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23 de março de 2012

Um certo Rubião








Todos os erros humanos são impaciência, uma
interrupção prematura de um trabalho metódico.

–– Franz Kafka, 1931.    



Quando ele estreou em livro, em 1947, com os contos de "O Ex-Mágico" – que abre com uma citação bíblica dos Salmos ("Inclina, Senhor, o teu ouvido, e ouve-me; porque eu sou desvalido e pobre") e uma primeira frase afirmativa e amarga ("Hoje sou funcionário público e este não é o meu desconsolo maior") – houve quem apontasse a semelhança entre os textos do escritor Murilo Rubião (1916-1991), mineiro de Carmo de Minas, e certas obras do tcheco Franz Kafka (1883-1924), nome de destaque do onírico e do fantástico na literatura universal e um dos maiores da língua alemã no século 20.

Rubião, assim como Kafka, foi um mestre das parábolas, aquele gênero sempre associado aos evangelhos do Novo Testamento, com suas histórias que têm um fim didático baseado em comparações de costumes ou observações analíticas sobre questões só na aparência insignificantes. Muitos já haviam percebido o parentesco da literatura personalíssima de Kafka com as parábolas de Murilo Rubião, mas é curioso que ele próprio nunca tenha admitido nem as semelhanças nem nenhuma influência vinda das obras do autor de “A Metamorfose”.

No final da década de 1980, o acaso e a sorte me proporcionaram a oportunidade de fazer uma longa entrevista com Rubião para o jornal "Tribuna de Minas", junto com outro repórter, Walter Sebastião, e com o fotógrafo Humberto Nicoline. Encontramos o escritor bem-humorado e cercado de estantes com coleções cuidadosamente encadernadas em couro, organizadas na sala ampla, com amplas janelas envidraçadas, no apartamento em que morava no Edifício Maletta, no centro de Belo Horizonte. Assim que começamos a conversa, ele foi veemente em negar qualquer aproximação com Kafka, o primeiro autor que surgiu, logo na primeira pergunta. Segundo Rubião, ele só chegou a ler pela primeira vez alguns textos do autor quando Kafka foi traduzido no Brasil, no final dos anos 1940 – mesma época em que Rubião publicava os contos de “O Ex-Mágico”.



.


Na entrevista, Rubião fez questão de esclarecer: Kafka não teve influência sobre o meu trabalho. Quando li os seus textos, no final da década de 1940, já tinha escrito a maioria dos contos que iria publicar 'O Ex-Mágico'. Era muito difícil o acesso aos textos dele. Uma ocasião, eu tinha mandado meus contos para o Mário de Andrade, pedindo a opinião dele, e ele me respondeu que era um tipo de literatura que o deixava muito insatisfeito. Explicava que era um trabalho inteligente, bem feito, mas que não o convencia plenamente, que não era o tipo de coisa que ele gostava e completava, na carta, dizendo 'como também é a literatura de Kafka'. Achei estranho aquele negócio”.

Concluindo os comentários sobre a constante aproximação que alguns críticos e leitores fazem entre sua literatura e a do autor tcheco, Rubião explicou por quais motivos achou estranha aquela comparação feita por Mário de Andrade. “Achei estranho porque eu nunca tinha ouvido falar de Kafka. Escrevi pedindo emprestado. Mário, então, respondeu que tinha dois livros. 'A Metamorfose' e 'O Processo', mas que estavam em alemão. Só muito mais tarde consegui ler 'O Processo', e vi que havia identidade com minha literatura. Achei curioso. Mas o fato é que eu já havia escrito três livros – eu só consegui editor para o terceiro – e, neste momento, você conhece um autor que poderia ter te influenciado. Verifiquei, ainda, que a identidade talvez se devesse às mesmas leituras. Kafka tem influência da mitologia grega; é possível que ele tenha influência da Bíblia, do Velho Testamento, que os judeus leem muito; que conhecesse os autores do fantástico alemão e francês. Sabe-se, ainda, do seu conhecimento das obras de Edgar Allan Poe, que teve muita influência sobre a minha literatura. Eu não tenho influência do Kafka, mas se tivesse seria ótima, é um bom autor. Agora a diferença é que a literatura dele é mais escura, noturna, enquanto a minha é mais solar.








Um certo Rubião: acima e abaixo, o escritor na sala
de seu 
apartamento, no Edifício Maletta, e nas ruas
do Centro 
de Belo Horizonte, fotografado em 1988
por Humberto Nicoline. Também abaixo,
imagens 
de arquivo publicadas nas edições dos
livros 
do autor sem identificação de autoria,
exceto quando indicado






Além de negar a aparente influência de Kafka, Murilo Rubião também não admitiu naquela entrevista, uma das últimas que concedeu, nenhuma filiação aos escritores do chamado "boom" do realismo mágico da literatura latino-americana, que a partir de 1960 ganhou repercussão no mercado editorial na Europa e Estados Unidos por conta do prestígio adquirido por nomes como Jorge Luis Borges, Julio Cortázar e Gabriel García Márquez, entre outros. Para ele, o prestígio de Borges era exagerado: Rubião preferia Cortázar, que ele considerava como o mais importante entre os autores do gênero da literatura fantástica e que chegou a conhecer pessoalmente, nas visitas que Cortázar fez a Minas Gerais. Cortázar era um autor que admirava de longa data.



Todos os contos



Ele foi um homem público destacado em Minas Gerais durante décadas. A lista de sua atuação registra, entre outras funções, seu papel como fundador e redator de jornais e revistas; criador do "Suplemento Literário do Minas Gerais" (que, sob seu comando, seria por alguns anos uma das melhores publicações do gênero no Brasil); Oficial de Gabinete em Belo Horizonte do governador Juscelino Kubitschek, de 1951 a 1955; chefe da publicidade de JK na disputa pela Presidência da República, em 1956; Adido Cultural do Brasil na Espanha de 1956 a 1960; diretor da Rádio Inconfidência e diretor da Escola Guignard, de Belas Artes e Artes Gráficas, a partir de 1967. Além da trajetória nos gabinetes e em cargos executivos no serviço público, Murilo Rubião também ocupa um lugar ímpar na literatura brasileira, com sete livros publicados de 1947 a 1990, reunindo 33 contos tão breves quanto fora do comum. 






Morto em 1991, aos 75 anos, o escritor retorna à cena com a edição de sua "Obra Completa" pela editora Companhia das Letras, que reúne 33 de seus textos fantásticos. "Incluímos nas edições da obras completas o conto 'A Diáspora', que não foi publicado em vida pelo autor, mas que estava em versão final, datilografada e revisada por ele, nos arquivos que fazem parte do Acervo dos Escritores Mineiros instalado na UFMG", explica a professora aposentada de literatura da UFMG, Vera Lúcia Andrade, responsável pela transferência dos arquivos de Rubião para a universidade e pelo estabelecimento dos textos na nova edição.

"Na verdade, todos os 33 textos fantásticos do Murilo Rubião já tinham sido publicados. Eu mesma havia feito o estabelecimento dos textos definitivos para a primeira publicação na editora Ática, que aconteceu em 1998, sob o título 'Contos Reunidos', tendo como editor Fernando Paixão. Foi quando, pela primeira vez, todos os contos do Murilo apareceram juntos em uma única edição em livro”, explica a professora.







Como naqueles eventos insólitos que pontuam a literatura que ele produziu, Murilo Rubião morreu às vésperas da abertura de uma grande exposição no Palácio das Artes, em Belo Horizonte. Organizada para ser uma homenagem em retrospectiva sobre sua vida e obra, a exposição contou com curadoria do professor, escritor e artista plástico Márcio Sampaio, apoiado por vários colaboradores e pesquisadores da obra do autor de "O Ex-Mágico". Com a morte do escritor, todos os arquivos, livros e objetos reunidos para a exposição acabaram transferidos ao final do evento para o acervo de escritores mineiros da UFMG.

"Murilo Rubião passou a vida reescrevendo sempre os mesmos textos, de tão perfeccionista e cuidadoso que era", destaca Vera Andrade, revelando que no acervo de Rubião ainda existem vários textos incompletos que nunca foram publicados. "Os herdeiros não autorizaram a publicação porque o próprio autor disse que eles ainda não estavam concluídos. Então, todos eles permanecem inéditos".













Um mundo à parte, fabuloso



O espantoso talento de Murilo Rubião para narrar, como se fossem fatos corriqueiros, acontecimentos os mais inusitados, transparece nas 33 obras-primas reunidas na "Obra Completa". Como na história só aparentemente absurda do pirotécnico que, morto, segue vivendo. Ou no caso da mulher que engorda desmedidamente conforme seus desejos vão sendo atendidos por seu amado.

Na obra de Rubião, cada texto breve encerra um mundo à parte, fabuloso, como na história do coelhinho falante que aborda o narrador com um pedido e, mutante, vai se insinuando em sua vida cotidiana. Ou ainda no desespero do mágico devorado por sua própria capacidade de operar prodígios, entre outros relatos insólitos e imprevisíveis. Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista que fiz com a professora Vera Andrade, que destaca a importância e a atualidade da obra de Murilo Rubião. 



Quem foi mais importante e influente, o Murilo Rubião da política ou o escritor ?

Vera Andrade – Ambos são igualmente importantes. O escritor produziu uma obra preciosa, até porque é o precursor da literatura fantástica no Brasil e o seu exemplo mais bem acabado. Já o Murilo da política cultural influenciou toda uma geração de escritores, que ficou conhecida como a "Geração Suplemento". Ele foi o "guru" dessa geração.











Um certo Rubião: no alto, o escritor em 1988,
fotografado por Humberto Nicoline. Acima,
Murilo Rubião com amigos em 1943:
de pé, a partir da esquerda, Otto Lara Resende,
Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos;
sentados, Murilo Rubião e Emílio Moura.

Abaixo, 1) Fernando Sabino, Murilo Rubião e
Hélio Pellegrino em Belo Horizonte, em 1943;
2) Fernando Sabino, Otto Lara Resende,
Rubião e Hélio Pellegrino; e 3) Murilo Rubião em
maio de 1968, na redação do Suplemento Literário
 em BH (a partir da esquerda, Affonso Ávila,
Ildeu Brandão, Décio Pignatari e Murilo Rubião).
 
Também abaixo, Murilo Rubião no inverno
de 1957 em Madri, quando era Adido Cultural
do Brasil na Espanha, durante o governo JK;
e em fotografias da década de 1980














 










Que lugar Murilo Rubião ocupa na literatura e na cultura brasileira?

Ele ocupa um lugar de destaque porque foi um homem público comprometido com o seu tempo, além de ser um escritor de uma escrita impecável, preocupado sempre em escrever e reescrever seus textos.

Ele sempre dizia que seus contos traziam a influência de Machado de Assis, da Bíblia e da Mitologia Grega. Esta tríade resume o universo de Murilo Rubião?

Na verdade, essa tríade representa bem as influências que ele traz em sua obra, mas não "resume" o universo de sua literatura, que é riquíssimo. Murilo foi leitor também de E. T. A. Hoffmann e dos demais românticos alemães, bem como do italiano Luigi Pirandello, para citar apenas alguns autores do universo da literatura fantástica.

Qual a importância da publicação da "Obra Completa"?

É de grande importância, por dar mais visibilidade ao trabalho ímpar de Murilo Rubião, colaborando para uma maior divulgação de sua obra, não só para o grande público leitor, mas também para os especialistas e para a pesquisa acadêmica.
















Um certo Rubião: dois retratos do escritor,
na maturidade e no primeiro ano de vida.
Abaixo, homenageado em pintura de
1985 do amigo
Petrônio Bax







Para um autor que publicou durante quase 50 anos, surpreende que a obra completa compreenda apenas 33 contos breves, ainda que sejam todos textos emblemáticos e irrepreensíveis. O que ainda existe de inédito entre os escritos de Murilo Rubião?

Existem contos praticamente acabados, além de esboços de outros contos, e até de uma novela, mas tudo indica que esses textos, parece-me, continuarão inéditos, pelo menos por muito tempo.


por José Antônio Orlando.


Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Um certo Rubião. In: Blog Semióticas, 23 de março de 2012. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2012/03/um-certo-rubiao.html (acessado em .../.../...).







 
 
Obra Completa / Contos (Companhia das Letras)



1. O pirotécnico Zacarias 14

2. O ex-mágico da Taberna Minhota 21

3. Bárbara 27

4. A cidade 33

5. Ofélia, meu cachimbo e o mar 39

6. A flor de vidro 44

7. Os dragões 47

8. Teleco, o coelhinho 52

9. O edifício 60

10. O lodo 67

11. A fila 76

12. A Casa do Girassol Vermelho 90

13. Alfredo 98

14. Marina, a Intangível 103

15. Os três nomes de Godofredo 111

16. Memórias do contabilista Pedro Inácio 118

17. Bruma (a estrela vermelha) 124

18. D. José não era 129

19. A Lua 132

20. A armadilha 135

21. O bloqueio 139

22. A diáspora 145

23. O homem do boné cinzento 151

24. Mariazinha 156

25. Elisa 161

26. A noiva da casa azul 164

27. O bom amigo Batista 169

28. Epidólia 175

29. Petúnia 183

30. Aglaia 190

31. O convidado 197

32. Botão-de-rosa 207

33. Os comensais 216






Livros publicados por Murilo Rubião: 



O ex-mágico (Universal, 1947)

A estrela vermelha (Hipocampo, 1953)
 

Os dragões e outros contos (Movimento-Perspectiva, 1965)
 

O pirotécnico Zacarias (Quíron, 1974)
 

O convidado (Ática, 1974)

A casa do girassol vermelho (Ática, 1978)

O homem do boné cinzento e outras histórias (Ática, 1990)
 

 





23 de outubro de 2011

Gullar em verso









Todas as coisas têm o seu mistério,  
e a poesia é o mistério de todas as coisas.  

–– Federico García Lorca.      








Poesia é coisa rara, que não depende da vontade do poeta e nem da disposição ou da pressa. É o que explica o poeta Ferreira Gullar na entrevista que fiz com ele por telefone, do Rio de Janeiro, para um jornal de Belo Horizonte. Quando atende o telefone, o poeta pede que a entrevista seja breve e diz que ainda está emocionado com a conquista recente de duas homenagens do primeiro escalão: o Prêmio Jabuti 2011 na categoria poesia e o Prêmio Camões da edição 2010 – concedido como reconhecimento ao conjunto de sua obra extensa e considerado por unanimidade a a mais importante premiação literária da língua portuguesa.

Aos 81 anos, festejados no dia 10 de setembro, Gullar recebe os tributos pelo lançamento de seu mais recente livro de poemas inéditos, batizado de "Em Alguma Parte Alguma" (Editora José Olympio). Ao telefone, responde ao pedido de entrevista com monossílabos, entre o desdém e a rabugice. Falo de nossos encontros anteriores em eventos em Belo Horizonte, de outras entrevistas que fiz com ele, ao vivo e também pelo telefone, mas mesmo assim o poeta segue algo impaciente, algo irritado, demonstrando seu conhecido mau humor. Ele concorda com a entrevista e apenas pede brevidade, alegando que está exausto porque retornou de uma viagem internacional e que está em casa aguardando visitas. Combinamos 10 minutos, no máximo, mas a conversa prosperou para além dos monossílabos e quase chega a uma hora.

"Você sabe que meu interesse por arte vai além da literatura, sempre me dediquei à crítica de artes plásticas e também a curadoria de exposições. E na literatura nunca fiquei somente na poesia, também levei muito a sério a dramaturgia, escrevi ensaios, traduções, memórias, ficções curtas que alguns chamam de contos e até uma biografia. Por isso é que a premiação me enche de orgulho. É claro que ser o vencedor de um prêmio importante como o Prêmio Camões é uma honra grandiosa para qualquer escritor, é claro que fiquei contente com o reconhecimento, como é que não ficaria?", reconhece o poeta, em tom de desafio e irritação com a pergunta, mantendo sua fama de quem não foge à polêmica, ou antes que a cultiva, quase como uma estratégia para marcar presença na lista dos mais controversos intelectuais brasileiros das últimas décadas.








Acima e no alto, telas e instalação Ann, Dancer,
do artista britânico Julian Opie, apresentados no
dia 20 de outubro de 2011 na cerimônia de abertura
da International Contemporary Art Fair (FIAC)
 no Grand Palais, Museu do Louvre, em Paris.

Abaixo, Ferreira Gullar em 2010, fotografado
por Murilo Meirelles, e em 2005, na gravação
do DVD para Poema Sujo














"Todo poeta e todo escritor escreve para o outro, para que o outro reconheça o que ele sente e pensa, independente de concordar ou não com as ideias apresentadas. Por isso, os prêmios são importantes: porque significam que o trabalho foi reconhecido e destacado. Ainda mais quando o prêmio é concedido por um júri categorizado como o Camões", completa, meio que amenizando o tom desafiador e enfastiado, como se já tivesse respondido a todas as perguntas e como se qualquer nova questão já fosse assunto há muito encerrado.

"Você sabe que sempre tive sorte com prêmios, não posso me queixar. Já recebi o prêmio da Academia Brasileira de Letras, dois ou três Jabutis e outras comendas importantes. Nada mal para alguém que nunca fugiu da polêmica", confessa, recordando uma ou outra celeuma, entre elas suas provocações aos grandes nomes da Poesia Concreta, Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari, que gerou disputas e ataques que marcaram época, mas que segundo Ferreira Gullar também ficaram no passado. "São histórias que tiveram sua importância sim, mas que o tempo minimizou, quando não aproximou do esquecimento", explica.













Lembrança do risível



Ferreira Gullar ri quando lembra de uma ou outra questão das disputas com os concretistas e outros intelectuais e poetas e faz questão de dizer que chegou às polêmicas não pelo prazer de gerar polêmica, mas porque sua vontade de escrever sempre seguiu pelo caminho pleno da indagação. "Sou do tipo reflexivo, gosto das indagações, gosto de preservar o espírito crítico", destaca.

"Eu nunca tive medo de pensar por mim mesmo e nunca pude ficar preso a uma verdade indiscutível". Antes de “Em Alguma Parte Alguma”, o livro de poemas mais recente de Gullar era "Muitas Vozes", publicado em 1999. De lá para cá, ele lançou ensaios ("Relâmpagos", 2003) e crônicas ("Resmungos", 2007), além de uma versão para “Poema Sujo” em DVD e traduções, entre elas “Eros & Psiqué”.

"Sempre publiquei livros de poemas com intervalos de alguns anos e às vezes de mais de uma década. Não concordo nunca com o fácil, com o naturalismo, com o critério que aprova qualquer coisa. Poesia tem que dizer algo mais, tem que ser muito bem feita. Ou então não merece ser feita", dispara, citando um ou outro nome da lista dos que, segundo ele próprio, "se auto-intitulam poetas, mas que na verdade não foram, não passam de oportunistas, embusteiros".









Sobre o título do novo livro, ele explica que foi extraído de um verso de um dos poemas inéditos, "A Corola", que tem como tema de fundo a comparação do poema a uma flor. "A ideia é essa. O poema é uma flor que floresce em alguma parte alguma". O livro reúne uma seleção de 80 poemas curtos. "Todos os meus livros de poesia são de certa forma parecidos e têm quase sempre a mesma extensão. Isso quase nunca varia, é quase uma regra", ele diz.

Ferreira Gullar, que esteve recentemente em Belo Horizonte, cidade que visitou várias vezes nos últimos anos, para participar de eventos como conferencista e em lançamentos e sessões de autógrafos, garante que a oportunidade de visitar Minas Gerais é sempre uma experiência especialíssima que ele abraça com as melhores expectativas. "Tenho sempre uma satisfação enorme quando visito Belo Horizonte. Aqui tenho amigos e pessoas que só me alegram no convívio. É sempre um prazer. Não recuso nunca uma viagem a Minas quando me convidam", reconhece.



Viagem a Minas



 

O poeta, que durante o avançar da entrevista ao telefone foi perdendo o tom ranzinza e mau humorado, até conta situações para ele engraçadas das últimas das últimas visitas que fez à capital de Minas Gerais. "Estive aí várias vezes recentemente, algumas participando do projeto Sempre Um Papo do Afonso Borges. Guardo lembranças especialmente boas dos mineiros e das pessoas de Belo Horizonte", recorda, destacando uma lista de amigos de longa data, entre personalidades ilustres e alguns desconhecidos do grande público.







Uma referência de Gullar: O escultor, poeta e mestre
em artes gráficas Amilcar de Castro (1920-2002).

Abaixo, Ferreira Gullar em 1992, fotografado
por Carlos Chicarino, e com Maria Bethânia
e Bibi Ferreira em fotografia de 2004











"Belo Horizonte é uma cidade única, com pessoas que têm uma relação afetiva muito forte com arte e literatura. É um lugar em que mantenho amigos de longa data. Alguns até já se foram, caso do Amilcar de Castro, grande amigo que conheci na casa do Mário Pedrosa quando ele estava chegando ao Rio, em 1952", ele diz - antes de informar que deve sair em breve um livro inédito dos raros poemas de Amilcar, que morreu em 2002.

"A filha do Amilcar me enviou todos os poemas que ele escreveu e eu sugeri Augusto Bastos, um especialista, para organizar o livro. Além de grande escultor e artista gráfico, o Amilcar foi um poeta dos mais interessantes que conheci", avalia. "Os leitores vão ficar surpresos quando puderem ler o livro com os poemas bissextos que o grande Amilcar de Castro produziu".







Ferreira Gullar é pai de três filhos – um deles morto há alguns anos. "Meu filho e minha filha gostam muito de música. Ele é também pintor, muito discreto, e os dois têm uma relação muito próxima com a música e a literatura. Meus filhos não são escritores nem poetas, mas são bons leitores", explica, bem-humorado. Diz que lê muito no dia a dia ("jornais, revistas, livros e sempre os poetas mais importantes - Drummond, Murilo Mendes, João Cabral, e os estrangeiros, Rilke e outros") e que gosta de viajar.

"Mas só viajo de carro, nunca de avião. Aviões e aeroportos são muito estressantes. Há mais de seis anos aboli definitivamente os aviões de minha agenda", confessa. Nascido em setembro de 1930 em São Luís, no Maranhão, e batizado como José Ribamar Ferreira, ele adotou como pseudônimo o nome Ferreira, que é o sobrenome da família do pai, e Gullar, em homenagem ao sobrenome da mãe, Alzira Goulart, aportuguesando a grafia para "Gullar". Como ele mesmo ressaltou no começo da entrevista, além de poeta de reconhecida grandeza, também tem longa trajetória como cronista, crítico de arte, curador biógrafo, roteirista, dramaturgo, tradutor, memorialista e ensaísta.







Poema Marinheiro



Para encerrar a entrevista, ele retorna a conversa ao começo, à sua estreia em livro, em 1949, com "Um Pouco Acima do Chão". "Gosto sim deste primeiro livro, mas tenho reconhecer que eu ainda era um poeta imaturo. Eu tinha apenas 18 anos quando publiquei. Fosse hoje, o livro seria muito diferente, o tom e a elaboração de cada poema seriam muito diferentes. O tempo traz muito aprendizado, muda nossa visão de mundo", reconhece, mas destacando que é naquele primeiro livro que estão alguns dos seus poemas que permanecem entre seus favoritos, entre eles "Marinheiro", do qual ele recita um longo trecho, depois de uma breve pausa, com facilidade e entonação personalíssima:


"Tudo que é triste,
tudo que é bom,
tudo que é belo,
tudo que existe,
tudo que sonhas

poder olhar;
todas as cousas
que inda não viste
- todas as cousas
estão no mar:

barcos fantasmas,
velhas galeras
jazem tristonhas
sobre as areias,
dormindo cheias
de ouro e de prata;
por suas salas
passeiam peixes
entre piratas,
- homens-fantasmas -
que, embebedados,
cantam cantigas
e bebem rum;

tristes escunas
de velas rotas,
mastros quebrados
só de acenar
para a lembrança
do último porto
- tristes escunas
de casco roto
só de chorar!..."

(e o marinheiro

ouvia absorto)

"Tudo que é morto

vive no mar!...

Crianças mortas
de olhos de pérola,
boquinha de âmbar,
como a sonhar,
arrumam búzios,
conchas, estrelas,
pedrinhas brancas
cor de luar.

Deusas formosas
de claros braços,
cabelos de algas,
ventre de espuma,
líquido olhar
- dançam frementes,
bulindo os seios,
gingando o ventre
para Netuno
se deleitar.


Vênus perfeitas
como a de Milo,
que não desejam
sair do mar..."

 






Ferreira Gullar termina de recitar o trecho do poema, faz outra pausa, mais longa, respira fundo e diz que “Marinheiro” encerrou um dos eventos emocionantes que fez há pouco tempo em Belo Horizonte, no Palácio das Artes, dedicado à experiência poética do paraibano Augusto dos Anjos (1884-1914), um dos poetas que o autor de "Em Alguma Parte Alguma" tem como como referência e lembrança de afeto entre todos os nomes da poesia brasileira.

"Você sabe, o projeto 'Terças Poéticas' sempre convida alguém para homenagear um poeta. Então, escolhi o Augusto dos Anjos, que produziu uma poesia encantadora e muito atual sob diversos aspectos. É interessante como o Augusto dos Anjos antecipa a poesia dos modernistas na temática e na linguagem, no uso de palavras banais e até anti-poéticas para aquela época. Ele foi um dos poetas mais críticos de seu tempo, e por isso reconheço nele um valor especial", avalia.



Poema Sujo em DVD



A história de “Poema Sujo”, Gullar ironiza, daria um filme daqueles bem sofridos que leva a plateia à lágrimas. Em outubro de 2005, o poeta foi ao Instituto Moreira Salles, na Gávea, Rio de Janeiro, para ler um poema que havia concluído 30 anos antes, em seu exílio em Buenos Aires. A cerimônia foi filmada pelo documentarista João Moreira Salles e lançada recentemente em DVD.










Com o próprio Ferreira Gullar e participação dos críticos Alcides Villaça e Antonio Carlos Secchin, a cerimônia apresentada no DVD teve mediação pelo poeta Eucanaã Ferraz. O registro foi inspirado na história da chegada do "Poema sujo" ao Brasil em 1975, numa fita cassete com leitura feita por Gullar, gravada e trazida para cá por Vinicius de Moraes.

Gullar recorda, ao telefone, que em 2005, quando o "Poema sujo" completava 30 anos, Antonio Fernando de Franceschi, também poeta e na época diretor do Instituto Moreira Salles, propôs que ele o regravasse, devolvendo-lhe a forma com que chegara ao Brasil. "O DVD reproduz a íntegra da filmagem, sem cortes, entram erros, hesitações, pigarros e demais impurezas”, ironiza Gullar. Além da leitura, o DVD traz uma entrevista com Gullar feita por Franceschi.



Eros e Psiquê



Diz a lenda que a mitologia grega na Antiguidade era tão forte que quando os gregos foram dominados pelos romanos aconteceu o improvável: os súditos de Roma abandonaram seus deuses e mitos para abraçar os deuses e mitos da Grécia. A história de Eros e Psiquê remonta este fascínio dos romanos pela mitologia dos habitantes de Atenas e outras cidades gregas. 
 


Inserida no livro "O Asno de Ouro", do escritor romano Lucius Apuleio, que viveu no segundo século depois de Cristo, o relato ganha nova tradução para o português assinada pelo poeta Ferreira Gullar. Em "Eros e Psiquê" (Editora FTD), o poeta conta com projeto gráfico belíssimo e ilustrações em preto, branco e ocre de Fernando Vilela para recontar o amor entre o deus Eros, filho de Vênus, e um ser humano (Psiquê) cuja beleza não pode ser expressa em palavras.

No enredo de Apuleio, os homens abandonam os templos de Vênus e descuidam de seu culto, prestando homenagens a Psiquê. Então a deusa decide vingar-se da jovem. Repleta de aventura, sentimentos extremados e sortilégios, a versão de Gullar para o clássico resgata a versão integral. Alguns adjetivos: belo, complexo e indispensável. Ou, nas palavras com que o próprio Ferreira Gullar abriu a entrevista: "Poesia é coisa rara. É arte. E a arte existe porque a vida não basta".

por José Antônio Orlando.



Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Gullar em verso. In: Blog Semióticas, 23 de outubro de 2011. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2011/10/gullar-em-verso.html (acessado em .../.../...).



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––  fac-símile extraído de uma página do
livro Em Alguma Parte Alguma. Abaixo,
Ferreira Gullar em fotografia de 2010





 



Principais trabalhos de Ferreira Gullar



Poesia

Um pouco acima do chão, 1949
A luta corporal, 1954
Poemas, 1958
João Boa-Morte, cabra marcado para morrer (cordel), 1962
Quem matou Aparecida? (cordel), 1962
A luta corporal e novos poemas, 1966
História de um valente, (cordel; na clandestinidade, como João Salgueiro), 1966
Por você por mim, 1968
Dentro da noite veloz, 1975
Poema sujo, (onde localiza-se a letra de Trenzinho do Caipira) 1976
Na vertigem do dia, 1980
Crime na flora ou Ordem e progresso, 1986
Barulhos, 1987
O formigueiro, 1991
Muitas vozes, 1999
Um gato chamado Gatinho, 2005
Em alguma parte alguma, 2010


Antologias 

Antologia poética, 1977
Toda poesia, 1980
Ferreira Gullar - seleção de Beth Brait, 1981
Os melhores poemas de Ferreira Gullar - seleção de Alfredo Bosi, 1983
Poemas escolhidos, 1989


Contos e crônicas

Gamação, 1996
Cidades inventadas, 1997
Resmungos, 2007


Teatro

Um rubi no umbigo, 1979


Literatura Infantil

Zoologia bizarra, 2011


Crônicas 

A estranha vida banal, 1989
O menino e o arco-íris, 2001


Memórias 

Rabo de foguete - Os anos de exílio, 1998


Biografia 

Nise da Silveira: uma psiquiatra rebelde, 1996


Ensaios 

Teoria do não-objeto, 1959
Cultura posta em questão, 1965
Vanguarda e subdesenvolvimento, 1969
Augusto do Anjos ou Vida e morte nordestina, 1977
Tentativa de compreensão: arte concreta, arte neoconcreta - Uma contribuição brasileira, 1977
Uma luz no chão, 1978
Sobre arte, 1983
Etapas da arte contemporânea: do cubismo à arte neoconcreta, 1985
Indagações de hoje, 1989
Argumentação contra a morte da arte, 1993
O Grupo Frente e a reação neoconcreta, 1998
Cultura posta em questão/Vanguarda e subdesenvolvimento, 2002
Rembrandt, 2002
Relâmpagos, 2003


Televisão 

Araponga - 1990/1991 (Rede Globo) - colaborador / roteirista
Dona Flor e Seus Dois Maridos - 1998 (Rede Globo) - colaborador / roteirista
Irmãos Coragem - 1995 (Rede Globo) - colaborador / roteirista
O Fim do Mundo - 1996 (Rede Globo) - colaborador / roteirista





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