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27 de janeiro de 2012

Banalidade da corrupção







A história de todas as sociedades que existiram até
os nossos dias tem sido a história das lutas de classes.

––– 
Karl Marx, "Manifesto Comunista" (1848).   

  

A complexidade das questões que envolvem cotidianamente a corrupção e os corruptores está em discussão em dois livros surpreendentes e muito diferentes entre si. Um deles é “A Banalidade da Corrupção – Uma forma de governar o Brasil”, escrito pela professora Céli Regina Jardim Pinto, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. O outro foi publicado por um conhecido fotógrafo de moda e publicidade que é sempre lembrado por seus antológicos retratos de nudez das beldades da hora, há décadas, para a revista "Playboy", para editoriais de moda e para campanhas publicitárias: Bob Wolfenson, um artista da fotografia que sempre surpreende com investigações sobre novas possibilidades da imagem, considerado e aclamado por muitos como um dos principais fotógrafos da América Latina.

O trabalho mais recente de Bob Wolfenson reúne um acervo de 20 fotografias que impressionam, tão belas quanto incômodas. No livro "Apreensões" (editora Cosac Naify) o fotógrafo paulistano reúne novos ângulos de enquadramento para realidades tristíssimas e muito comuns aos olhos dos brasileiros. Os novos "modelos" de Wolfenson são animais e conjuntos de objetos confiscados pela polícia. Amontoados de metralhadoras e arsenais de munições do Rio de Janeiro e de São Paulo, gaiolas em quantidade e pássaros silvestres engaiolados, peles de onças e de répteis gigantescos do interior do Mato Grosso, macacos de espécies em extinção em jaulas minúsculas, centenas de máquinas caça-níqueis em um galpão de Belo Horizonte, serras elétricas e profusões de telefones celulares e aparelhos eletrônicos contrabandeados figuram nas fotografias que misturam denúncia e arte. 

São imagens que lembram as naturezas-mortas da composição secular dos grandes mestres das artes plásticas, mas que trazem em sua composição elementos que provocam surpresa, revolta, impacto: são imagens contundentes, nas quais o fotógrafo paulistano, que nasceu em 1954 e começou na carreira aos 16 anos na Editora Abril, deixa claro um fundamento central na arte de capturar imagens. Um fundamento que fez seu trabalho ser reconhecido internacionalmente, aclamado como um retratista de raro talento e um profissional destacado em vários gêneros da fotografia.








Banalidade da corrupção: no alto,
o fotógrafo Bob Wolfenson no
lançamento do livro Apreensões em
São Paulo. Abaixo, três beldades
em retratos célebres de Bob Wolfenson:
Malu Mader em 1987, Sonia Braga em
1988 e Gisele Bündchen em 2010.

Também acima e na sequência 
abaixo,
fotografias do acervo reunido 
no livro
publicado pela
Cosac Naify
























 



Como lembra o deputado e publicitário Carlos Nader, na apresentação ao livro, ao fotografar objetos e animais apreendidos pela polícia, Bob Wolfenson escancara um fundamento central da arte de capturar imagens. "Ele nos lembra que a própria fotografia é, em sua essência, também uma apreensão, uma captura. E quando nos coloca como espectadores, diante de uma dessas apreensões duplicadas, abre um estimulante jogo metalinguístico de reflexos. Apreendemos aquilo que ele apreendeu do que foi apreendido. Apreendemos exponencialmente", destaca Carlos Nader.

Nas palavras do próprio fotógrafo, o universo envolvido nessas imagens diz respeito a todos nós. "Mas elas não pretendem dar respostas, a não ser dividir uma certa apreensão", alerta Bob Wolfenson, em breve entrevista pelo telefone. O caminho percorrido para realizar essa espécie de inventário de uma certa tragédia brasileira foi longo e de difícil acesso – explica o fotógrafo, revelando que a ideia do trabalho surgiu em decorrência da infinidade e da frequência das apreensões policiais exibidas na imprensa.












Interdições de toda ordem


 
"Seria impossível ficar indiferente à presença acachapante desses fatos na vida de todos nós", destaca o fotógrafo. "No entanto, essas notícias acabam por se naturalizar, ficam banais, repetidas, e não nos chocam mais. O paradoxo do excesso de informação é exatamente este: quanto mais vemos, menos enxergamos. Tornamo-nos cegos de tanto vê-las".

Aula e demonstração de domínio técnico e composição para fotógrafos e profissionais das artes gráficas, as 48 páginas coloridas em papel duplo de "Apreensões", para além da aspereza do assunto, ainda reservam foco para aquilo que o pensador francês Roland Barthes classificou como "Punctum" – aquele emaranhado de impressões fortes, instantâneas e imprecisas que apenas as boas fotografias conseguem guardar e reproduzir. 















As dificuldades definiram a forma de cada uma das imagens, explica Bob Wolfenson. "Tarefa paralela foi negociar com as autoridades. No caminho deparei com juízes, policiais, fiscais e secretários de Estado que se mostraram muito colaborativos. Obviamente encontrei também interdições de toda ordem, justificáveis em face da gravidade do assunto. Lidar com os meandros desses salvos-condutos para chegar aos materiais apreendidos, na tentativa de que as imagens fossem vistas não como prova de algo, nem muito menos como denúncias veladas à inoperância ou elogios à eficácia do Estado, tudo isso foi outra aventura”.

Reconhecido como um dos principais fotógrafos em atividade no Brasil, Wolfenson também confessa seu aprendizado durante a produção e captura das imagens reunidas no livro “Apreensões”. “Durante o processo tive várias surpresas: a grande diversidade de formato das ampliações, por exemplo, não estava inicialmente prevista, mas acabou sendo constituinte do trabalho, além de pessoas e situações verdadeiramente incomuns. Ao ressignificar as apreensões através de fotografias de materiais apreendidos e ampliá-las em formatos e tamanhos pouco usuais para este assunto, acredito iluminar os aspectos mais obscuros e menos visíveis destes eventos", completa, com sabedoria. 






Corrupção não é exclusividade do Brasil




Os aspectos mais obscuros e menos visíveis da tão famigerada corrupção também movem as reflexões em outro livro digno de nota. "A corrupção não é exclusivamente um fenômeno brasileiro", aponta Céli Regina Jardim Pinto, autora de “A Banalidade da Corrupção – Uma forma de governar o Brasil”. No livro, publicado pela Editora UFMG, a professora aborda a complexidade de alguns gargalos da história recente que têm criado um território vasto para a emergência de atos ilícitos na vida pública e em significativas parcelas da elite brasileira.

Doutora em Ciência Política e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Céli Pinto aponta algumas das condições que propiciam a corrupção no Brasil e porque, em determinados contextos, a corrupção se tornou quase uma das formas de governar. “A corrupção é um fenômeno complexo, que existe em todas as sociedades: capitalistas, desenvolvidas, subdesenvolvidas, socialistas, democráticas, autoritárias, totalitárias. Portanto, a primeira observação importante que deve ser feita é que o problema da corrupção não é uma exclusividade da política brasileira”, alerta.


Confira, a seguir, alguns trechos da entrevista que fiz por telefone com a professora Céli Pinto e que foi publicada pelo jornal “Hoje em Dia” de Belo Horizonte.


Existe no Brasil uma cultura da corrupção?


Céli Pinto – A corrupção manifesta-se com formas e intensidade diferentes em cada sociedade. No caso do Brasil, vejo como uma das características centrais da corrupção a desvalorização da cidadania. Este foi um país em que as elites dominantes por longos períodos da história não precisaram construir o sentido de cidadania, não precisaram de um sentido de igualdade cidadã para governar. Daí que se criou no país uma cultura anti-cidadã, ou seja, uma busca pela diferença que permita a todos que têm algum tipo de poder (e não precisa ser muito) ter privilégios especiais e, o que é mais definidor, não cumprir a lei. Digo no livro que este é um objeto de desejo no país, não cumprir a lei, não ser pego e se achar importante por isto. Na minha opinião, esta é a questão central e a mais complicada de ser superada.










O que mais agrava a corrupção? A disputa de poder entre os partidos, os poderes político e econômico concentrados, as profundas desigualdades sociais ou a pouca ou nenhuma noção de seus direitos pela maioria da população brasileira?

Há dois tipos de corrupção. Primeiro, tem aquela que acontece dentro do Estado, e tem também aquela que acontece entre o setor privado da economia e o Estado. A primeira tem sempre lugar na mídia. Já a segunda, certamente a que envolve as maiores somas de recursos e grandes negócios, não tem, para a mídia, o charme da primeira. Em qualquer um destes tipos de corrupção a grande maioria da população brasileira fica de fora.

Mas em qualquer um dos casos, não é a forma como se faz política no Brasil que tem grande responsabilidade na promoção de atos de corrupção?

Sem dúvida nenhuma. As eleições são caríssimas e precisam ser financiadas com recursos privados ou com desvio de recursos públicos. Por outro lado, o capitalismo no Brasil teve um grande arranque durante o regime militar, quando se formaram grandes grupos econômicos que passaram a monopolizar importantes áreas da economia brasileira. Muitos destes grupos são atores influentes na economia, ainda hoje, e agem dentro de uma lógica muito longe do que se poderia chamar de lógica democrática.










Tem sido um lugar comum o comentário de certos analistas da política apontando que o Brasil nunca foi tão corrupto quanto é hoje. A senhora considera que isto é um fato ou aumentaram as instâncias de investigação?

É muito difícil afirmar com alguma segurança se a corrupção é maior hoje do que foi em governos anteriores. Houve muita corrupção durante o governo militar, por exemplo, mas naquela época era proibido denunciar ou admitir que ela existisse. E a imprensa não podia e nem queria, na maioria das vezes, denunciar. Atualmente, a Polícia Federal, o Ministério Público, entre outras instâncias, têm se comportado como agentes do Estado e não do governo de ocasião e isto tem sido fundamental e muito positivo.

Há quem avalie que há também a intenção explícita de denunciar o malfeito através de setores majoritários da imprensa...

A imprensa quando investiga está fazendo seu papel. Mas quando a imprensa parte para o denuncismo irresponsável e faz das denúncias um espetáculo, sem fundamento, está fazendo um triste papel.











Detalhes das ilustrações das duas capas:
Apreensões, livro de Bob Wolfenson
publicado pela Editora Cosac Naify, 
e A Banalidade da Corrupção,
de Céli Regina Jardim Pinto,
publicado pela Editora UFMG.

Abaixo, a pesquisadora Céli Pinto;
uma sequência de outras imagens da
exposição realizada por Bob Wolfenson
com as fotografias publicadas em seu
livro Apreensões; e o breve texto da
contracapa do livro de Céli Pinto








No livro “A Banalidade da Corrupção”, a senhora compara a corrupção nos vários níveis de governo (federal, estadual e municipal) com o tráfico de drogas, na medida em que não se pode avaliar o montante do tráfico, pois só temos conhecimento das negociatas que falharam. No entanto, o número de casos descobertos, investigados, julgados e condenados não deveria extirpar o quase “direito a ser corrupto”?

Acho que não... Não acredito que a corrupção acabará no Brasil colocando todos os corruptos na cadeia. Isto é uma ilusão. É como dizer que não sabemos votar, que se escolhermos pessoas de bem para os cargos de governo não haverá corrupção. Não existe nada de genético na corrupção. O corrupto não nasce corrupto, ele se torna corrupto. Portanto, temos de acabar com as condições de emergência da corrupção. Evidentemente que o efeito demonstração é fundamental. Quanto maior for o número de condenados pela corrupção, quanto menos impunidade houver, maior será a possibilidade da corrupção diminuir.


Há uma luz no fim do túnel para enfrentar o problema da corrupção no Brasil?

Certamente há luz no fim do túnel, sou muito otimista em relação ao Brasil. O país já tem uma formidável história de regime democrático de mais de 20 anos. Temos de aprimorar a democracia, mais do que aprimorar diria radicalizar a democracia. Estamos diminuindo as desigualdades sociais, temos que paralelamente diminuir a desigualdade de poder que há nesta sociedade. Quanto mais cidadãs e cidadãos participarem da política em todos os níveis, quanto mais abrangentes forem os temas discutidos publicamente, quanto mais a agenda pública for decidida a partir de discussões também públicas, quanto mais os partidos políticos deixarem de ser dirigidos por oligarquias, quanto mais democrática for a sociedade no sentido profundo da democratização da tomada de decisão, menos poderes terão as elites que dominam o país.


Mas conseguir isto no Brasil não parece ser uma tarefa fácil...

Não, não é mesmo. Você tem toda razão nessa ressalva, porque não é uma tarefa fácil de maneira nenhuma. Mas é possível e pode ser realizado muito mais rapidamente do que o atual quadro deixa transparecer. E me parece que este é o único caminho para enfrentar seriamente o problema da corrupção no Brasil, sem espetacularização, sem indignados de tarde de domingo.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Banalidade da corrupção. In: Blog Semióticas, 27 de janeiro de 2012. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2012/01/banalidade-da-corrupcao.html (acessado em .../.../…).



















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