo 289, datado de 1868).
O
mesmo conceito de sinequismo vai representar a expressão de
continuidade entre o mundo representado pelos signos da cultura
humana em sua equivalência com os signos da natureza, ou seja,
aqueles objetos ou relações materiais que, na sua origem,
independem do princípio gerativo da intervenção humana. Nas
palavras de Peirce: “Tudo o que está presente para nós é uma
manifestação fenomenológica de nós mesmos. Isso não impede que
seja também um fenômeno de algo fora de nós, assim como o
arco-íris é ao mesmo tempo uma manifestação do sol e da chuva.
Quando pensamos, então, nós mesmos, como somos naquele momento,
aparecemos como signo” (CP 5.283).
Relações
de causa e efeito
Na
sua origem, a palavra “sinequismo” vem da Grécia da Antiguidade
e significa “continuidade”, podendo também ser considerada como
o contrário de “tiquismo”, que poderíamos, seguindo as
formulações de Peirce, traduzir por “acaso”. O sinequismo
estabelece relações de causa e efeito para produzir ou
potencializar o sentido, enquanto o acaso seria aquele resultado não
provocado ou que tenha surgido por processos indeterminados de
geração espontânea. Em outras palavras: para haver sinequismo, estará envolvida no processo uma determinada intenção para a produção do sentido. Assim como as hipóteses e as interpretações
são ideias ou ações que operam em sinequismo, o acaso pode
ser considerado como a manifestação de algo cuja ocorrência tenha
formas ou consequências injustificáveis.
Os processos de sinequismo
e tiquismo engendram um terceiro sistema: o “agapismo”, também
referido por Peirce como “lei do amor evolutivo”, como “busca
de um interpretante final” ou como “lógica da investigação
conscientemente aplicada”. Algo que a sabedoria popular e o senso comum traduzem em crenças como “só vemos o que queremos ver”. O conceito de sinequismo desenvolvido por Peirce, aliado à teoria das formas ou “gestalt”, desenvolvida por seu contemporâneo Cristian von Ehrenfels (1859-1932), filósofo austríaco, também fundamenta a percepção dos sintomas patológicos de ilusão de ótica descritos como “apofenia” ou “pareidolia” nos compêndios médicos de psicologia e psiquiatria, no que se refere às ilusões ou distorções do padrão cognitivo associados a psicoses e à esquizofrenia.
Os fenômenos que são descritos, muitas vezes como sintoma de patologia, como apofenia ou pareidolia, estão presentes em muitos casos de paranormalidade e de percepções de temas do imaginário religioso, especialmente nos casos de faces de personagens religiosos avistados em vidros de janelas, em fotos de fogueira, em fatias de pães torrados, em pratos de sopa etc., mas há uma distinção muito nítida entre os casos de apofenia e pareidolia em oposição ao que Peirce chama de sinequismo: é importante perceber, nos fenômenos que merecem o nome de pareidolia ou apofenia os componentes de acaso, de coincidência, ou mesmo de "delírio" psíquico ou de "inexplicável". Nos casos de Sinequismo, ao contrário, não há apenas o acaso e sim a "intenção" de provocar determinado sentido. Nos caos da construção artística é até mais fácil perceber tal intenção para construir a semelhança ou para a produção do sentido.
Os fenômenos que são descritos, muitas vezes como sintoma de patologia, como apofenia ou pareidolia, estão presentes em muitos casos de paranormalidade e de percepções de temas do imaginário religioso, especialmente nos casos de faces de personagens religiosos avistados em vidros de janelas, em fotos de fogueira, em fatias de pães torrados, em pratos de sopa etc., mas há uma distinção muito nítida entre os casos de apofenia e pareidolia em oposição ao que Peirce chama de sinequismo: é importante perceber, nos fenômenos que merecem o nome de pareidolia ou apofenia os componentes de acaso, de coincidência, ou mesmo de "delírio" psíquico ou de "inexplicável". Nos casos de Sinequismo, ao contrário, não há apenas o acaso e sim a "intenção" de provocar determinado sentido. Nos caos da construção artística é até mais fácil perceber tal intenção para construir a semelhança ou para a produção do sentido.
Na origem, os termos sinequismo, tiquismo e agapismo, em consonância com as
categorias definidas pelas tríades de Primeiridade,
Secundidade e Terceiridade, no complexo arcabouço teórico que
Peirce apresenta, fundamentam o crescimento contínuo, a criatividade, a variedade e a diversificação
entre nossos conhecimentos e nosso pensamento em relação às leis universais da
natureza. Nos pressupostos da teoria semiótica formulada por Peirce, o sinequismo, de forma muito específica, também
vem a ser considerado como uma ocorrência do procedimento de “abdução”, ou seja, uma espécie de hipótese extremamente criativa que surge de forma involuntária, ou um tipo de raciocínio,
instintivo e intuitivo, baseado na afinidade de nossa mente com a
natureza e capaz de proporcionar, até mesmo de maneira não consciente ou não racional, um conhecimento realmente novo
–– identificado, portanto, como uma “invenção” ou uma “descoberta”. Para Peirce, assim como para Platão e outros
sábios desde a Antiguidade Clássica, a natureza deve ser
sempre tomada como parâmetro para o pensamento porque ela é a
mais perfeita entre todas as obras de arte.
Cruzamentos
entre códigos
Sobre
este aspecto da cultura humana coexistir em relação
permanente, e sempre dependente, ao grau de perfeição das leis
da natureza, Peirce escreveu: “O universo como um argumento é por
força uma grande obra de arte, um grande poema – pois um belo
argumento é sempre um poema, uma sinfonia – da mesma forma que o
verdadeiro poema é sempre um argumento significativo. Comparemo-lo
antes com uma pintura – com uma marinha impressionista” (CP
5.119).
Nas
imagens de grafites e fotografias reproduzidas e apresentadas como
exemplificação neste artigo, destacamos a presença do
sinequismo nas relações
de sentido e de representação que são produzidas por
meio dos cruzamentos entre vários códigos. Tais cruzamentos,
conforme as sínteses dos conceitos e teorias de Peirce
apresentadas por Umberto Eco em obras fundamentais como “Tratado
Geral de Semiótica” (1976), “Semiótica e Filosofia da
Linguagem” (1984) e “Os Limites da
Interpretação” (1990), entre outras,
podem ser verificados no processo de generalização
das sensações particulares, vividas por cada um de nós,
quando estamos em busca pelo significado de uma determinada
obra.
O
significado, construído na relação permanente entre signos, objetos e
interpretantes, vai brotar da percepção de um plural
de possibilidades e, por meio da comunicação, poderá produzir o sentido compartilhado ou coletivo, contínuo, tanto na vida cotidiana como na experiência
científica, na formulação filosófica ou na criação artística. Exatamente porque depende de vários, e não apenas
de um único código, o significado só pode ser
representado como um sistema dinâmico: está sempre em
movimento permanente, em toda e qualquer circunstância, sob
todos os aspectos.
Em tal multiplicidade é que as relações entre acaso e significado, essenciais à progressão das artes e das ciências, também irão aproximar o conceito de sinequismo a outros fenômenos cognitivos, muito similares entre si, tais como aqueles estados que a psicologia e a psiquiatria denominam como “pareidolia” ou como “apofenia”: aquela percepção de padrões familiares em sistemas vagos e aleatórios de imagens ou de sons (por exemplo, o reconhecimento de uma forma que lembra um rosto humano em uma paisagem ou a descoberta de uma nuvem no céu que sugere a figura de um animal, comuns em situações ilusórias passageiras, tais como as chamadas ilusões de ótica, mas também às crenças supersticiosas e aos estágios patológicos com viés cognitivo).
Relações
de signos simultâneos
Ou
seja: as relações permanentes entre a obra e o seu contexto
histórico, social e cultural, permitem à arte e à ciência a descoberta cognitiva de elementos que significam e ressignificam não apenas a leitura da própria obra,
mas também o signo exterior –– inscrito no âmbito
do imaginário social –– que passa a ter com a
obra uma determinada ligação ou relação. De
novo estamos diante do conceito de sinequismo: nas imagens
apresentadas, o significado, ou antes a produção de sentido,
está, na verdade, no cruzamento que resulta de pelos menos três
signos simultâneos:
1° signo –– a vegetação, ou a estrutura física, ou o condicionante material que já existia naquele contexto antes da iniciativa da representação;
2° signo –– o ângulo da fotografia, ou a perspectiva do desenho ou da pintura, ou a intervenção artística que tomou aquele determinado material como seu objeto para a representação;
3° signo –– a obra (o 1° signo somado ao 2°) que se apropriou da vegetação, ou do espaço, ou do contexto material pré-existente para produzir ou potencializar um sentido.
Esses
pressupostos da semiótica da comunicação, apresentados em sua
complexidade e variedade nos argumentos de Peirce, que foram tão mal recebidos e
tão pouco compreendidos em seu tempo, no final do século 19 e na
primeira metade do século 20, surgem agora, na contemporaneidade, como
parâmetros transdisciplinares fundamentais nos quais a noção de signo é
definida, simultaneamente, como meio e como mensagem –– por
onde a informação perpassa e se desenvolve de forma múltipla e potencialmente ilimitada. Estranhamente,
são esses mesmos parâmetros transdisciplinares que ganham cada vez
mais os holofotes, em destaque, com a proliferação dos
sistemas de Inteligência Artificial, dos algoritmos e das mídias digitais e interativas
nestas primeiras décadas do século 21.
por José Antônio Orlando.
Como
citar:
ORLANDO,
José Antônio. Cenas de Sinequismo. In: Blog
Semióticas,
4 de fevereiro de 2017. Disponível no link
http://semioticas1.blogspot.com/2017/02/cenas-de-sinequismo.html
(acessado
em
.../.../…).
Sobre Sinequismo e outras questões de Semiótica,
veja também Paisajes y Tendencias Semioticas.