O músico, maestro, cantor e compositor Jadir Ambrósio diz que é do Carnaval de outros tempos
que ele mais sente falta. "Sinto falta dos tempos de boemia nos
botequins do Centro de Belo Horizonte, como o 'Mocó de Iaiá', do Carnaval animado dos anos 1950, das escolas de samba maravilhosas que
invadiam a Avenida Afonso Pena com seus adereços e aquela energia
que fazia todo mundo cair no samba", recorda, com muita lucidez
e com memória surpreendente para seus 90 anos de idade, que vai completar em 8 de dezembro de 2012, dia que também é consagrado, ele destaca, a Nossa Senhora da Imaculada Conceição.
"Pude
matar as saudades da animação do Carnaval há uns cinco anos, quando subi ao palco pela
última vez, na Biblioteca Pública, na Praça da Liberdade, ao lado
de Mestre Conga, meu amigo de longa data, e foi uma alegria", ele recorda, nessa longa entrevista que fiz com ele para o jornal Hoje em Dia, de Belo Horizonte, uma entrevista concedida no jardim da casa onde mora há décadas, na
esquina da rua Clara Nunes, no bairro Renascença, e que durou uma tarde inteira. Jadir Ambrósio e
outro sambista da velha guarda, Mestre Conga, foram convidados para o evento, na
época, pelo projeto Stereoteca. Quem assistiu a homenagem diz que foi um show
comovente, bem no espírito da época de ouro do samba de raiz que já foi uma tradição popular em
Belo Horizonte.
"Há
muito tempo que o Carnaval não é mais o mesmo. Eu vejo muita falta
de solidariedade, muita falta de companheirismo nos dias de hoje. As
pessoas estão muito individualistas, parece que não estão nem aí
umas para as outras. Isso dói num homem vivido como eu", ele explica, mostrando os truques que aprendeu para tocar violão, por ser canhoto, dedilhando nas cordas uma ou outra melodia dos sambas e canções da
velha guarda, enquanto confessa que para matar as saudades dos velhos tempos costuma ouvir os antigos discos de vinil com as canções de Orlando
Silva, Sílvio Caldas, Francisco Alves, Ataulfo Alves, Carmen Miranda
e outras estrelas de outras épocas.
"Mas o que eu gosto mesmo é dos sambistas. Quando me entrevistam eu sempre digo que
Paulinho da Viola é meu preferido, mas agora eu preciso confessar
que também gosto muito do Martinho da Vila e de outros, muitos
outros. A lista é grande. Entre as cantoras, ouço sempre os discos
da Beth Carvalho e da Alcione, de todas elas, mas não tenho como deixar de falar da
grande Clara Nunes. Oh, que mulher importante, talentosa, uma
guerreira do samba, e para a nossa sorte era daqui mesmo, era mineira", completa.
Descoberta de Clara Nunes
Mineiro nascido na cidade de Vespasiano, em 8 de dezembro de 1922, ele veio para Belo
Horizonte, a cidade onde passaria a vida inteira, ainda menino,
quando a família decidiu pela mudança definitiva para a capital, em
março de 1926. O endereço de Jadir Ambrósio, na esquina da Rua
Clara Nunes, não é puro acaso. Na verdade, o batismo da rua foi
sugestão dele, que insistiu muito com a Prefeitura e com os
vereadores que conhecia. Até que, há poucos anos, Clara Nunes
passou a ser o nome da rua no Bairro Renascença.
"Eu
conheci a Clara Nunes quando ela chegou numa festa que eu fazia no
adro da igreja de Santo Afonso, aqui mesmo no bairro. Ela era ainda quase uma
criança, tinha uns 16 anos, era órfã de pai e mãe e tinha vindo de Caetanópolis morar com tios e primas na capital e para
trabalhar como operária na Fábrica de Tecidos Renascença, que não
existe mais. Aí eu soube que era vizinho dela. Quando ela cantou foi
um acontecimento. Todo mundo ficou em silêncio, ouvindo, todo mundo admirado com o canto, com aquela voz. Depois a gente acabou ficando muito amigo daquela
moça tão talentosa que se chamava Clara Francisca, Clara Francisca Gonçalves. Fui eu quem a levou para as primeiras
participações nos programas de auditório. Foi assim que apareceu a
Clara Nunes. Esse nome artístico ela escolheu depois, porque Nunes era o sobrenome da mãe dela, que morreu quando ela tinha seis anos", conta o compositor, emocionado com as lembranças.
Clara
retribuiu a força que impulsionou sua carreira como cantora gravando
músicas de Jadir Ambrósio nos primeiros discos e depois, quando
estava no auge da fama, nas décadas de 1970 e 1980. "Clara
gravou várias de minhas composições. A que fez mais sucesso na voz
dela foi 'Noites de Farra'", recorda, cantarolando um trecho e
mostrando com os acordes do violão como foi o arranjo para abertura
da canção, segundo ele escolhido pela própria Clara. Com Jadir
Ambrósio, a música está sempre presente para ver a vida com mais
otimismo.
Entre
trechos cantarolados de marchinhas de Carnaval e sambas da velha
guarda, ele volta e meia retorna a sua composição mais celebrada, o
Hino ao Cruzeiro, seu time do coração. "O locutor Aldair Pinto
aproveitou o sucesso imediato do hino do Cruzeiro e virei freguês no
programa de auditório da Inconfidência, que era a maior audiência
da rádio naquele tempo", conta, com entusiasmo.
Na
mesma época em que surgiram em Minas Gerais os hinos do Cruzeiro e do Atlético,
outros compositores do primeiro time da música popular também
criaram obras em outros estados que celebravam o casamento entre música
e futebol. Entre outros nomes consagrados, o gaúcho Lupicínio
Rodrigues (1914-1974) criou o hino do Grêmio e o carioca Lamartine
Babo (1904-1963) criou o hino do Flamengo.
"Lamartine
era outro fenômeno", destaca Jadir Ambrósio. "Era
humorista, músico, cantor e um dos mais importantes compositores que
o Brasil já teve. Ele é autor do hino do Flamengo, do Fluminense,
do Botafogo, do América, do Vasco da Gama... Tem mais, mas não me
lembro agora. Também fez marchinhas de carnaval das melhores de
todas, 'O teu cabelo não nega', 'Linda morena', 'Cantoras do rádio',
'Joujoux e balangandãs', 'O hino do carnaval' e muitas outras. E
ainda são dele muitos outros clássicos que estão aí até hoje no cancioneiro brasileiro, 'No rancho
fundo', 'Serra da Boa Esperança'... Êh, Lamartine, grande Lamartine..."
Bandolim, pandeiro e tamborim
"Uma
das grandes alegrias que tive na vida foi quando colocaram meu hino
para o Cruzeiro num disco que reunia os hinos mais bonitos do futebol
brasileiro. Aquele disco, que saiu pela Continental, fez história e
até hoje as pessoas que eu conheço comentam e elogiam", conta,
com orgulho, enquanto procura o disco de vinil no móvel da sala.
"Deviam relançar esse disco que o sucesso ia se repetir. Todo torcedor tem um amor verdadeiro pelo hino de seu time de coração. E eu acho que futebol sempre teve ligação com a boa música", defende, lembrando que até a década de 1970 toda vila de Belo Horizonte tinha um clube de futebol com sua respectiva sede social.
"Nesta sede social dos clubes sempre tinha muito samba, muito choro de improviso, violão, cavaquinho, bandolim, pandeiro e tamborim. Havia nossas horas dançantes, tudo era motivo para comemoração, até aniversário de padre da paróquia", brinca. Outro ponto de encontro dos sambistas da antiga em Belo Horizonte, ele recorda, era a Associação dos Datilógrafos de Minas Gerais, na Rua Tupinambás. "Eles davam muita força para todos os sambistas, chegavam até a datilografar as letras da músicas", recorda, fazendo uma ou outra pausa muito breve na tentativa de trazer à memória um ou outro nome.
Depois
do seu primeiro sucesso, "Oi, sabiá", gravado pela dupla
Caxangá e Sanica pelo selo Columbia, em 1954, vieram outros sucessos
antes do divisor de águas que foi o hino do Cruzeiro, incluindo
samba, marchinhas, baião, xote e outros ritmos dançantes. Jadir
Ambrósio faz uma pausa e enumera seus principais sucessos: "Chô
Passarinho" (em parceria com Caxangá), "Buraco de Tatu"
(com Jair Silva), "Domenique" (com Henrique Almeida),
"História do Tico-tico" (com Xavier e Eli Murilo), "Índia
Guarani" (com Eli Murilo), "Professor Maluco" (com
Manoel Moes), "Protegido de Nossa Senhora" (com Jair
Silva), "Quando o Repórter Descobriu" (com Raguinho).
“Esses são os que estou lembrando agora, são os que foram
gravados por gente graúda, Luiz Gonzaga, Curió e Canarinho, Isnard
Simone, mas tem muitos outros”, ele diz.
Batuque na porta de casa
Batuque na porta de casa
"Desde
menino eu sou compositor. Engraçado é que naquelas primeiras
reuniões que a gente fazia, em frente lá de casa, na Cachoeirinha,
eu ainda estava aprendendo a tocar cavaquinho e violão e já
improvisava acordes e versos, inventava, juntava trovas e trechos de
sambas que eu tinha ouvido no rádio. São as minhas melhores
lembranças", confessa. "A vizinhança assistindo e a gente ali, aprendendo a
tocar o cavaquinho, depois o violão, o pandeiro e lata, casca de coco, pedaço de pau e tudo de percussão
que aparecesse".
"Só
lembro que era a maior diversão para os vizinhos todos e para nós
também, aqueles batuques e ensaios na porta de casa. Os vizinhos não
reclamavam, não. Muito pelo contrário. Eles gostavam tanto que a
brincadeira progrediu. Até que formamos o conjunto Os Filhos da Lua.
Não sou saudosista, mas que tempo bom era aquele. Ah, que
tempo bom..."
Apesar
de tantos sucessos que fizeram história na música de Minas Gerais
nas décadas passadas, Jadir Ambrósio conta que nunca conseguiu
viver somente do ofício em que é mestre aclamado por seus pares e
pelo público que acompanhou sua trajetória desde os tempos de
Getúlio Vargas, na década de 1930, época dos primeiros acordes com
os irmãos e com os amigos mais próximos em frente à casa em que
sua família morava, no Bairro Cachoeirinha.
"Sempre
fui um faz-tudo. Sou daquele tipo de gente que fez de tudo para
sobreviver. Só não roubei e nem enganei ninguém", conta, com
orgulho. "Uma vez teve até uma história engraçada, se não
fosse uma coisa muito séria. Lembro que eu voltava de um baile de Carnaval no Centro da cidade em que tinha estreado um saxofone
novinho em folha. Aquilo brilhava e eu voltava para casa andando a
pé, suado, vestindo uma fantasia de bloco de sujos”, recorda,
rindo muito do acontecido antes de contar como foi o desfecho da
aventura.
“E
lá ia eu, fazendo mesura com o saxofone tinindo de tão novinho. De
repente dou de cara com uma patrulha montada a cavalo, que me parou
porque achou aquilo suspeito. Imagine um negro de roupas de molambo
andando apressado, de madrugada, carregando um instrumento valioso
como aquele e ficando assustado porque encontrou a polícia. Foi
então que um dos policiais virou para mim e falou – se este
instrumento é seu, moço, então toca para provar que é verdade”.
Ele
diz que o medo e o susto o deixaram paralisado, mas daí a pouco o
coração voltou a bater compassado e a coragem o fez criar forças.
“Aí a coisa mudou. Com aquele desafio do guarda, toquei e toquei
com força. Mas com tanta força que os cavalos se espantaram e
fugiram em disparada pela ladeira abaixo. Foi uma confusão e uma lição para quem julgou apressado por puro preconceito",
conta, entre risos, divertindo-se com a lembrança do susto dos
policiais e com o desfecho inesperado que o caso tomou.
Samba e aposentadoria
Ao recordar passagens dos antigos carnavais, Jadir
Ambrósio também se lembra que em épocas diferentes, por necessidade, teve que
trabalhar muito em situações e condições nem sempre boas: já
capinou ruas, foi mecânico, ajudante de obras, escriturário,
vendedor. "Depois de muitos anos, consegui me aposentar como
auditor técnico de tributos da Prefeitura de Belo Horizonte",
recorda, lembrando de suas andanças pela capital que inspiraram uma
de suas marchinhas preferidas, que fala sobre o antigo Bairro da
Concórdia.
Minha
Concórdia
onde
estão seus tamborins
cadê
suas mulatas
minha
escola tão querida...
Entre
uma e outra melodia dedilhada ao violão, ele também conta que nunca
gostou de se apresentar em shows. "Gostava só no tempo do rádio
ao vivo. Meu negócio sempre foi roda de samba, baile de Carnaval e
desfile de blocos", revela. Entre seus planos para o futuro
próximo está o lançamento de um novo disco, que será seu terceiro
CD. "Estava tudo pronto quando adoeci e as coisas ficaram
paradas. Agora preciso retomar o projeto e marcar o lançamento do
disco, que até já está gravado, com canções inéditas e um ou
outro sucesso do passado", explica.
Segundo
lhe disseram, o lançamento do novo disco depende apenas de alguns
detalhes na conclusão dos trâmites burocráticos da Lei Municipal
de Incentivo à Cultura. "Para mim, música é coisa da alma.
Não vejo a música como um meio de vida. Aliás, nessa vida não
posso me queixar de nada. Foi através de minha música que conheci
muita gente do bem, gente de bom coração", registra. Entre os compositores de Minas
Gerais, sua preferência é pelos conterrâneos da velha guarda, como ele diz, destacando Rômulo Paes, Gervásio Horta, Valdir Silva e os irmãos Saraiva.
"Também tem o seu valor o trabalho de músicos de primeira que não são tão conhecidos do grande público, como o Serginho BH, o Fabinho do Terreiro e muitos outros. Muitos. Das gerações mais novas, respeito muito o Paulinho Pedra Azul, que tem uma personalidade musical como poucos que conheci em tantos anos de carreira", completa. Entre os compositores de outros lugares do Brasil, Jadir Ambrósio destaca um sempre chamou sua atenção e ganhou sua admiração desde a primeira vez que o ouviu cantar um samba, ao vivo, em um show em Belo Horizonte na década de 1960.
"É
o Paulinho da Viola. Que classe, que talento, que qualidade e elegância que ele tem que impressiona a gente! Lupicínio Rodrigues também é um dos grandes que guardo na lembrança,
mas se a gente for falar da velha guarda a lista é interminável,
porque tem muita gente boa que fez muito sucesso e agora anda esquecida pelas novas gerações", recorda e lamenta. "Comparar com os compositores de hoje em dia é
impossível, porque cada música sempre traduz a sua época. Hoje os tempos são outros. A
diferença é que a boa música permanece na vida das pessoas mesmo
quando passa o tempo. Não dizem por aí que recordar é viver? Pois então. Essa é a verdade mais pura e mais verdadeira de todas". Jadir Ambrósio conclui, sorrindo, com a segurança e a alegria de quem batalhou muito para confirmar todas as certezas que aprendeu com a música e com as experiências da vida que segue.
Como
citar:
ORLANDO,
José Antônio. Antigos carnavais. In: ______. Blog
Semióticas,
19
de fevereiro de 2012. Disponível no link
http://semioticas1.blogspot.com/2012/02/antigos-carnavais.html
(acessado em .../.../...).