Preciso
dizer que, quando acordei
hoje de
manhã,
eu sabia quem eu era, mas acho
que
já mudei muitas vezes desde então.
(Alice
no País das Maravilhas)
|
Os
inúmeros trocadilhos e enigmas de matemática, de lógica, de
gramática e de ocultismo cifrados nas viagens de “Alice no País
das Maravilhas” (1865) e “Alice Através do Espelho” (1872)
encantaram a pequena Alice Pleasance Liddell (1852–1934) desde que
ela ouviu pela primeira vez os relatos da imaginação de seu
professor, o matemático, poeta e pioneiro da fotografia Charles
Lutwidge Dodgson (1832–1898). As aventuras da garotinha que cai no
buraco do coelho e descobre um estranho mundo de simetrias e
disparates também passaram a encantar uma legião infinita de
leitores quando foram publicadas por Dodgson sob o pseudônimo “Lewis
Carroll” – na verdade, um anagrama em analogia para “Alice
Liddell”.
O
pseudônimo adotado pelo professor Dodgson ganhou lugar cativo entre
os grandes mestres da literatura universal e as aventuras cifradas de
Alice, que causaram espanto e admiração entre seus conterrâneos e
contemporâneos, resistem incólumes. Transformada em clássico dos
clássicos da fantasia e das heterotopias, “Alice” atravessou as
décadas e os séculos ganhando novas edições e incontáveis
versões, incluindo variações e paródias em livros, histórias em quadrinhos, peças de teatro, músicas, balés, filmes, séries de TV e até videogames (como "Alice: Madness Returns", game criado para várias plataformas pelo designer American James McGee, que transformou a história em uma saga de horror). As aventuras de Alice, seja no original de Lewis Carroll ou em suas variantes em outros formatos e mídias, há tempos vêm influenciando e seduzindo listas intermináveis de
artistas, entre eles nomes díspares e mestres consagrados como Walt
Disney (1901–1966) e Salvador Dalí (1904–1989).
O
mestre dos desenhos animados, que sempre reconheceu a literatura de
Lewis Carroll como influência marcante, elegeu “Alice” para seu
primeiro projeto de longa-metragem nos cinemas desde que foi para
Hollywood, em 1923, mas sua produção seria atropelada diversas
vezes por lançamentos dos concorrentes. “Alice”, na versão dos
Estúdios Disney, só seria concluído em 1951, contando com a
luxuosa supervisão de Salvador Dalí. O lançamento do filme,
contudo, seria precedido por desentendimentos que interromperam a
promissora parceria entre o mestre dos desenhos animados e o mestre
surrealista.
Disney
e Dalí romperam relações antes de “Alice” chegar aos cinemas:
o nome de Dalí seria eliminado dos créditos e um outro projeto
ambicioso da parceria, batizado de “Destino”, que começou a ser produzido em 1945 e que tentaria
recriar a obra original do professor Dodgson, ficaria inacabado. Na
autobiografia “Diário de um Gênio” (Tusquets Editores), Dalí
lamenta o rompimento e afirma que sua parceria com Disney poderia ter
dado origem a um filme diferente de tudo o que tinha sido visto no
cinema. Anos depois, no final da década de 1950, Dalí e Disney voltaram a se entender e conviveram como amigos, mas os antigos projetos não foram retomados.
Dodgson, Disney, Dalí: D'Alice
A
ideia de Dalí, a princípio endossada por Disney, era apresentar
sequências que lembrariam sonhos, desenvolvendo uma técnica de
projeção em que a imagem seria reconhecida como algo familiar e,
lentamente, forçaria a visualização de formas cada vez mais
estranhas, que poderiam revelar algo novo. O projeto foi conduzido por Dalí e por John Hench, veterano roteirista e artista de confiança de Disney para a criação em storyboard, durante meses, de 1945 até o final de 1946, mas dificuldades financeiras interromperam definitivamente a produção. Depois da morte de Disney
e de Dalí, o projeto “Destino” foi retomado para fazer parte de
“Fantasia 2000”, mas as controvérsias não demoraram a surgir.
Quando
as equipes começaram, depois de meio século, a trabalhar nos
arquivos e storyboards de “Destino”, descobriram que Disney
planejava com o filme retomar a literatura de Lewis Carroll com uma
Alice levada à vida adulta e envolvida em sonhos sobre as emoções
do primeiro amor – enquanto Dalí tinha em mente um argumento em
que o deus Chronos, personificação do tempo na mitologia
grega, se apaixonava radicalmente por uma mortal.
A parceria interrompida de dois artistas geniais: Salvador Dalí e Walt Disney fotografados na Espanha, na década de 1950, e trabalhando na criação e na montagem de protótipos nos Estúdios Disney, em Hollywood, 1948 (abaixo) |
Ou
seja: eram dois filmes diferentes. Um, descrito por Dalí como
"a exibição mágica do problema da vida no labirinto do
tempo"; outro, descrito por Disney como "a história
simples sobre uma jovem em busca do verdadeiro amor". “Destino”
seria finalmente simplificado e concluído em 2003 por Baker
Bloodworth e por Roy Edward Disney, sobrinho de Walt Disney, mobilizando uma grande equipe, com o francês Dominique Monféry assinando a direção e tendo na
trilha sonora a composições do mexicano Armando Dominguez criadas sob encomenda para o
projeto original, em performance da cantora Dora Luz. John Hech, já aposentado e com mais de 90 anos, foi convidado a acompanhar a produção e é creditado como co-autor do roteiro, junto com Dalí e com o editor e animador Donald W. Ernst.
A versão final de "Destino", entretanto, dividiu opiniões. Para alguns, trata-se de uma
preciosidade que deixa transparecer nuances adultos presentes tanto
em “Alice” quantos nas obras-primas atribuídas a Salvador Dalí
e a Walt Disney; para outros, uma versão convencional e melancólica
sobre um projeto que poderia ter atingido outras dimensões. Na forma
de uma animação de seis minutos e apresentando apenas 18 segundos
do projeto original (a sequência das tartarugas), o enredo onírico
apresenta a protagonista entre imagens abstratas e estranhas figuras
suspensas pelo ar. “Destino” foi exibido em festivais e chegou a
ser indicado ao Oscar de Melhor Curta de Animação em 2003, mas não foi lançado nos cinemas nem em DVD.
Apaixonados
pela literatura de Lewis Carroll desde a infância, Disney e Dalí se
aproximaram depois de um jantar em 1945 na casa de Jack Warner, o
todo-poderoso chefão da Warner Brothers. Dalí, que naquela época
estava contratado para criar a sequência do pesadelo do personagem
de Gregory Peck em “Spellbound” (1945), de Alfred Hitchcock,
chegou a Hollywood precedido pelo sucesso como artista plástico e
como criador de duas obras-primas do cinema e do Surrealismo: “Um
Cão Andaluz” (1928) e “A Idade do Ouro” (1930), realizados em
parceria com Luis Buñuel.
Política da Boa
Vizinhança
A
parceria com Salvador Dalí aconteceu em um período especialmente
difícil para Walt Disney. O projeto de “Fantasia” (1940), que
consumiu anos de produção e teve altos custos, não alcançou
sucesso comercial. A situação piorou mais ainda com a drástica
redução do mercado de exibição na Europa, em decorrência da
Segunda Guerra. Disney perdeu as linhas de crédito do Bank of
America e, para não perder os estúdios, passou a fazer todo tipo de
concessão comercial e a colaborar com o FBI e as forças armadas.
É
nesta época – no intervalo entre as produções de “Bambi”
(1942) e “Cinderela” (1950), considerado o período mais fraco de
sua trajetória na arte da animação – que Disney é forçado por
seus credores a se envolver com a produção de filmes para
treinamento militar e propaganda, incluindo “Alô, Amigos”
(“Saludos Amigos, 1943) e “Você Já Foi à Bahia?” (“The
Three Caballeros”, 1945), projetos sob encomenda para a “política
da boa vizinhança” do governo dos EUA com o objetivo de
aproximação com o Brasil e demais países da América Latina.
Terminada
a Segunda Guerra, Disney participa da Aliança do Cinema para a
Preservação dos Ideais Estadunidenses, com a meta de combater o
comunismo no meio artístico, e presta voluntariamente diversos
depoimentos na Comissão de Atividades Antiamericanas, um "comitê
de caça aos comunistas" comandado pelo senador republicano
Joseph McCarthy. Do primeiro encontro, em 1945, até o rompimento da
parceria, em 1950, Disney e Dalí mantiveram sigilo sobre os projetos
de “Alice” e “Destino”, que envolveram um grande número de
contratados nas equipes técnicas, substituídas continuamente.
Para
ensinar a Dalí as técnicas de animação do estúdio foi convocado
John Hench, artista que tinha trabalhado com Disney em “Fantasia”
(1940), “Dumbo” (1941) e “Bambi” (1942). Para
protagonista de “Alice”, Disney queria Ginger Rogers, estrela dos
musicais, contracenando com os desenhos animados, que por sua vez
seriam baseados nas ilustrações de John Tenniel publicadas na
primeira edição do livro de Lewis Carroll. A meta de Disney era
aprimorar com “Alice” a tecnologia inaugurada por seus estúdios
em “Você Já Foi à Bahia”, que trouxe Aurora Miranda, irmã de
Carmen Miranda, cantando e dançando em cena com os desenhos do Pato
Donald e do Zé Carioca.
Como
não conseguiu contratar Ginger Rogers, que estava envolvida em
outros projetos simultâneos, Disney passou dois anos fazendo testes
e audições com mais de 200 atrizes. Por fim, escolheu Kathryn
Beaumont como modelo de referência para o trabalho das equipes de
desenhistas e dos técnicos de animação. Kathryn estava com 10 anos na época dos testes de seleção, no final de 1948. Ela havia participado de filmes da série “Lassie” e teve pequenos papeis em musicais. Após atuar na produção de “Alice”, também participou como modelo e dubladora de Wendy Darling, a garotinha de “Peter Pan”, filme de 1953 dos estúdios de Walt Disney.
Alice
em heliogravura
Acontece que mesmo depois de todo o investimento, Disney não ficou satisfeito com as
sequências misturando atores aos cenários em desenho animado para “Alice” e
alterou os rumos do projeto, retornando ao roteiro com 100% de desenhos em animação. Quando o filme chegou aos cinemas, não
foi um fracasso, mas também não alcançou o sucesso de público e
crítica que era esperado. Entretanto, mesmo não estando entre seus
maiores sucessos comerciais, a versão de “Alice” por Disney
marcou o imaginário coletivo com qualidades que sobreviveram ao
tempo e continua encantando crianças e adultos. Tal e qual o
estranho livro escrito com exatas 36 mil palavras pelo professor
Charles Lutwidge Dodgson.
Depois
da experiência interrompida com Disney, Dalí retornaria ao universo
de “Alice” em vários outros projetos, incluindo o documentário
“Impressões de Alta Mongólia” (1975), no qual apresenta a
história sobre uma expedição em busca de cogumelos alucinógenos
gigantes. Alusões a “Alice” também surgem em produções do
mestre surrealista para estilistas de moda como Elsa Schiaparelli e
Christian Dior, além de seus trabalhos em parceria com os
fotógrafos Man Ray, Brassaï, Beaton e Philippe Halsman. Mas a
tradução mais completa de Dalí para a obra de Lewis Carroll só
seria conhecida em 2009, uma década após a morte do mestre
surrealista.
Trata-se
de uma série de ilustrações que Dalí produziu em policromia no
processo conhecido como heliogravura, em que a impressão das imagens
é feita através de placas gravadas em baixo-relevo. Identificada
com a data de 1969, a série, que teria sido idealizada para uma
edição especial de “Alice no País das Maravilhas”, foi
descoberta nos arquivos que Dalí deixou na Catalunha, Espanha, e
apresenta 13 ilustrações: uma capa e uma imagem para cada um dos
capítulos do livro de Lewis Carroll.
"Alice"
na versão de Dalí: acima,
imagem
da capa e ilustrações
dos
capítulos "Para baixo na toca
do
coelho" e "A lagoa de lágrimas"
|
A
série de ilustrações sobre “Alice” e outros trabalhos de
Dalí, depois de uma negociação com os herdeiros, foram
liberados para uma exposição permanente instalada na William
Bennett Gallery, em Manhattan, Nova York, intitulada “O Universo
Surreal de Salvador Dalí”. Os títulos de cada capítulo e as
ilustrações do mestre surrealista resumem o itinerário da viagem
de Alice:
"Para
baixo na toca do coelho", "A lagoa de lágrimas", "Uma
corrida de comitê e uma longa história", "O coelho manda
Bill O Lagarto", "Conselho de uma lagarta", "Porco
e pimenta", "Um chá maluco", "O jogo de críquete
no campo da rainha", "A história da falsa tartaruga",
"A dança da lagosta", "Quem roubou as tortas?" e
"O depoimento de Alice", por certo, continuarão sua viagem
rumo ao futuro, como tem sido nos últimos 150 anos da história –
conforme previsto naquelas situações enigmáticas e nos diálogos
fantásticos imaginados por um certo Lewis Carroll:
Alice:
Quanto tempo dura o eterno?
Coelho:
Às vezes apenas um segundo...
por José
Antônio Orlando.
Como
citar:
ORLANDO,
José Antônio. Alice volta ao futuro. In: Blog
Semióticas,
14 de julho de 2012. Disponível no link
http://semioticas1.blogspot.com/2012/07/alice-volta-ao-futuro.html
(acessado em .../.../...).
Veja também Semióticas: Alice vai ao futuro
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