Arte
não é só talento, mas sobretudo coragem.
A
arte é tão difícil como o amor.
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Glauber
Rocha. |
“Só
Morto”, o primeiro disco de um dos grandes nomes da MPB, está
finalmente disponível em CD. O original foi lançado em formato de LP de vinil em 1970
e desde então se tornou uma relíquia conhecida apenas pelos colecionadores. Por coincidência, chega agora pela primeira vez ao formato CD
como uma homenagem ao artista, que completou 70 anos no dia 3 de março. O nome
que consta na certidão de nascimento, por sinal, é tão incomum
quanto o nome artístico que ele adotou: Jards Anet da Silva. Desde o
final dos explosivos anos de 1960, ele assina somente Jards Macalé.
“Não
sei de onde tiraram essa história de que Macalé era o nome do pior
jogador do Botafogo. Sempre que vejo uma matéria sobre mim encontro
essa mesma história, de que ele era o pior. É tudo mentira”,
explica o próprio Jards na entrevista que fiz com ele por telefone para um jornal de Belo Horizonte. “Macalé não
era o pior e também não era o melhor. Era um jogador que naquela
época estava em evidência porque jogava no Botafogo e eu ganhei
este apelido porque eu também jogava futebol, só que na praia, e
achavam que ele era parecido comigo. Apelido é assim. Ou pega no ato
ou não pega”.
Senso
de humor apurado, cheio de ironia e afiado nas tiradas inteligentes,
Jards Macalé concedeu esta entrevista no dia seguinte a seu retorno
ao Rio de Janeiro, vindo de Nova York. A viagem foi um convite que ele nem pensou em recusar, porque era para acompanhar Eryk Rocha na estreia internacional do filme “Jards”, destaque do
festival New Directors/New Films, promovido pelo MoMA, Museu de Arte
Moderna.
Em
Nova York, Jards e Eryk Rocha, filho de Glauber, assistiram às
exibições concorridas e participaram de debates no MoMA, no Lincoln
Center e em programas de TV. O músico e o cineasta têm mesmo o que
comemorar, já que o filme foi aplaudido de pé e muito bem recebido
pela crítica, com elogios e reportagens de destaque nos principais
veículos de imprensa.
Começamos
a entrevista falando sobre o lançamento de “Só Morto” na versão
CD, que vem recheada de faixas-bônus que permaneceram inéditas por
décadas, mas no minuto seguinte o assunto vai para outras direções
e chega à estreia do filme nos Estados Unidos. “Foi uma
experiência tão fantástica que depois da estreia fomos celebrar no
Nublu, um dos redutos do jazz em Nova York, e a comemoração acabou
virando uma canja e o show seguiu com meu improviso no palco, pela
madrugada adentro”, conta Jards, feliz com o filme e com a parceria
com Eryk Rocha.
Parceiro
de Glauber
Novato
em cinema Jards não é – muito pelo contrário. Desde a década de
1960, participou como ator e compositor da trilha sonora em filmes
marcantes, incluindo um dos lendários longas de Glauber, “O Dragão
da Maldade contra o Santo Guerreiro”, além dos não menos
importantes “Amuleto de Ogum” e “Tenda dos Milagres”, de
Nelson Pereira dos Santos, “Macunaíma”, de Joaquim Pedro de
Andrade, “A Rainha Diaba”, de Antônio Carlos Fontoura, “Se
segura, malandro!", de Hugo Carvana, e “Getúlio Vargas”, de
Ana Carolina, entre vários outros.
Jards
comemora: “Já dizia meu grande amigo Hélio Oiticica que quanto
melhor, melhor”. No Brasil, “Jards”, o filme, estreou em
janeiro no Festival de Cinema de Tiradentes e segue na agenda de
outros festivais, mas só deve chegar ao circuito comercial no
segundo semestre de 2013. "Fazer este
filme com o Eryk foi muito especial. Foram três semanas no estúdio
com a equipe de filmagem, com três câmeras, e saiu um filme muito
melhor do que a encomenda. É um filme diferente, mais experimental,
que foi surgindo de tentativas, de repetições, de improvisos, e no
final ficou mesmo muito parecido com a música que venho tentando
fazer desde o primeiro disco”.
No cinema,
a próxima parceria já está agendada: Jards Macalé volta a
trabalhar com Nelson Pereira dos Santos, que depois do mergulho na
obra de Tom Jobim com os recentes “A Música Segundo Tom Jobim” e
“A Luz do Tom”, agora prepara um filme sobre o imperador Dom
Pedro 2°. “Nelson sabe o que faz e faz um cinema de verdade,
incomum. Tudo o que fiz na vida foi em busca desta verdade. E olhando
para trás acho que acertei algumas vezes”, ele diz, recordando
histórias engraçadas dos amigos e dos “erros e acertos” das
muitas parcerias em quase 50 anos de carreira. Mais acertos do que
erros, é bom destacar.
“Arte é
assim. Tem que sair do lugar de conforto, tem que procurar o novo,
tem que criar. Foi assim que a arte e a cultura no Brasil produziram o
que temos de melhor. Foi desse jeito com nossos grandes artistas, foi
assim com as revoluções que o Tropicalismo inventou”, destaca,
lembrando de novo o gênio de Hélio Oiticica. “Foi o Oiticica que
deu o pontapé inicial para o que chamamos de Tropicalismo quando
registrou em cartório a palavra Tropicália, lá em 1958. Hoje
ninguém mais fala disso, mas temos que falar porque é importante”.
É
proibido proibir!
Jards Macalé começou a carreira profissional em 1965, como violonista e diretor
musical dos primeiros espetáculos de Maria Bethânia no Rio de
Janeiro, e estava no “olho do furacão”, como ele diz, no mesmo
grupo que também tinha, entre outros, futuros medalhões das artes
plásticas, da literatura, do cinema e da música, além do poeta e
jornalista do Piauí Torquato Neto e dos baianos Caetano Veloso,
Gilberto Gil, Bethânia, Gal Costa, José Carlos Capinam.
“Lá
estávamos todos nós no apartamento em que eu morava em Ipanema, até
que um dia aconteceu o fogo que atravessou o Atlântico, vindo da
revolta dos estudantes nas ruas do maio de 1968 francês. Lembro que
foi o Guilherme Araújo que chegou de Paris muito
impressionado, contando que nunca viu nada igual, que os estudantes
tomaram as ruas da cidade, ficaram acampados, e por todo lado se via
os grafites dizendo 'é proibido proibir'. Para nós, que buscávamos
o novo, naquela ditadura militar que foi terrível, esta mensagem foi
uma luz no fim do túnel: é proibido proibir”.
A frase do
grafite das revoltas estudantis do maio de 1968 francês foi
transformada em canções que marcaram época e se fez a História,
contada ao telefone por um dos principais protagonistas. “Para nós,
que mergulhamos na Tropicália, naquele contexto de repressão, é
muito triste, tristíssimo, descobrir que hoje os espaços da mídia
no Brasil foram tomados por tanta estupidez, tanta bobagem repetida,
tanto lixo importado. Não sou contra o produto importado. Nunca fui.
Mas ao menos deveriam ter o cuidado de importar o luxo de outros
países, e não somente o lixo”.
E a
experiência de completar 70 anos? Muda alguma coisa ou não muda
nada? – pergunto. “Muda tudo”, ele responde, disparando uma
gargalhada. “Muda porque agora sou outra pessoa. Aquele Jards
Macalé que veio até aqui tem seu valor, vou guardar com carinho as
boas lembranças. Mas agora virei outro: nasceu o novo Jards”.
Obra em
várias mídias
Planos e
projetos encaminhados não faltam. O “novo Jards” segue na
temporada de lançamento do filme com Eryk Rocha no Brasil e no
exterior, está finalizando um CD com canções inéditas (que têm
como parceiros Adriana Calcanhotto, Elton Medeiros, Luiz Melodia),
organiza os registros de sua obra em várias mídias e está em
negociações para a instalação do acervo em um instituto cultural,
trabalha com Nelson Pereira dos Santos no novo filme e, para
completar, também faz parte do elenco que vai acompanhar o Papa
Francisco na Jornada Mundial da Juventude, programada para julho, no
Rio de Janeiro. Ele comemora, bem-humorado: “Jards com o Papa
Francisco, já pensou? Por essa ninguém esperava. Nem eu”.
O
“novo Jards” também diz que está surpreso e satisfeito com as
novas parcerias, mas quero ouvir sobre as histórias do passado e
pergunto sobre os antigos parceiros do velho Jards, incluindo Glauber
Rocha, Vinicius de Moraes, Egberto Gismonti, Hélio Oiticica, Lygia
Clark, Augusto Boal, Moreira da Silva, Paulinho da Viola, Jorge
Mautner, Naná Vasconcelos, Torquato, Capinam, Rogério Duprat, Chico
Buarque, Gal Costa, Bethânia, Clara Nunes, Nara Leão.
“Todos
parceiros da maior importância”, ele diz, lembrando de cada um
deles com histórias saborosas que trazem à conversa outros nomes,
outras artes, outras épocas. A conversa chega aos tempos sombrios da
ditadura militar, tempos difíceis, e Jards recorda as tristezas e a
repressão do período, mas também as alegrias e agitos da Swinging
London, durante a temporada que passou com Gilberto Gil e Caetano Veloso, que estavam
exilados na Inglaterra. Gil e Caetano foram presos pela ditadura militar em dezembro de 1968, acusados de subversão, e permaneceram presos durante meses, sem qualquer julgamento. Enquanto o mundo assistia ao pouso da espaçonave Apollo 11 na lua, em 21 de julho de 1969, Gil e Caetano eram obrigados a deixar o Brasil e seriam proibidos de retornar por mais três anos.
Da
temporada em Londres saíram duas obras-primas com participação
intensa de Jards Macalé: a primeira foi o filme “O Demiurgo”, de
Jorge Mautner, que além de Jards também teve no elenco Mautner,
Caetano, Gil, Norma Bengell, Péricles Cavalcanti, Roberto Aguilar, Leilah Assunção, Gal Costa e Dedé Gadelha, esposa de Caetano –
um filme experimental como poucos, mistura de drama, comédia, poesia, música e
filosofia. Glauber dizia que “O Demiurgo” é o melhor filme do exílio e sobre o exílio, enquanto Jorge Mautner define o filme como uma fábula musical e uma chanchada filosófica que retrata a saudade do Brasil.
A
segunda obra-prima desta temporada com os amigos no exílio em Londres permanece em destaque entre os
melhores discos brasileiros de todos os tempos, “Transa”, de
Caetano Veloso, álbum lançado em 1971, resultado de mais de oito meses de ensaios com produção e
arranjos por conta de Jards, Tutti Moreno, Moacyr Albuquerque e Áureo
de Souza. “Ensaiávamos num parque de Londres, todos os dias.
Parecíamos aqueles malucos do 'Blow Up' (filme de Michelangelo
Antonioni). Quem nos visse ali, sempre daquele jeito, pensaria que
estávamos num eterno piquenique”, recorda.
Vapor
barato
As
histórias de Londres trazem à tona as principais referências de
Jards, seus ídolos da Velha Guarda e os cantores e cantoras da Era
do Rádio, Carmen Miranda, Orlando Silva, Marlene e Emilinha Borba, o
primeiro encontro com Nélson Cavaquinho e Ciro Monteiro numa mesa de
botequim, a descoberta dos gigantes do jazz e o impacto que foi ouvir
pela primeira vez Erik Satie, compositor e pianista, precursor das
vanguardas minimalistas. Na trajetória da formação de Jards também
houve as aulas de música e os mestres que teve a sorte de encontrar
pelo caminho, Guerra Peixe, Turibio Santos, Dauelsberg, Jodacil
Damasceno, Ester Scliar.
Entre tantas histórias e personagens célebres que vão surgindo na entrevista, comento sobre a relação afetiva de
muitos da minha geração com as belas canções de Jards Macalé,
muitas delas com lugar cativo entre os grandes clássicos da MPB,
“Mal Secreto”, “Gothan City”, “Movimento dos Barcos”,
“Rua Real Grandeza”, “Poema da Rosa”, “ Anjo Exterminado”,
“Alteza”, "The Archaic Lonely Star Blues", "Love,
Try and Die" e, especialmente, “Vapor Barato”, sua parceria
com o poeta Wally Salomão que teve aquela mítica e longa versão ao
vivo de Gal Costa em “Fa-Tal / Gal a Todo Vapor”, em 1971, tido com um
dos shows mais importantes da música brasileira.
“Sim, você tem razão, porque Vapor
Barato é um hino. É uma história que entrou na vida de muita gente
lá nos anos 1970 com a interpretação 'Fa-Tal' da Gal e é uma
canção que volta sempre. Vapor Barato está sempre voltando. Voltou
nos anos 1990, no filme do Walter Salles ('Terra Estrangeira'),
depois voltou na gravação do Rappa, depois com o Zeca Baleiro.
Engraçado que toda hora tem alguém fazendo contato comigo por causa
de Vapor Barato, querendo Vapor Barato na trilha sonora disso e daquilo. O
que é muito bom. Só posso comemorar, porque também sempre gostei muito de Vapor Barato”.
Para
encerrar a entrevista, voltamos ao primeiro disco, “Só Morto”,
lançamento recente do Selo Discobertas. “Este CD foi outra grande
surpresa. Mas olha o que falei no começo da nossa conversa: aí já
é o novo Jards (risos). Foi um presente da melhor qualidade para o
novo Jards, uma homenagem bacana que recebi de presente de
aniversário de 70 anos do Marcelo Fróes, que é um cara muito
especial, um pesquisador e produtor como poucos, pouquíssimos”.
O
disco de 1970 tinha quatro músicas: “Soluços”, dele próprio,
e “O Crime”, parceria com Capinam, no Lado A. No Lado B, “Só
Morto / Burning Night” e “Sem Essa”, duas parcerias de Jards e
Duda (Carlos Eduardo Machado). “O Marcelo Fróes me procurou e
disse que tinha encontrado as outras gravações, todas elas inéditas
em CD. Fiquei animado com o projeto e, depois, quando recebi o CD
pronto, tão bem cuidado, tão profissional, foi só felicidade”.
“Só
Morto” saiu com as quatro faixas como compacto duplo em 1970.
Agora, tem como acréscimo 10 canções que foram gravadas ao vivo em
shows realizados entre 1970 e 1973, com Jards Macalé acompanhado do
Grupo Soma, um dos mais conceituados do “rock brasilis” na década
de 1970. As quatro canções do primeiro Jards não ganharam sucesso
popular, mas a importância daquele compacto duplo é sempre
destacada pelos fãs e pelos pesquisadores da música brasileira,
ainda que o disco permanecesse uma raridade, conhecido apenas por uns
poucos colecionadores.
Jards,
no comando dos arranjos, no violão e nos vocais, é sempre uma
surpresa: tom personalíssimo, grave, experimental e crítico, por
vezes gritado, por vezes irônico, festivo, ritmado. Na primeira
metade da década de 1970, Jards contava com o auxílio luxuoso do
Soma, formado por Ricardo Peixoto (guitarra), Jaime Shields
(guitarra), Bruno Henry (baixo) e Alírio Lima (bateria), além da
presença muito especial de Zé Rodrix no piano e no órgão.
Música
com atitude
Completam
a trilha de “Só Morto”, além das quatro canções originais,
uma lista de pérolas da MPB que inclui versões para “Gothan City”
(de Jards e Capinam), “Só Morto / Burning Night” (Jards e Duda),
“Let's Play That” (Jards e Torquato Neto), “Poema da Rosa”
(Jards e Augusto Boal), “Orora Analfabeta” (Belizário Gomes e
Waldeck Macedo) e mais três parcerias da dupla de “Vapor Barato”,
Jards e Wally Salomão, em “Revendo Amigos”, “Anjo Exterminado”
e “Rua Real Grandeza”.
O
novo Jards, tanto quanto o antigo, é falante, provocador,
imprevisível. Faz reverência aos amigos e às parcerias, em
especial a Wally Salomão, morto aos 60 anos, em 2003. “Wally é
uma pessoa importantíssima para mim e para o Brasil. Grande poeta,
grande pensador, grande na música e na atitude. Faz muita falta sua
inspiração, sua conversa franca”. Antes de concluir a entrevista,
arrisco um desafio: muitos se referem a você como “maldito da
MPB”, ou “marginal”, ou “pós-tropicalista”, mas qual é a
melhor definição para a música de Jards Macalé?
Ele
faz uma pausa e diz que para responder terá que recorrer a duas
figuras geniais, segundo ele duas das personalidades mais brilhantes
com as quais teve a sorte do convívio: Hélio Oiticica e João
Gilberto. “Veja bem... (risos). Vou responder sua pergunta, José,
com frases famosas dos mestres Oiticica e João Gilberto. Oiticica
dizia: minha arte é música, a arte que faço é música. E o João
Gilberto, quando faziam perguntas difíceis sobre a Bossa Nova,
respondia: Bossa Nova não existe, o que existe é samba. Então,
agora eu digo a você: minha vida é música, mas o que eu faço é
samba”. Só quando concluímos a entrevista é que percebo que
falamos durante quase duas horas. Agora, enquanto termino a redação
da matéria, penso na sábia definição do artista por ele mesmo e
acrescento: sim, é samba. Da melhor qualidade.
por
José Antônio Orlando.
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Como
citar:
ORLANDO,
José Antônio. O
novo Jards.
In: Blog
Semióticas,
25
de abril
de 2013.
Disponível no link
http://semioticas1.blogspot.com/2013/04/o-novo-jards_8633.html
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