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25 de junho de 2024

Arte do cartaz em 1900

 



Belas artes são aquelas em que a mão,

a cabeça e o coração andam juntos.

–– John Ruskin, 1870. 
  


Uma revolução das técnicas de composição e de impressão gráfica aconteceu no final do século 19, dando origem a uma nova forma de arte que ficaria conhecida como arte do pôster ou do cartaz. Mais de 130 anos depois, um acervo original com cerca de 500 peças raríssimas e preservadas na íntegra, que fazem parte da Coleção Leonard A. Lauder, foi reunido pelo Metropolitan Museum de Nova York para a exposição “The Art of Literary Poster” (A arte do pôster literário). O acervo permanecia inédito desde o começo do século 20 e agora, com a exposição, também está publicado em um catálogo de capa dura, com 248 páginas e todas as imagens com reprodução colorida em alta definição. No recorte temático estão cartazes em litografia e outras técnicas de gravura, impressos em policromia, no suporte papel, produzidos na última década do século 19 e nos primeiros anos do século 20, para anunciar lançamentos e novas edições de revistas, jornais, folhetins e livros. Em muitos deles, as figuras mostram pessoas lendo.

Impresso para ter vida efêmera, colado em paredes e muros dos centros urbanos, o cartaz vem de uma longa história em vários países. Uma abordagem teórica e historiográfica sobre a trajetória do cartaz no final do século 19 foi apresentada por Marcus Verhagen, historiador e professor da Universidade da Califórnia, no ensaio “Aquela arte volúvel e degenerada” (publicado no livro “O cinema e a invenção da vida moderna”, pela Cosac & Naify, em 2001). Inicialmente o cartaz era considerado apenas um recorte de papel impresso sem valor agregado, produzido às pressas sem maiores preocupações estéticas – “uma ferramenta comercial tosca, um anúncio em preto-e-branco com uma imagem altamente esquemática ou sem nenhuma imagem”, como ressalta Verhagen. A partir das últimas décadas do Oitocentos, no entanto, com a incorporação da impressão em cores e de novas técnicas, os cartazes criados para anúncios publicitários tiveram um salto de qualidade, conquistando o interesse de colecionadores e, muitas vezes, o entusiasmo dos críticos de arte.

 


 




Arte do cartaz em 1900: no alto da página, um detalhe

do cartaz promocional para divulgar o lançamento
da revista The Quartier Latin em 1898-1899,
em criação de Louis John Rhead. Acima, capa

  do catálogo da exposição no Metropolitan Museum

e a íntegra do cartaz de The Quartier Latin.

Abaixo, cartaz de lançamento de Three Gringos

in Central America and Venezuela, livro de contos

de Richard Harding Davis, com ilustração de

Edward Penfield inspirada nas pinturas de

Paul Gauguin sobre o Haiti. Também abaixo,

cartaz de Penfield anunciando uma reportagem

sobre a guerra entre Estados Unidos e Espanha,
destaque em fevereiro de 1899 na Harper’s






A moda em Art Nouveau


Esta nova era transformou o cartaz publicitário em uma nova mídia em ascensão que ganhava destaque nas ruas. O cartaz também passava a ser identificado como um dos elementos principais de um novo estilo que ficaria conhecido pelo nome em francês Art Nouveau – o estilo da arte decorativa que teve seu centro irradiador em Paris, no fim do século 19. Rapidamente, o potencial de consumo que surgia com a nova moda espalhou-se por cidades da Europa e de outros continentes. Em Londres, o novo estilo tem seu equivalente com o movimento Arts and Crafts Exhibition Society, que teve o pintor e ilustrador de livros Walter Crane como primeiro líder e presidente.

A Arts and Crafts Exhibition Society montou a sua primeira exposição anual em 1888, mostrando exemplos de trabalhos que ajudassem a elevar o estatuto social e intelectual do artesanato, incluindo cerâmica, têxteis, metalurgia e mobiliário. Muitos dos artistas e artesãos que se envolveram com o movimento não só em Londres, mas também em Birmingham, Manchester, Edimburgo, Glasgow e outras grandes cidades do Reino Unido, foram influenciados pelo trabalho de um designer de sucesso na época, William Morris. Destacado também como ativista social e escritor, o próprio Morris reconhecia sua inspiração nas ideias do principal crítico de arte da Era Vitoriana, John Ruskin, elaborando novos padrões técnicos de artes gráficas e, assim como acontecia na França e outros países, novos modelos muito populares na arquitetura e como estilo intermediário entre a indústria e a arte, adotados na produção de máquinas, móveis, roupas, objetos funcionais e tudo o mais que o termo “design” passou a englobar e traduzir, provocando transformações radicais ou substituindo, gradativamente, as tradicionais oficinas de artes e ofícios.

Naquela época, o estilo Art Nouveau e a arte do cartaz se multiplicavam com velocidade, junto com o surgimento da eletricidade nos centros urbanos e a chegada dos automóveis que substituíam as antigas carroças, carruagens e bondes puxados a cavalo. O novo estilo era celebrado como a última moda, passando a contar com novos adeptos e novos consumidores. Evoluindo junto com as linhas de produção em massa da indústria mercantil e com a indústria do entretenimento, os cartazes se multiplicavam anunciando os espetáculos de ópera, de teatro, de vaudeville, os shows musicais em casas noturnas e a novidade do cinema. O projeto em comum aos artistas que adotavam o novo estilo combinava a tradição das belas artes com o artesanato em marchetaria e a produção de mercadorias utilitárias para consumo doméstico, alcançando também o mundo das artes, a pintura, a escultura e todas as técnicas de desenho e gravura.

 


 




Arte do cartaz em 1900: no alto, litografia de

Jules Chéret, o “inventor da arte do cartaz”,

anunciando, em 1889, a inauguração do

Moulin Rouge, casa de espetáculos que

marcou época em Paris. Acima, cartaz ousado

de 1896 de Henri de Toulouse-Lautrec,

com inspiração nos cartazes de Chéret,

criado para Troupe de Mlle. Églantine,

espetáculo musical parisiense que estreava

temporada em Londres, no Palace Theatre

of Vaeties, com a estrela Jane Avril,

uma das musas de Lautrec.


Abaixo, cartaz anunciando um ponto de vendas

da Bearings Magazine, voltada para ciclistas e

apreciadores de bicicletas, criado em 1896

por Charles Arthur Cox. Também abaixo, o marco

inaugural do estilo Art Nouveau no Brasil, na capa

da Revue du Brésil, criada em novembro de 1896

por Eliseu Visconti durante sua temporada

de estudos em Paris








Pioneiros do estilo


Art Nouveau também passou a ser o estilo adotado por nomes célebres da história da arte, cada um interpretando à sua maneira as novas técnicas decorativas, tais como o austríaco Gustav Klimt, o checo Alfons Mucha ou o espanhol Antoni Gaudí, entre outros. Verhagen destaca que, nas artes gráficas, o salto de qualidade na produção do cartaz teve um pioneiro que influenciou todos os outros e todo o estilo – o francês Jules Chéret, nomeado em 1890 pelo escritor Edmond de Goncourt como “o inventor da arte do cartaz”. Uma celebridade em sua época, Chéret passou a exercer forte influência sobre artistas como Toulouse-Lautrec e outros nomes do primeiro time das vanguardas europeias. Segundo Verhagen, o nome Chéret, na Paris de fim de século, passou a ser sinônimo para o cartaz mais elaborado, e a popularidade também alcançou a “chérette”, a dançarina estilizada com ares de ninfa sempre presente em seus desenhos e cartazes. Em um dos mais conhecidos, criado em 1889, a “chérette” em trajes e poses provocantes anunciava a inauguração do Moulin Rouge, a casa de espetáculos licensiosa que marcou época em Paris.

O pioneiro do estilo Art Nouveau no Brasil, Eliseu Visconti, também reconheceu a influência de Chéret durante sua temporada de estudos em Paris, entre 1894 e 1897. Historiadores como Frederico Morais (em “Aspectos da Arte Brasileira”, editado em 1980 pela Funarte) apontam a importância de Visconti não só como pintor e desenhista, mas também como pioneiro do design industrial e da arte do cartaz. Um dos trabalhos de importância histórica de Visconti, a capa do primeiro número da “Revue du Brésil”, editada em Paris em novembro de 1896, é considerado um marco que introduz o estilo Art Nouveau no Brasil. Em “Biblioteca Nacional – A história de uma coleção” (Editora Salamandra, 1996), Paulo Herkenhoff também destaca Visconti como precursor da arte modernista e como pai do desenho industrial brasileiro – com seus padrões para papéis de parede e objetos utilitários, além da criação de capas e ilustrações de livros e revistas, de selos, da decoração do Teatro Municipal de Rio de Janeiro e da Biblioteca Nacional, e de seus cartazes, os primeiros a terem valor artístico reconhecido no Brasil.









Arte do cartaz em 1900: no alto, cartaz criado por

Louis John Rhead em 1894 para anunciar a edição

de Natal da Century Magazine. Acima, o beijo estilizado

da figura andrógina no encontro com o pavão, emoldurados

por ícones de iluminuras de antigos manuscritos, no cartaz

criado pelo artista e ilustrador William Henry Bradley

para o lançamento de His Book, revista literária de

Nova York que teve apenas seis números entre 1896 e 1897.


Abaixo, dois cartazes criados por mulheres: o primeiro,

de Florence Lundbourg para o lançamento da revista

The Lark, edição de fevereiro de 1897; o segundo,

criação de Ethel Reed em 1895 para o lançamento do

livro Folly or Saintiliness, do escritor José Echegaray,

Prêmio Nobel de Literatura em 1904








A novidade do cartaz literário


A exposição que resgata o “boom” do cartaz em Art Nouveau, apresentada no Metropolitan de Nova York, tem curadoria e apresentação a cargo de quatro especialistas, que também assinam a edição do catálogo e os ensaios teóricos e historiográficos: Alisson Rudnick, Shannon Vittoria e Rachel Mustalish, diretoras dos departamentos de Papeis, Desenhos e Gravuras do museu, e Jennifer Greenhil, professora de História da Arte na Universidade de Arkansas. Diante do acervo selecionado, o que mais ganha destaque para o olhar do observador do século 21 é certamente o contraste entre a sofisticação estética e a aparente simplicidade das figuras, além do apuro estético na integração de texto e imagens para a composição dos cartazes – cada um deles surgindo mais próximos de uma obra de arte do que de um anúncio publicitário.









Arte do cartaz em 1900: no alto, página standart

(o formato padrão da página de jornal impresso, com

cerca de 55 cm) criada por E. Pickert, simulando o efeito

de pastilhas de acrílico, para a edição de 6 de fevereiro de

1895 do jornal The New York Times. Acima, o cartaz de

Bertha Margaret Boyé vencedor do concurso do

Movimento Sufragista para uma campanha pela

legalização do voto feminino em 1911.


Abaixo, cartaz de Joseph J. Gould Jr. para o

lançamento da edição de julho de 1896 da

revista Lippincott’s; e a nudez no cartaz criado

por Maxfield Parrish para o lançamento da

edição de agosto de 1897 da revista The Century










Mesmo sendo, em sua época, peças apenas funcionais para divulgação e publicidade, cada um dos cartazes em estilo Art Nouveau pode ser considerado uma obra de valor específico, com detalhes que revelam tanto questões culturais do tempo em que foram produzidos, como avanços nas técnicas das artes gráficas ou da linguagem que representa e traduz informações cifradas sobre códigos de comportamento. O cartaz criado por Edward Penfield que anuncia a edição de fevereiro de 1897 da revista Harper's, escolhido para anúncio principal da exposição no Metropolitan e também reproduzido na capa do catálogo, representa um caso emblemático para o recorte do acervo.

No cartaz de Penfield, quatro figuras elegantes da burguesia,
três mulheres e um homem, todos eles com seus chapéus da moda, viajam de bonde e estão lendo a revista. Ao fundo, ao lado dos quatro personagens das elites, um representante da classe trabalhadora: o cobrador do bonde, que também está mergulhado na leitura. Penfield criou cartazes sempre instigantes para cada nova edição da Harper's durante mais de sete anos. Em outro anúncio, criado em 1996 por Joseph J. Gould Jr. para a edição de julho da revista Lippincott's, estão ousadias gráficas e de costumes: a jovem elegante, vestida a rigor, está em sua bicicleta e tem a revista nas mãos. Como inovação gráfica, o chapéu amarelo da jovem cobre algumas letras do nome da revista, mas sem impedir a leitura.









Arte do cartaz em 1900: no alto, cartaz anunciando

o lançamento da edição de março de 1895 de

The Boston Sunday Herald, dedicada à moda de

primavera, com sobreposições de vermelho e preto,

criação de William McGregor Paxton. Acima, cartaz

de
William Henry Bradley para o lançamento em 1894

do livro When hearts are trumps, de Tom Hall.


Abaixo, cartaz de George Reiter Brill para o

Philadelphia Sunday Press, edição de 3 de fevereiro

de 1896. Também abaixo, cartaz de Louis John Rhead

anunciando a edição
de Natal do The New York Herald,

em 1896, com o toque pioneiro de um

Papai Noel em vermelho.

No final da página, cartaz para o lançamento

da revista Self Culture de outubro de 1897, criação

de Joseph Christian Leyendecker; e um autorretrato

estilizado de Edward Penfield para a capa do

calendário de 1897 publicado pela

editora R.H. Russel & Son, de Nova York










Arte e documento histórico


Há uma grande diversidade de nomes identificados como criadores dos cartazes, no acervo reunido pelo museu, com destaque em número de obras para os norte-americanos Edward Penfield, Joseph Christian Leyendecker, Louis John Rhead e William Henry Bradley, além da surpreendente presença de mulheres no grupo de artistas, entre elas Florence Lundborg, Ethel Reed e Bertha Margaret Boyé, que era uma professora e militante política muito conhecida na época, e que venceu em 1911 o primeiro concurso de cartazes para o Movimento Sufragista de San Francisco, Califórnia, em defesa da legalização do direito do voto para mulheres. No cartaz, que faz parte do acervo, uma figura feminina com uma túnica amarela, lembrando o arquétipo de uma sacerdotisa, abre os braços para mostrar uma faixa onde se lê “Votes for Women” (Voto para mulheres). Atrás dela, o sol que está na linha do horizonte forma uma auréola sobre sua cabeça, como se indicasse simultaneamente um símbolo de beatitude e santidade e o alvorecer de novas oportunidades.

Mais de um século depois da criação da maioria das peças reunidas no acervo, ainda é possível identificar e reconhecer o impacto duradouro que os cartazes em estilo Art Nouveau continuam a exercer sobre as linguagens da ilustração, sobre o design gráfico e até sobre a forma e o conteúdo dos anúncios publicitários da atualidade. O acervo também confirma a importância do cartaz como documento histórico – um documento que registra e preserva informações preciosas, ocupando um lugar especial na interseção entre literatura, imprensa, design gráfico, sociologia, questões políticas, culturais e comportamentais da época em que foram produzidos. No ensaio que abre a apresentação das imagens do catálogo, a curadora Alisson Rudnick ressalta que, em cada um dos cartazes selecionados, está representado algo novo: são anúncios publicitários produzidos para terem duração efêmera, mas, estranhamente, mudaram de função com o passar do tempo e agora têm seu valor preservado e reconhecido como autênticas obras de arte.


por José Antônio Orlando.

Como citar:

ORLANDO, José Antônio. A invasão do Gibi. In: Blog Semióticas, 25 de junho de 2024. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2024/06/arte-do-cartaz-em-1900.html (acessado em .../.../…).



Para uma visita virtual à exposição do Metropolitan Museum, clique aqui.


Para comprar o catálogo The Art of Literary Poster,  clique aqui.







 

30 de setembro de 2023

Pessoas do deserto

 





Gauri Gill, uma fotógrafa que há duas décadas registra imagens de pessoas em situação de pobreza, em vilarejos da área rural e no deserto do Rajastão, ao norte da Índia, foi anunciada vencedora da edição 2023 do Prix Pictet, prêmio internacional de fotografia e sustentabilidade, considerado um dos mais importantes da atualidade. A organização do prêmio, que nesta 10ª edição teve o tema “Humano”, havia divulgado uma lista com ensaios dos 12 fotógrafos finalistas de 11 países, selecionados por um júri independente nomeado pelo grupo financeiro Pictet, com sede na Suíça, que criou a premiação em 2008. O prêmio é entregue a cada dois anos e, em seguida à premiação, há uma extensa programação itinerante que inclui exposições e eventos paralelos com conferências, cursos, debates e mostras audiovisuais em 10 países.

O ensaio vencedor do Prix Pictet, “Notes from the Desert” (Notas do Deserto), reúne uma série de fotografias em preto e branco com pouco contraste, o que dá a elas um tom envelhecido, com uma temática na qual Gauri Gill trabalha desde 1999 e se concentra em pessoas das escolas rurais do Rajastão, na Índia. A fotógrafa define seu trabalho como “escuta ativa” sobre comunidades marginalizadas para representar o espectro de suas vidas. No dossiê de imprensa da premiação, Gauri Gill faz um relato comovente sobre a pobreza e sobre as dificuldades da região e declara que sua meta foi dar continuidade ao trabalho de fotógrafos que admira. Ela cita três mestres como suas maiores influências: o norte-americano Alfred Stieglitz (1864-1946); o alemão August Sander (1876-1964); e Robert Frank (1924-2019), nascido na Suíça. Os três são referências na história da fotografia por seus célebres portifólios com retratos de pessoas comuns e pela aproximação com as causas sociais.

 

 



Pessoas do deserto: acima, a fotógrafa Gauri Gill na
cerimônia de premiação do Prix Pictet, em Londres,
em 28 de setembro de 2023. No alto e abaixo,
Urma e Nimli, duas meninas da escola do distrito
de Lunkaransar. Também abaixo, Sumri, filha
do pastor de cabras no distrito de Barmer; e outras
fotografias do ensaio premiado de Gauri Gill







 


  


 



Na última edição da premiação, em 2021, que teve como tema “Fire” (Fogo), a vencedora foi a norte-americana Sally Mann, com uma série de fotografias, também em preto e branco, sobre incêndios florestais no estado da Virgínia, na região sudeste dos Estados Unidos. Intitulada “Blackwater, 2008-2012”, a série de fotografias de Sally Mann registrou imagens do que restou depois da destruição pelo fogo nos pântanos da Virgínia, mesma região que foi devastada e incendiada nos séculos passados por fazendeiros em busca de seus escravos fugitivos que tinham aquele território selvagem como refúgio e esconderijo. Sally Mann usou equipamentos e técnicas que eram usados nos primeiros tempos da fotografia, no século 19 (veja também Semióticas – Imagens de fogo e revolta).


Desigualdade social e crise ambiental


Gauri Gill, a fotógrafa premiada na edição 2023, recebeu um prêmio em dinheiro equivalente a US$ 109 mil e terá seu trabalho editado em um fotolivro de luxo, além do destaque na exposição itinerante que estará aberta ao público no Victoria & Albert Museum, em Londres, até 22 de outubro, e que depois deverá seguir para outras capitais de vários países. Nesta edição, o Prix Pictet também anunciou a novidade de uma premiação pela escolha do público (People’s Choice Award), com votações pelo site oficial do prêmio que também apresenta todas as fotografias dos 12 ensaios pré-selecionados (veja o link no final desta postagem). A votação está aberta e o resultado será anunciado no encerramento da exposição em Londres.

 





Pessoas do deserto: acima, Jannat, menina da
escola de Barmer. Abaixo,
Hanuman Nath com seus
filhos na cerimônia do Holi Day, em Lunkaransar.
Também abaixo, paciente em um exame médico no
posto de saúde mantido pelo governo em Barmer




         




No dossiê de imprensa, Isabelle von Ribbentrop, diretora executiva da premiação, explica que, neste nosso mundo que enfrenta desafios sem precedentes, desde a desigualdade social às crises ambientais, era crucial que o Prix Pictet virasse a lente para a própria humanidade. “O tema Humano fornece uma plataforma de possibilidades sobre as complexidades, vulnerabilidades e pontos fortes da condição humana. Permite aos artistas capturar e comunicar as histórias de indivíduos e de comunidades”, ressalta. Vulnerabilidade, de fato, parece ser o tema central da condição humana nas imagens de Gauri Gill. Ela revela que começou a fotografar as escolas das vilas do Rajastão em abril de 1999, depois de presenciar uma cena que a deixou emocionada: uma menina pequena sendo violentamente espancada na sala de aula pela professora.

Territórios do deserto

“Depois de assistir aquela cena chocante, que parecia normal para todos que estavam presentes, retornei a Delhi e propus a um jornal onde trabalhei a realização de uma fotorreportagem sobre como era ser uma menina em uma escola de aldeia, mas me disseram que minha pauta carecia de interesse para que os leitores urbanos pudessem se identificar. Então decidi começar o trabalho por conta própria e comecei a viajar pelas escolas da zona rural e pelos territórios do deserto, pelos distritos de Jaipur, Jodhpur, Osiyan, Bikaner, Barmer, Phalodi, Baran e Churu, fotografando crianças e adultos, principalmente nas pequenas aldeias e nos vilarejos. Este trabalho já dura mais de duas décadas e uma seleção das imagens formam este ensaio agora premiado”, recorda Gauri Gill.

 

           
 


Pessoas do deserto: acima, Izmat, moradora de
Barmer. Abaixo,
Jogiyon ka Dera, morador de
Lunkaransar; e um momento de lazer que
resultou em um flagrante surreal de
pai e filha também em Lunkaransar




 




 

Nascida em Delhi, em 1970, e com formação no curso superior pelo Delhi College of Arts, Gauri Gill reconhece que sua inspiração vem, principalmente, dos fotógrafos que admira, os mestres August Sander, Alfred Stieglitz e Robert Frank, pela ternura que cada um deles demonstrou ao registrar pessoas anônimas e quase sempre marginalizadas. Tendo como modelo de trabalho os portifólios dos três fotógrafos, ela explica que começou organizando as fotografias das escolas como se fossem álbuns de família, e que depois de anos de trabalho viajando pelas áreas rurais acabou formando laços afetivos com vários personagens que fotografou e reencontrou tempos depois. Nos últimos anos ela também fez viagens internacionais a trabalho e suas fotos foram publicadas em veículos importantes de imprensa, como o jornal inglês The Guardian.


Arte e fotojornalismo


Uma de suas séries fotográficas de Gauri Gill que tiveram repercussão foi “The Americans”, registro de sua primeira viagem aos Estados Unidos, com fotografias que tentam estabelecer um diálogo com a célebre obra homônima de Robert Frank que teve grande destaque, com exposições e um fotolivro publicado no final dos anos 1950, com texto de apresentação do escritor Jack Kerouac. Na versão de Gauri Gill para “The Americans”, ela fotografou apenas os remanescentes de povos indígenas, nas aldeias das áreas rurais e na periferia das grandes cidades, em cenas de trabalho da vida urbana e também nos rituais que celebram e recordam seus antepassados dizimados pelos colonos na ocupação do território.



              

Pessoas do deserto: acima, um poço de água
(no detalhe à esquerda da foto) na imensidão do
deserto do Rajastão. Abaixo,
Mir Hasan com seu
avô Haji Saraj ud Din, moradores de Barmer;
e a fotógrafa em um autorretrato.

Também abaixo, o cartaz na abertura da
exposição do Prix Pictet 2023 no Victoria &
Albert Museum em Londres; uma das fotografias
em destaque na exposição; duas fotografias da
série publicada no fotolivro "Atos de aparência";
a fotógrafa Gauri Gill em Delhi, na Índia; uma
fotografia da série Jannat 1999-2007; e duas
imagens do fotolivro "Campos de Visão", que
reúne fotografias de Gauri Gill e intervenções
gráficas de Warli Rajesh Vangad









Durante a temporada em que morou nos Estados Unidos, Gauri Gill também fez cursos de pós-graduação na Parsons School of Design, em Nova York, e na Stanford University, na Califórnia. Recentemente, ela publicou dois fotolivros pela Patrick Frey Editions com seleções de seu trabalho nas últimas décadas, "Acts of Appearance" (Atos de aparência),  de  2022, sobre artistas populares da Índia que produzem máscaras e objetos de papel machê para festas tradicionais, e “Fields of Sight" (Campos de visão),  de  2023, em parceria com o artista indiano Warli Rajesh Vangad, com retratos de paisagens ligadas a rituais sagrados e a histórias míticas da Índia. Ela também teve diversas exposições de suas fotografias em museus dos Estados Unidos e na Europa, incluindo participações na Documenta de Kassel, na Alemanha, e na Bienal de Veneza, na Itália.

Atualmente Gauri Gill vive exclusivamente de seu trabalho como fotógrafa. Em Delhi, onde mora, ela fundou em 2006 uma revista mensal editada no formato tradicional, em papel, e também na versão on-line, dedicada a divulgar a obra de fotógrafos profissionais e de iniciantes. O nome da revista é “Camerawork Delhi”, em homenagem ao lendário “Camera Work”, jornal de vanguarda fundado por Alfred Stieglitz em Nova York que teve 50 edições, entre 1903 e 1917, e que se tornou a primeira grande referência da fotografia como arte.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Pessoas do deserto. In: Blog Semióticas, 30 de setembro de 2023. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2023/09/pessoas-do-deserto.html (acessado em .../.../…).



Para uma visita virtual à exposição do Prix Pictet 2023,  clique aqui.

 

 

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