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19 de outubro de 2022

Alice surrealista






E de que serve um livro", pensou Alice, "sem figuras nem diálogos?"

–– Lewis Carroll, “Alice no país das maravilhas”....





Desde suas primeiras edições em 1865, a obra-prima de Lewis Carroll “Alice no país das maravilhas” (“Alice in Wonderland”), e sua continuação publicada em 1871 “Alice através do espelho” (“Through the looking-glass and What Alice found there”), conseguiram conquistar leitores entusiasmados de todas as idades e capturar corações e mentes. Os dois livros, com Alice caindo na toca do coelho ou do outro lado do espelho, viajando por lugares estranhos, carregados de ironias e provocações, onde uma bebida pode fazer você encolher, um cogumelo pode fazer você crescer, onde flores, animais e cartas do baralho falam, e onde poucos têm coragem de resistir ao poder autoritário e insano, são constantemente tomados como referência e influência para adaptações, releituras e traduções intersemióticas, com conteúdos mais ou menos imprevisíveis, que vão das formas literárias tradicionais a versões para outras artes e mídias (veja também “Semióticas – Alice vai ao futuro”  e  “Semióticas – Alice volta ao futuro”).

A galeria dos que têm as aventuras de Alice como fonte de inspiração é quase infinita e permanece em alta, incluindo de Walt Disney e Salvador Dalí a muitos e muitos escritores e artistas de estilos e gêneros diversos, além de cineastas, estilistas de moda, designers, fotógrafos, grafiteiros e performers em geral. As aventuras da Alice de Lewis Carroll (o nome do autor é, na verdade, um anagrama do nome real da personagem, Alice Liddell, um pseudônimo que foi criado pelo matemático e pastor anglicano Charles Lutwidge Dodgson para assinar suas obras de literatura) tornaram-se, desde a origem, quase um sinônimo para “nonsense”, a expressão do estilo na literatura e nas artes que denota algo sem sentido, sem nexo, sem lógica ou sem coerência, como a verbalização de um “absurdo”, ainda que a lógica muito sofisticada de “Alice no país das maravilhas” e de “Alice através do espelho” contenha uma variedade de enigmas cognitivos e jogos de linguagem que estão bem longe dqualquer ausência de sentido.





Alice surrealista: no alto da página, Alice
na mesa do chá com o Chapeleiro Louco e
a Lebre Maluca, uma ilustração original de
John Tenniel de 1865 para o livro de Lewis Carroll.
Tenniel, um conhecido ilustrador e caricaturista da
época, foi contratado por Carroll para refazer seus
desenhos criados junto com o manuscrito.
Acima, a pequena Alice Pleasance Liddell
aos seis anos, em 1858, fotografada por
Lewis Carroll. Alice era uma das filhas de
Henry Liddell, reitor da Christ Church,
em Oxford, e Carroll ficou encantado quando
a conheceu, tanto que assinou o livro não com
seu nome original, Charles Lutwidge Dodgson,
mas com o pseudônimo que passou a adotar,
Lewis Carroll, um anagrama para Alice Liddell.

Abaixo, duas pinturas surrealistas de Max Ernst
inspiradas em "Alice no país das maravilhas" e em
"Alice através do espelho": "Alice" e "The stolen mirror"
(O espelho roubado), ambas de 1941. Max Ernst criou
diversas obras baseadas na literatura de Lewis Carroll
que fazem alusão direta a Alice no período entre
as décadas de 1930 e 1970 






  

Limites da lógica


Tal expressão nos limites da lógica, tão transgressora e tão próxima das fronteiras do fantástico e do onírico, representada com maestria pela literatura de Lewis Carrol, foi apropriada também com muita atenção pela geração de escritores e artistas do surrealismo. Seja atravessando o espelho ou quebrando as regras de Wonderland, Alice, e as galerias de personagens extraordinários que ela encontra, conseguiram atrair, de forma definitiva, o olhar fascinado dos surrealistas mais radicais. Todos, ou a maioria deles, perseguiram com curiosidade seus passos, revivendo as perplexidades e os questionamentos inconformados da menina diante do outro mundo sobrenatural que atrai e encanta.

O que Alice encontrou, depois que sua atenção é despertada pela visão incomum e muito estranha de um coelho branco com um relógio de bolso, foi um mundo subterrâneo mágico, uma realidade de fábula com criaturas aristocratas e enlouquecidas, frustradas com tudo e todos, a questionar a lógica e os hábitos mais tradicionais. Ao final do turbilhão de aventuras da primeira viagem, Alice desperta do que pode ter sido um sonho, mas embarca novamente para o mundo mágico ao atravessar o espelho e entrar em outro jogo absurdo apresentado em um imenso tabuleiro.

Hoje o que se percebe é que, na verdade, o enredo, as criaturas e a protagonista da história fizeram de Lewis Carroll um importante precursor do que viria a ser o surrealismo, atravessando as fronteiras do dadaísmo e dos demais movimentos de vanguarda dos primeiros tempos da arte moderna. O surrealismo, a seu modo, adotou Alice, apresentando ou promovendo sua atualidade para um público mais sofisticado e mais avançado no repertório do mundo das artes e da literatura. Com a aproximação, a curiosidade de Alice tornou-se um sinônimo para as investigações estéticas e existenciais em torno de surrealistas e dadaístas, assim como para os que vieram depois deles.











Alice surrealista: acima, uma página do manuscrito
original de Lewis Carroll com um de seus desenhos no
rascunho, depois refeitos por John Tenniel ("a lagarta")
para a primeira edição do livro em 1865.

Abaixo, 
duas pinturas surrealistas de Dorothea Tanning
inspiradas na 
Alice de Lewis Carroll: "Eine Kleine
N
achtmusik" (Um pouco de música noturna),
de 1943, em alusão aos diálogos de Alice
com as flores (o título da obra é uma referência
à célebre serenata de Mozart); e "Birthday"
(Aniversário), de 1942, com uma Alice adulta
vagando pelo corredor de portas no que supõe
ser um "desaniversário" 










O melhor da infância


A aproximação entre a Alice de Carroll e os surrealistas não é apenas uma possibilidade anacrônica, que se percebe somente na atualidade, ou evidenciada por analogias entre o País das Maravilhas e as criações históricas daqueles artistas: tal aproximação está presente desde o marco fundador do movimento, com as citações feitas por André Breton no primeiro “Manifesto do Surrealismo”, de 1924, no qual a principal liderança dos surrealistas valoriza, de forma nostálgica, um sentimento de admiração pelo lúdico do universo infantil que remete ao real maravilhoso que a criança Alice vai descobrindo em sua aventura no novo mundo.

Nas palavras do manifesto de Breton: “A maior parte dos exemplos que a literatura poderia me fornecer estão contaminados com coisas fúteis e vazias pela simples razão de serem dirigidas às crianças, que desde muito cedo são cortadas do maravilhoso (…). Por isso o espírito livre que ousa mergulhar no surrealismo revive, com exaltação, a melhor parte de sua infância”. Breton também destaca que das recordações da infância, repletas de encantos, vêm os sentimentos mais fecundos para a arte e para a literatura, e que talvez seja a infância o que mais se aproxima de uma vida verdadeira.






Alice surrealista: acima, Alice Liddell fotografada
em 1860 por Lewis Carroll. Abaixo, três versões
para a mesma passagem das aventuras de
Alice, quando ela enfrenta uma chuva de
cartas do baralho: a versão de John Tenniel,
publicada em 1971 em "Alice através do espelho";
uma colagem de 1930 de Max Ernst; e uma
pintura de 1955 de Piero Fornasetti







      




Experiências lúdicas e oníricas


André Breton retornaria outras vezes à literatura de Lewis Carrol e ao mundo de Alice, uma delas encontrando no País das Maravilhas (Wonderland) o argumento para caracterizar a qualidade das imagens pictóricas em geral, conforme ele reconhece em “Surrealismo e Pintura”, de 1928. No ensaio, ao se referir à obra cubista de Pablo Picasso, Breton ressalta que as imagens do mestre espanhol abordam um continente que nos levam diretamente a um “país das maravilhas”. São estas referências fundadoras, na origem do movimento, que incentivaram e levaram outros surrealistas a também buscarem experiências lúdicas e oníricas, não conformistas e libertárias, repletas de citações e referências à Alice criada por Lewis Carroll.

Alguns deles não ficaram apenas nas citações e partiram para paráfrases ou mesmo para recriações explícitas, tanto nos domínios da pintura e do desenho como na escultura, no teatro, no cinema, na fotografia, na prosa e na poesia. Entre os expoentes do surrealismo que têm criações na década de 1930 baseadas de forma explícita na Alice de Carroll estão Picasso, Salvador Dalí, Luis Buñuel, Louis Aragon, Antonin Artaud, Max Ernst, Marcel Duchamp, Maria Martins, Dorothea Tanning, Man Ray, Georges Bataille e outros. No período da Segunda Guerra, e mais ainda no pós-guerra, novas recriações e citações sobre Alice iriam se multiplicar para além dos círculos do surrealismo e do dadaísmo (veja também “Semióticas  –  Arte entre guerras”  e  “Semióticas  –  Arte segundo Duchamp”).















Alice surrealista: acima, Alice Liddell fotografada
aos 19 anos, em 1872, por Julia Margaret Cameron;
"Alicia, retrato de una niña", pintura de 1919 de
Joan Miró; e "Alice au pays des marveilles",
pintura de 1945 de Rene Magritte.

Abaixo, o cartaz original do lançamento em 1951
do filme de Walt Disney, que teve uma importante
participação não creditada de Salvador Dalí;
e "Lluvia de lágrimas", uma das 12 ilustrações
que Salvador Dalí fez em 1969 baseado em
"Alice no país das maravilhas", sendo uma
ilustração para cada capítulo. Alice é mostrada
no detalhe da menina pulando corda, um motivo
que aparece com muita frequência na obra
de Dalí desde a década de 1930, como em
Paisagem com garota ignorando corda,
pintura em óleo sobre tela de 1936 







              


A sedução de Alice sobre a primeira geração dos surrealistas também passou pelas telas do cinema. Desde os primeiros tempos do cinema mudo, foram várias versões para o livro de Lewis Carroll. Os filmes, seus personagens e as situações oníricas que eles experimentam ficaram marcados no imaginário coletivo e tiveram impacto sobre artistas e escritores. A primeira versão para o cinema, em 1903, teve direção de Cecil M. Hepwoeth, com 12 minutos de duração e figurinos fieis às ilustrações que John Tenniel fez para a primeira edição do livro. A segunda versão, que estreou em 1910, foi uma produção dos estúdios de Thomas Edison. Com roteiro e direção de Edwin S. Porter, teve 15 minutos de duração e truques de magia no estilo do francês Georges Méliès.

A terceira versão, de 1915, com roteiro e direção de W. W. Young, tem uma hora de duração, em uma época em que os filmes raramente ultrapassavam 15 minutos., também com truques cênicos ao estilo de Méliès e com todo o elenco de atores usando máscaras, à exceção de Alice (Viola Savoy). Uma nova versão de Alice, a quarta desde o filme de 1903, foi realizada por Walt Disney e marca sua primeira investida no mundo do cinema, depois do sucesso com as tirinhas de jornais e as revistas em quadrinhos. "Alice", série de três curtas-metragens, foi lançada em 1923, com a pequena Alice (Virginia Davis) visitando os estúdios Disney em Hollywood (e não no País das Maravilhas) e contracenando com cenários e personagens de desenhos animados.


Truques e uso de máscaras


A quinta versão, lançada em 1928, foi um média-metragem, "Alice através do espelho", com direção de Walter Lang e 40 minutos de duração, sem legendas e sem os tradicionais quadros de textos do cinema mudo. Depois vieram as primeiras versões do cinema sonoro: a primeira, de 1931, com 55 minutos, teve direção de Bud Pollard, com Ruth Gilbert no papel de Alice; a segunda, de 1933, foi mais ambiciosa e macabra, em superprodução da Paramount Pictures, com roteiro de Joseph L. Mankiewicz, direção de Norman Z. McLeod e grande elenco de astros e estrelas, entre eles Gary Cooper, Cary Grant, Edna May Oliver, Charlotte Henry (no papel de Alice) e Edward Everett Horton. McLeod reproduz os melhores truques das versões anteriores e inclui sequências de stop-motion e de desenhos animados produzidas pelos estúdios de Max Fleischer, que na época estava transpondo de forma pioneira para o cinema personagens muito populares das histórias em quadrinhos como Betty Boop e Popeye.

O sucesso do filme de McLeod levou Walt Disney a adiar por duas décadas sua versão em longa-metragem, que somente seria lançada em 1951, no formato de animação em Technicolor, com uma luxuosa colaboração não creditada de Salvador Dalí. O longa produzido por Disney ainda enfrentaria problemas com a censura e um forte concorrente para exibição no mercado europeu: "Alice au pays des merveilles", superprodução em cores de França e Reino Unido, lançada em 1949 com direção de Dallas Bower e surpreendentes efeitos visuais, com Alice (Carol Marsh) e os atores contracenando com bonecos em animação stop-motion e com desenhos animados, em versão muito fiel ao "nonsense", ao humor e às sátiras sobre personalidades históricas da época em que o livro foi publicado.


  











Alice surrealista: no alto, a versão para o cinema
lançada em 1903, com Alice perseguida pelo
exército de cartas do baralho. Acima, duas cenas
do filme de 1915, com a atriz Viola Savoy.

Abaixo, Alice na versão de 1933, que foi a segunda
do cinema sonoro; e o cartaz original da Alice de 1949







      

As aproximações entre a Alice de Carroll e os surrealistas vão muito além das fronteiras do movimento originário da França, como comprova um marco historiográfico: no primeiro estudo publicado sobre o surrealismo na Inglaterra, em 1935, o historiador da arte David Gascoyne destacou que a arte surrealista nasceu de uma matriz inglesa pela literatura de Lewis Carroll. Dois anos depois, em 1937, uma exposição de vanguarda no Museu de Arte Moderna de Nova York celebrava obras-primas da arte no universo do fantástico, do dada e do surreal, incluindo dois desenhos originais de Lewis Carroll, o Gryphon e a Mock Turtle (a tartaruga falsa). Trata-se de uma homenagem ao criador de "Alice" e também é uma grande ironia descobrir que, na primeira exposição sobre os precursores do surrealismo, a arte de Lewis Carroll, que se considerava um desenhista apenas amador e limitado, tenha surgido ao lado de mestres aclamados pela tradição como Pieter Bruegel, Johann Fuseli e William Blake.


Palavras com imagens


A literatura e Lewis Carroll e sua arte como ilustrador e fotógrafo também aparecem reverenciadas em publicações que são consideradas como bíblias pela primeira geração surrealista, como destaca Georges Didi-Huberman em “A semelhança informe” (Editora Contraponto, 2015), tais como a revista “Documents” (que teve 15 números, com edição de Georges Bataille, entre 1929 e 1930) e a revista “L’Usage de la Parole” – que na edição de dezembro de 1939 apresentou em destaque três poemas de Carroll, publicados lado a lado com outros fragmentos de prosa e poesia escritos por expoentes das vanguardas como Gaston Bachelard, Paul Éluard e Marcel Duchamp, entre outros, como se o autor de “Alice no país das maravilhas” fosse, de fato, um dos militantes do surrealismo, e como se sua obra fosse uma sátira produzida em meados do século 20 sobre uma sociedade controlada por convenções inúteis e impostas pelas classes dominantes.










Alice surrealista: acima, The old maids, pintura de
1947 de Leonora Carrington, com Alice representada
na figura alta vestindo azul, à esquerda; e retratos de
Alice em duas serigrafias de 1970 de Peter Blake.

Abaixo, Lewis Carroll em autorretrato de 1857
e o Coelho Branco na versão desenhada por
Ralph Steadman para uma série de serigrafias
sobre Alice criada em 1967. Desde a década de 1960,
a expressão "perseguindo o Coelho Branco" passou
a ser uma espécie de código usado para descrever o
uso de drogas alucinógenas, fazendo de Alice
uma garota propaganda involuntária para os
hábitos da geração hippie e da cultura psicodélica






Lewis Carroll também surge em destaque ao lado de mestres como Sigmund Freud, Marquês de Sade, Lautreamont, Rimbaud e Mallarmé em uma edição especial de “VVV”, a revista que foi uma obra de referência do surrealismo e teve circulação em Nova York com quatro números publicados entre 1942 e 1944. O entusiasmo com as recriações e referências à Alice de Carroll na arte e na literatura surrealista permaneceram nas décadas seguintes, com novos tributos e releituras pelas obras de Max Ernst, Dorothea Tanning, Leonora Carrington, Joan Miró, Marc Chagall, René Magritte, Duchamp e Dalí, entre muitos outros, prosseguindo com uma diversidade de artistas de outros estilos e áreas diversas até a atualidade, passando da estética, das artes plásticas e da forma literária tradicional para as questões comportamentais e semióticas, multimídia, antropológicas, sociológicas, diversionais e políticas.


Tradição e ruptura


Em 1951, há um importante destaque para o tema "Alice" com o lançamento da animação de Walt Disney em cinemas do mundo inteiro, o que trouxe novo impulso para a popularização da literatura de Lewis Carroll e para as aventuras da personagem. Resultado de uma polêmica parceria não-creditada entre Disney e Salvador Dalí (veja mais em “Semióticas  –  Alice volta ao futuro”), o filme de Disney recebeu elogios e críticas, ganhando novos sentidos a partir da década seguinte, quando entram em cena os movimentos da contracultura e o uso diversional de alucinógenos, acrescentando novas camadas de sentido às experiências que Carroll apresentava nas descobertas de Alice em seu mundo imaginário. Alice ganhou cores psicodélicas, passou a ser sinônimo de viagens alucinantes e embalou sucessos de estrelas do rock e da música pop, incluindo “White Rabbit”, do Jefferson Airplane, e “I’am the Walrus”, dos Beatles, entre muitos outros. Um observador atento até poderia supor que Alice se tornou uma avó para a geração hippie.

















Alice surrealista: acima, reprodução do manuscrito
original de Lewis Carroll e Cheshire Cat, pôster de
1967 de Joseph McHugh; o selo da gravadora
britânica Charisma, que estampava nos discos
de vinil o Chapeleiro Louco e outros personagens
de Alice e que lançou, entre 1969 e 1983, grandes
sucessos do rock e do pop, entre eles Genesis,
Malcom MacLaren, The Alan Parsons Project
e outros; e uma imagem da série "Alícia",
versão de 2010 de Xavier Collette.

Abaixo: 1) uma das versões de Alice criadas em
2019 por Alex Prancher em fotografias e filmagens
nas ruas de Los Angeles; 2) "Alice" na versão
de Yayoi Kusama, a artista plástica mais célebre
do Japão, que ilustrou uma edição recente do livro
pela Penguin Classics; 3) "Alice" na versão fotografada
debaixo d'água em 2014 pela russa Elena Kalis e lançada
como fotolivro, com sua filha Alexandra como modelo;
4) a versão "hype" criada por Tim Walker para o
Calendário Pìrelli 2018; 5) a soprano Zenaida Yanowsky
como Rainha de Copas na montagem de 2011
para Aventuras de Alice no país das maravilhas
pelo The Royal Ballet de Londres com direção
de Johan Persson e figurinos de Bob Crowley;
e 6) modelo de abertura da coleção primavera verão
de 2015 criada por Vivienne Westwood
em homenagem às aventuras de Alice















As citações e referências aos paradoxos, aos trocadilhos e aos jogos de linguagem de Alice também conquistaram um campo fértil em uma diversidade de estudos teóricos em áreas variadas, com destaque para referências importantes em obras como “As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas” (1966), de Michel Foucault; “A lógica do sentido” (1969), de Gilles Deleuze; e “Nonsense: aspectos da intertextualidade no folclore e na literatura” (1979), de Susan Stewart. Tudo isso e mais uma infinidade de teses acadêmicas e de abordagens científicas que tentam interpretar a obra literária de Lewis Carroll em suas confluências com a infância, com a pedagogia, com a psicologia, com as questões sociológicas e ideológicas mais plurais e polissêmicas.

Os investimentos em recriações e citações sobre as aventuras de Alice, que tiveram um capítulo central com a primeira geração dos surrealistas, prosseguem a pleno vapor na atualidade, com novos filmes, novas versões em diversas mídias, novas edições e novas adaptações da obra original que vão da versão estilizada criada por Yayoi Kusama, a artista plástica mais célebre do Japão, à inspiração declarada e várias citações na saga de cinema "Matrix", da dupla Lana e Lilly Wachowski, a coleções de alta costura das grifes mais célebre dos mundo da moda e até uma versão brasileira, "Alice dos Anjos", com Alice enfrentando um coronel tirano no sertão nordestino. Tudo indica que Alice e a literatura de Carroll seguirão sua viagem de descobertas em direção ao futuro próximo e distante – um percurso por certo imaginado pelo autor, que não por acaso registrou em imagens fotográficas, ainda nos primórdios da fotografia, os capítulos de uma incrível viagem existencial: a evolução biográfica, da primeira infância ao começo da idade adulta, dos quatro aos 18 anos, de Alice Pleasance Liddell, sua principal musa inspiradora.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Alice surrealista. In: Blog Semióticas, 19 de outubro de 2022. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2022/10/alice-surrealista.html (acessado em .../.../…).


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Alice surrealista: acima, "Down the rabbit hole"
(Caindo no buraco do coelho), gravura em técnica
mista de Kristjana Williams. Abaixo, cenas de
"Alice", filme de 1988 de Jan Švankmajer; uma
versão de Alice que se passa no sertão do Nordeste
brasileiro, "Alice dos Anjos", com roteiro e direção de
Daniel Leite Almeida, com Alice enfrentando um
coronel tirano; e a montagem de "Wonder.land",
espetáculo musical para público adulto do
Royal National Theater de Londres, em 2015,
escrito por Moira Buffini, com direção de Rufus Norris,
música de Daman Albarn e cenografia de Rae Smith












24 de agosto de 2022

Estratégias do Zé Carioca

 





O que faço é um trabalho de amor. Eu não entrei

neste negócio apenas para ganhar dinheiro.

Walt Disney (1901-1966).


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Criado por Walt Disney durante uma viagem ao Rio de Janeiro e, oficialmente, lançado em 24 de agosto de 1942, Zé Carioca completa hoje seu aniversário. Trata-se de um caso exemplar das estratégias políticas que usam personagens de histórias infantis e, na perspectiva do Brasil, um capítulo importante da invasão cultural norte-americana, como já foi apontado por diversos estudos. São 80 anos de existência do único personagem brasileiro na The Walt Disney Company – uma data comemorada com homenagens e grandes negócios anunciados para os próximos meses. Entre as homenagens, novas histórias em quadrinhos, com o relançamento da revista do personagem e de uma edição especial do “Almanaque do Zé Carioca”, além do lançamento de três livroinéditos: “O essencial do Zé Carioca: celebrando os 80 anos de sua estreia”, pela editora Culturama, que desde 2020 assumiu a publicação das revistas Disney no Brasil; “Zé Carioca conta a história do Brasil”, um projeto do escritor Eduardo Bueno; e "Muito prazer, Zé Carioca", uma biografia do personagem escrita por Jorge Carvalho de Mello. 

Entre os negócios anunciados também estão relançamentos do personagem no canal Disney Plus, uma programação de eventos criada em parceria da Disney com o canal ESPN e conteúdos especiais nos sites e redes sociais da empresa, além de coleções temáticas do Zé Carioca licenciadas pela primeira vez para roupas, brinquedos, instrumentos musicais e acessórios que serão vendidos em parcerias com diversas marcas no Brasil e em outros países. Com as estratégias comerciais, a meta é reposicionar o personagem em destaque entre os produtos da Disney, depois do quase esquecimento nas últimas décadas, quando até suas revistas tiveram publicação cancelada no mercado brasileiro. Nos últimos anos, o Zé Carioca apareceu apenas ocasionalmente em pequenas histórias no “Almanaque Disney”.







Estratégias do Zé Carioca: no alto, a nova versão do
personagem, que chega ao 80 anos. Acima, Zé Carioca
na nova imagem para o reposicionamento comercial.

Abaixo, Walt Disney e sua equipe desembarcando
no Rio de Janeiro, em 1941, no programa de governo
nomeado como Política da Boa Vizinhança; e o cartaz
original da estreia de Zé Carioca no cinema, ao lado
do Pato Donald, no filme de 1942 "Alô Amigos"




             

A história do Zé Carioca teve início sob encomenda para um projeto político: assim que foi deflagrada a Segunda Guerra Mundial, Walt Disney foi destacado pelo Departamento de Estado para a missão de criar peças de cinema e de histórias em quadrinhos para a aproximação dos Estados Unidos com os países da América Latina, dentro das estratégias da chamada Política da Boa Vizinhança, criada pelo governo Franklin Roosevelt na década de 1930, e que ganhou força para conquistar a simpatia dos governos e dos povos latino-americanos em tempos de guerra contra os nazistas. No vértice brasileiro da aproximação estão acordos comerciais com o governo de Getúlio Vargas e a importação pelos Estados Unidos de Carmen Miranda, na época a maior estrela da música, do rádio, do cinema e do teatro de revista no Brasil. Carmen embarcou para os EUA em 1939, alcançando em pouco tempo um sucesso estrondoso na Broadway e em Hollywood.


Malandro, alegre, hospitaleiro


Na sequência dos acordos comerciais e de geopolítica dos EUA com o governo Vargas, viriam dois grandes projetos de cultura e política a cargo de Orson Welles e de Walt Disney. O filme de Orson Welles no Brasil, “It’s All True”, jamais foi concluído pelo cineasta, que retornou aos EUA no final de 1942 depois de filmagens que foram uma sucessão de escândalos e de acidentes. Walt Disney, por sua vez, chegou com sua equipe ao Brasil em 1941 e, assim como Welles, ficou encantado com a cultura brasileira. Durante a viagem de Disney veio a inspiração para criar o Zé Carioca, um papagaio malandro, alegre e hospitaleiro, que vivia no morro da favela, enrolava seu próprio cigarro, gostava de feijoada, de cachaça e de futebol. Sua estreia aconteceu em 1942, no filme “Alô Amigos” ("Saludos Amigos" / "Hello Friends"). Com o sucesso comercial do filme, nos EUA, no Brasil e em outros países, Zé Carioca retornaria em uma série de histórias em quadrinhos e em outros dois filmes: “Você já foi à Bahia?” ("The Three Caballeros", 1944) e “Tempo de Melodia” ("Melody Times", 1948).








Estratégias do Zé Carioca: no alto, Pato Donald
bebe cachaça com Zé Carioca, em cena do filme
"Alô Amigos". Acima, o presidente Getúlio Vargas
(à esquerda) com Walt Disney (à direita) no
Palácio do Catete, no Rio de Janeiro. Abaixo,
um encontro do maestro Heitor Vila Lobos com
Walt Disney, também no Rio de Janeiro






Em “Alô Amigos”, sexto longa-metragem de animação de Walt Disney (os anteriores foram "Branca de Neve e os Sete Anões", "Pinóquio", "Fantasia", "Dumbo" e "Bambi"), há quatro histórias, ou quatro segmentos, cada um representando um país, e todos estão interligados. No primeiro, "Lago Titicaca", o turista norte-americano Pato Donald visita o Peru; no segundo, "Pedro", um pequeno avião parte do Chile para buscar correspondência aérea na Argentina; no terceiro, "O Gaúcho", Pateta é o cowboy dos EUA que vai aos pampas argentinos; no quarto, "Aquarela do Brasil", Zé Carioca recebe o viajante dos EUA, o Pato Donald, e o acompanha em um passeio pelo Rio de Janeiro e por diferentes paisagens do Brasil, seguindo também pela América Latina. Donald, que havia estreado no cinema em 1934, em um episódio curto do filme “Sinfonias Tolas” (“Silly Simphony”), aparece em forma redesenhada e definitiva, com o uniforme azul e branco de marinheiro – na verdade um “mariner”, integrante do Corpo de Fuzileiros Navais dos EUA, evidentemente destacado para um “esforço de guerra”.

No mesmo ano de 1942, Donald apareceria em outro filme de propaganda de guerra, o desenho anti-nazista “A Face do Fuehrer” (“Der Fuehrer’s Face”), que venceu em 1943 o Oscar de melhor curta-metragem de animação. Donald também é protagonista em “O Espírito de 1943” (“The Spirit of ‘43”), filme curto em que ele seráconvencido a doar parte de seu salário de trabalhador para as campanhas da guerra, e em outros dois filmes de animação em longa-metragem com Zé Carioca, os já citados “Você já foi à Bahia?” e “Tempo de Melodia”. “Alô Amigos” seria um grande sucesso comercial de Disney, apresentando na trilha sonora duas canções brasileiras que se tornariam populares no mundo inteiro: “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso, e “Tico-Tico no Fubá”, de Zequinha de Abreu, que seriam gravadas em seguida por Carmen Miranda e por muitos artistas de diversos gêneros e nacionalidades, de Frank Sinatra e Ray Conniff a Paco de Lucia e Xavier Cugat, entre outros.






             






Estratégias do Zé Carioca: no alto, Pato Donald
dança o samba com Zé Carioca, em cena do filme
"Alô Amigos". Acima, Walt Disney (de bigode) e sua
equipe visitam a quadra da escola de samba Portela
na companhia de Paulo da Portela.

Abaixo, Carmen Miranda durante as filmagens
de "Uma Noite no Rio", em 1941, com
o músico Zezinho (de camisa listrada), que foi
um dos integrantes do grupo Bando da Lua e
o dublador de Zé Carioca em "Alô Amigos"
 









A gênese do papagaio carioca


O sucesso no cinema levou Zé Carioca para as páginas das histórias em quadrinhos. No final de 1942, ele surgiria em tirinhas publicadas por vários jornais nos EUA e, nos anos seguintes, chegaria ao Brasil e a outros países no formato de revista em quadrinhos que exploravam o exotismo das paisagens do Rio de Janeiro. Na biografia de Walt Disney publicada em 1994, “An American Original” (Disney Editions), o autor Bob Thomas descreve as circunstâncias que levaram Disney a criar o personagem em uma suíte do Hotel Copacabana Palace, que esteve temporariamente transformada em estúdio, enumerando referências que estão na gênese do filme "Alô Amigos" e do personagem do papagaio malandro. Tudo indica que na origem do Zé Carioca estão ideias originais de José Carlos de Brito e Cunha, mais conhecido como J. Carlos, cartunista que fazia sucesso na revista “O Tico-Tico”.

Entre outros personagens que o cartunista desenhava para “O Tico-Tico”, havia um papagaio sem nome que fumava charuto e aparecia ocasionalmente em charges e histórias de outros personagens. Ao tomar conhecimento dos projetos para o filme e para um novo personagem que seria criado, J. Carlos presenteou Disney, durante um jantar, com um desenho do tal papagaio que ele havia criado. No desenho, o papagaio abraçava o Pato Donald. Segundo o biógrafo Bob Thomas, o desenho de J. Carlos, associado a outras referências de pessoas do meio artístico que Disney conheceu no Brasil, levariam à concretização do personagem Zé Carioca. Entre as referências também estava o músico e humorista Zezinho (José do Patrocínio Oliveira), que tocava cavaquinho no grupo Bando da Lua, que acompanhava Carmen Miranda. Não por acaso, Zezinho é o dono da voz que dubla o Zé Carioca em “Alô Amigos”.






Estratégias do Zé Carioca: acima, uma
reunião no hotel Copacabana Palace, no
Rio de Janeiro, em 1941, com Jorge Guinle,
dono do hotel, Carmen Miranda e Walt Disney.
Abaixo, Walt Disney filmando nas areias da
praia de Copacabana e passeando de barco
na baia da Guanabara com a equipe de trabalho
















Outras influências para a criação do personagem Zé Carioca vêm do charuto que o compositor Heitor Vila Lobos sempre fumava e dos olhos azuis do compositor Herivelto Martins – duas das personalidades muito populares da época, no meio artístico do Rio de Janeiro, que tiveram vários encontros com Walt Disney, tanto em reuniões de trabalho como em jantares e passeios pelos mais conhecidos cenários cariocas. O biógrafo também cita os convites que foram feitos pessoalmente por Disney para o compositor Ary Barroso, para o maestro Vila Lobos e para o cartunista J. Carlos, para que eles fossem trabalhar sob contrato com a equipe Disney em Hollywood, mas todos eles recusaram as propostas.

Nos anos seguintes, Ary Barroso venderia os direitos de algumas canções para filmes da Disney e para outros estúdios de Hollywood. Vila Lobos, no final da década de 1950, seria contratado para criar a trilha sonora de "Green Mansions" (no Brasil, "A flor que não morreu"), superprodução da Metro Goldwyn Mayer com direção de Mel Ferrer e com Audrey Hepburn e Anthony Perkins no elenco. O maestro brasileiro compôs uma peça sinfônica belíssima, hoje conhecida como "Floresta do Amazonas", mas ficou extremamente insatisfeito com o uso que fizeram de suas partituras na trilha sonora da versão final do filme e nunca mais quis repetir a experiência.


Do cinema para os quadrinhos


Na temporada de Disney no Brasil há também a presença de Paulo Benjamin de Oliveira, o Paulo da Portela, que acompanhou uma visita de Disney e sua equipe à quadra da escola de samba na Guanabara e deixou Disney impressionado por sua elegância, sua alegria e sua gentileza hospitaleira – as mesmas características que seriam levadas para o filme “Alô Amigos” e que ficaram visíveis na recepção que Zé Carioca faz para o Pato Donald no Rio de Janeiro. Bob Thomas também cita outro brasileiro como referência para a criação do papagaio: o advogado Manuel Vicente Alves, mais conhecido como Dr. Jacarandá, um tipo folclórico na época, na zona sul carioca, que também foi apresentado a Disney na visita da equipe à quadra da Portela. Tal como aconteceria com Zé Carioca, o Dr. Jacarandá sempre usava, sob o sol escaldante do Rio de Janeiro, chapéu panamá de aba reta, paletó de alfaiataria, camisa social com gravata borboleta colorida e um inseparável guarda-chuva.









Estratégias do Zé Carioca: no alto, a capa
da primeira edição do livro "An American Original",
biografia de Walt Disney escrita por Bob Thomas.
Acima, o Zé Carioca em sua imagem clássica.

Abaixo, os encontros de Walt Disney com
o compositor Ary Barroso e com Alceu Penna,
ilustrador da revista O Cruzeiro, no hotel
Copacabana Palace em 1941










Nos estúdios Disney, Zé Carioca ganhou vida também sem a presença do Pato Donald. As tirinhas e histórias em quadrinhos do personagem, criadas a partir de 1942, tiveram roteiro de Hubie Karp e desenhos de Bob Grant e Paul Murry – os três integrantes da equipe Disney que também trabalharam no filme “Alô Amigos”. O personagem, batizado como Joe Carioca, estreou nas páginas de jornais e revistas dos EUA em outubro de 1942 e quatro meses depois chegava ao Brasil publicado em “O Globo Juvenil”, suplemento mensal que circulou entre 1937 e 1952, em formato tabloide de 16 páginas impressas em papel jornal, tendo como editor Nelson Rodrigues, que ganharia notoriedade como cronista e dramaturgo. As histórias do Zé Carioca também tiveram uma edição especial publicada pela Editora Melhoramentos em 1945: o personagem, fumando seu charuto, aparece na capa tendo ao fundo a baía da Guanabara.

Nas páginas de “O Globo Juvenil”, Zé Carioca faria sucesso com suas histórias e tirinhas intercaladas com quadrinhos que traziam heróis estrangeiros como Superman, Mandrake, O Fantasma, Flash Gordon, Brucutu e Ferdinando, entre outros. A primeira vez que Zé Carioca apareceu na capa de uma revista foi na primeira edição de “O Pato Donald”, que inaugurou a parceria comercial entre Disney e a Editora Abril, em julho de 1950, participando apenas de uma história. Depois desta primeira fase do personagem, Zé Carioca retornaria somente na década de 1960 às revistas dos personagens Disney. Em 1961, ele ganharia sua própria revista de publicação semanal com histórias inéditas, criadas no Brasil, e com adaptações de histórias de outros personagens da Disney, tendo na capa da primeira edição o título "O Pato Donald apresenta Zé Carioca". Em 2018, depois de 68 anos, a Editora Abril encerrou seu contrato de publicação das revistas Disney, que desde 2020 passaram a ser publicadas pela Editora Culturama, mas várias revistas permanecem canceladas.







Estratégias do Zé Carioca: acima, o papagaio
malandro criado por J. Carlos para as charges
da revista "O Tico-Tico", uma das fontes de
inspiração para Walt Disney criar o Zé Carioca.

Abaixo, uma sequência dos primeiros esboços
da equipe Disney para o personagem; e a capa
da primeira edição da revista "O Pato Donald"
no Brasil, em junho de 1950, que teve a presença
de Zé Carioca como convidado especial








As intenções políticas


O encontro de Zé Carioca com o Pato Donald em “Alô Amigos” também é um campo fértil para estudos políticos e de historiografia. No livro “The Hispanic Image on the Silver Screen” (“A imagem hispânica na tela de prata”, Editora Greenwood, 1992), o historiador Alfred Charles Richard Jr. apresenta uma constatação que se tornou célebre: segundo ele, o filme “Alô Amigos” conseguiu consolidar, para grande parte do público de países da América Latina, em poucos meses, mais simpatia pelos Estados Unidos do que as ofensivas do Departamento de Estado norte-americano conseguiram antes em mais de 50 anos de ocupações militares e de ações diplomáticas.

Em seu estudo, Richard Jr. avalia os efeitos que o cinema de Hollywood teve sobre o público na formação e na propagação de estereótipos, assim como as relações muito próximas entre o cinema norte-americano e a política de outros países da América, com filmes que, com muita frequência, justificavam e glorificavam a intervenção dos Estados Unidos nos assuntos das nações latino-americanas. No caso brasileiro, tais intervenções são especialmente visíveis em dois momentos de regimes ditatoriais: primeiro, na ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas, de 1930 a 1945, que coincide com a vigência da Política da Boa Vizinhança do governo Roosevelt; e posteriormente na ditadura militar que tomou o poder no período de 1964 até os anos 1980.










Estratégias do Zé Carioca: acima, Walt Disney
passeando na praia de Copacabana, em 1941;
e desenhando croquis e cenários para o filme
"Alô Amigos" com Mary Blair na varanda do hotel,
no Rio de Janeiro. Abaixo, Walt Disney passeando,
anônimo no meio da multidão na Avenida Rio Branco,
centro do Rio de Janeiro, fotografado para reportagem
da revista "Life" por Hart Preston; e o encontro
entre o presidente do EUA, Franklin Roosevelt,
e o presidente do Brasil, Getúlio Vargas, em
Natal, Rio Grande do Norte, em janeiro de 1943.

Também abaixo, a capa da edição brasileira
do livro de Ariel Dorfman e Armand Mattelart,
"Para ler o Pato Donald"; e uma seleção de
capas históricas do Zé Carioca no Brasil:

1) Zé Carioca, edição especial da Melhoramentos em
1945; 2) Zé Carioca na capa de "O Globo Juvenil" em
janeiro de 1944; e 3) Zé Carioca na primeira edição de
sua revista, em 1961, que traz na capa o título
"O Pato Donald apresenta Zé Carioca"







Tais associações entre ações políticas, cinema, literatura e estereótipos instrumentalizados na cultura brasileira são também abordadas em diversos estudos de crítica literária, de comunicação social, de sociologia e de antropologia, entre eles “Dialética da Malandragem” (Revista de Estudos Brasileiros da USP, 1970), de Antonio Candido; “Carnavais, Malandros e Heróis” (Editora Rocco, 1979), de Roberto da Matta; e "A Invasão Cultural Norte-Americana" (Editora Moderna, 1988), de Júlia Falivene Alves. Uma abordagem mais específica sobre o tema, feita a partir da análise de personagens de Walt Disney e de sua influência na América Latina, foi publicada em 1971, no Chile, por Ariel Dorfman e Armand Mattelart, e se tornaria um clássico incontornável: “Para ler o Pato Donald – Comunicação de massa e colonialismo”, que teve primeira edição no Brasil em 1977, pela Editora Paz e Terra, em tradução do historiador de quadrinhos Álvaro de Moya.

Dorfman, nascido na Argentina, e Mattelart, nascido na Bélgica, ambos militantes de esquerda na luta pelos Direitos Humanos, propõem, em suas próprias palavras, um “manual de descolonização” a partir de uma leitura dos quadrinhos por um viés marxista. Uma definição reveladora sobre o estudo é apresentada de forma resumida, pelos próprios autores, na abertura do terceiro capítulo do livro: “Os povos subdesenvolvidos são para Disney, então, como as crianças; devem ser tratados como tais, e se não aceitam essa definição de seu ser, é preciso descer suas calças e lhes dar uma boa surra. Para que aprendam!” Observadas com um intervalo histórico de mais de 50 anos, pode-se perceber com muita clareza o quanto as análises radicais e ideológicas de Dorfman e Mattelart removeram as máscaras de inocência e de ingenuidade que, por muito tempo, conseguiram disfarçar o aparato violento de dominação cultural e os mecanismos agressivos de propaganda política, manipulados, desde sempre, para favorecer e fortalecer os interesses do império norte-americano.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Estratégias do Zé Carioca. In: Blog Semióticas, 24 de agosto de 2022. Disponível em https://semioticas1.blogspot.com/2022/08/estrategias-do-ze-carioca.html (acessado em .../.../…).

















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