A
força
de um é
apenas um acidente
que
decorre da fraqueza
dos outros.
– Joseph
Conrad, “O Coração das Trevas” (1899). |
Mais
de 500 anos depois das viagens lendárias e das descobertas do
mercador Marco Polo, um outro cidadão nascido em Veneza trouxe, para
o Mundo Ocidental, revelações impressionantes sobre os povos do
Oriente. Nas décadas de 1850 e 1860, o italiano depois naturalizado
inglês Felice Beato (1825-1909) tornou-se o primeiro a registrar em
fotografias as cenas de guerras e também os povos da Ásia, com dedicação especial para
Samurais, Gueixas e outras figuras marcantes da cultura tradicional
do Japão.
Além
dos retratos etnográficos sobre a cultura japonesa com seu acréscimo
de cores pintadas a mão pelo próprio fotógrafo – que tiveram
exposições com sucesso impressionante de público em Veneza, Paris,
Londres e outras capitais da Europa no final do século 19 – Felice
Beato também produziu outras centenas de fotografias panorâmicas de
paisagens, de cidades e dos povos que habitavam os territórios estranhos e desconhecidos da
China, da Índia, da Palestina, do Egito e de países da África.
Ao
título de pioneiro da fotografia e do fotojornalismo, Felice Beato
acrescentaria outro mérito: também foi o primeiro fotógrafo de
guerra, registrando imagens da Guerra da Crimeia (1853-1856), da Rebelião na Índia contra a ocupação britânica (1857-1858) e da
Guerra do Ópio na China (1856-1860), para espanto e comoção de
seus contemporâneos europeus, que viviam admirados os primeiros
tempos das novidades impressionantes que a fotografia começava a representar.
As guerras e o exotismo dos cenários
Contratado
pela Coroa Britânica e por outros países da Europa para registrar
imagens das tropas militares avançando pelo território inimigo,
Felice Beato teve como missão, nas expedições de guerra, a tarefa
de fazer registros amenos dos conflitos, sem mostrar muito sangue e sem fazer alarde sobre a tragédia, para exaltar a força e a superioridade dos europeus frente aos povos
do Oriente. Contudo, a tarefa, muitas vezes, produziu resultados que
impressionam mais pela violência do que pelo exotismo dos cenários.
O
que se vê, nas imagens de guerra registradas por Felice Beato que chegaram até
nossos dias, muitas delas resgatadas pelo livro publicado em 2014 pela pesquisadora francesa Catherine Pinguet ("Felice Beato, 1832-1909: Aux origines de la photographie de guerre", CNRS Editions) são cenas de violência e destruição, com corpos
mutilados e soldados desolados. Em cada imagem, o fotógrafo revela
cenários sombrios, repletos de informação sobre as circunstâncias
da guerra, seus personagens, suas vestimentas e costumes – com
predominância de retratos posados, já que os personagens precisavam
ficar parados por muito tempo para o registro perfeito da fotografia,
sempre dificultado por filmes pouco sensíveis e lentes improvisadas.
Em 1860, com o fim da Guerra do Ópio, que levou ao confronto as tropas militares da China contra a Grã-Bretanha, Felice Beato interrompe por um breve período sua trajetória de viajante e aventureiro pelas terras do Oriente e retorna à Europa. Em Londres, o fotógrafo pioneiro vai comercializar a maior parte das imagens que havia produzido nas décadas anteriores, incluindo as cópias em papel cartonado e os negativos de vidro.
Imagens
sem precedentes
A
partir de Londres, o acervo de centenas de imagens sem precedentes
produzidas por Felice Beato vai então se dispersar e gerar fortunas
para seus compradores – entre eles alguns colecionadores de obras
de arte, integrantes da nobreza e comerciantes que começavam a
arriscar a sorte no negócio das imagens fotográficas. Depois da
temporada em Londres, Felice Beato retornaria para o Japão, fixando
residência em Yokohama, onde viveria até 1885, produzindo sua
documentação fotográfica e as séries sobre Samurais e Gueixas.
Considerado
perdido durante mais de um século, o acervo de fotografias do
pioneiro Felice Beato foi em parte resgatado, finalmente, com publicações em livros e catálogos fotográficos a partir da década de 1980. Uma nova leva de imagens inéditas produzidas pelo fotógrafo pioneiro acaba de ser apresentada em uma
exposição na Inglaterra, a London Photograph Fair 2015, além da
publicação do catálogo fotográfico “Japon fin de siècle”.
Editado na França pela Casa Arthaud, o catálogo reúne 70
fotografias originais e inéditas de Felice Beato e estudos biográficos a cargo
de especialistas em História da Fotografia, entre eles Pierre Loti e
Chantal Edel.
A
exposição das imagens pioneiras dos Samurais e Gueixas na London
Photograph Fair 2015 foi realizada graças à colaboração dos
herdeiros de Sir Henry Hering. No final do século 19, Hering era
proprietário de um estúdio fotográfico em Londres e comprou as
fotografias diretamente do próprio Felice Beato. Na França, a
publicação do catálogo “Japon fin de siècle” também contou
com o acervo de coleções particulares, cedidas pela primeira vez
pelos herdeiros de antigos colecionadores.
As cenas mais antigas do Japão registradas por Felice Beato: acima e abaixo, mulheres e gueixas em Yokohama e em Tóquio na década de 1860, imagens do catálogo fotográfico Japon fin de siècle |
Parâmetros
para o fotojornalismo
Além
de apresentar 70 imagens inéditas, “Japon fin de siècle” também reproduz
o material que havia sido divulgado pela primeira vez na década de
1980, em outro catálogo fotográfico, “Mukashi Mukashi”,
também editado pela Casa Arthaud, que reuniu pela primeira vez as
fotografias originais de Felice Beato sobre os Samurais e Gueixas no
Japão do século 19. Um outro portfólio, com 60 fotografias selecionadas
de Felice Beato no Japão, foi publicado em 1994, na França, pela
coleção Photo Poche do Centre National Photographie: “Felice
Beato et l'école de Yokohama”.
O catálogo Photo Poche traz, na verdade, uma compilação das fotografias que antes foram reunidas em “Mukashi Mukashi” e em dois livros dedicadas exclusivamente ao fotógrafo: “Once Upon a Time: Visions of Old Japan” (Friendly Press, EUA, 1986), “Felice Beato: Viaggio in Giapponne” (Federico Motta Editore, Itália, 1991). Nos anos seguintes ao lançamento de “Mukashi Mukashi”, mais fotografias inéditas de Felice Beato surgiram publicadas em outros três livros ilustrados: “Of Battle and Beauty: Felice Beato's Photographs of China” (California Academy of Sciences, EUA, 2000), “Felice Beato en Chine” (Somogy, França, 2005) e “Felice Beato: A Photographer on the Eastern Road” (Chicago University Press, EUA, 2010). Em 2014, outra biografia ilustrada foi publicada na França: “Felice Beato: Aux origines de la photographie de guerre” (Ed. Cnrs), de Catherine Pinguet, também reunindo fotografias que foram publicadas nas edições anteriores.
No novo catálogo, “Japon fin de siècle”, que traz fotos inéditas e uma seleção dos trabalhos mais conhecidos de Felice Beato, um dos ensaios biográficos, assinado por Chantal Edel, revela documentos também inéditos localizados em acervos do Japão e da China que esclarecem dúvidas
sobre a trajetória do pioneiro da fotografia. Entre as novidades apresentadas, Chantal Edel confirma a existência
de um irmão de Felice, Antonio, também fotógrafo, além de relatar
detalhes sobre seu processo de trabalho e as importantes parcerias que
estabeleceu em suas aventuras pelo Oriente, e na cobertura de guerras, com
outros pioneiros da fotografia, entre eles James Robertson e Roger
Fenton, e com Charles Wirgman, fundador e editor do “Japan Punch”,
considerado o primeiro jornal japonês.
Segundo
Chantal Edel, a sorte e as circunstâncias históricas levaram Felice Beato a ser contratado em diversos períodos para
prestar serviços diplomáticos para a Inglaterra, a Grécia e os
Estados Unidos em países da Ásia e da África antes de chegar ao Japão, no
primeiro período de abertura daquele país a estrangeiros, por volta de 1860,
depois de séculos de completo isolamento. No Japão, o fotógrafo encontra dificuldades e problemas como um grande incêndio em 1866 seu estúdio, instalado em Yokohama, mas consegue preservar ainda centenas de fotografias, sendo que a maior parte delas seriam registros sobre os últimos samurais do Xogunato Tokugawa e de antigas tradições que chegavam ao fim.
Com as experiências acumuladas de viajante e de manuseio dos equipamentos em condições adversas, Felice Beato transforma sua surpresa e curiosidade com a tradição cultural japonesa em documentação sem precedentes, através da fotografia, como destaca Chantal Edel na conclusão de seu estudo biográfico publicado em “Japon fin de siècle”. Muito além do exotismo e do espanto que provocaram em seus contemporâneos e conterrâneos europeus, cenários, paisagens e personagens fotografados em expedições pelo pioneiro Felice Beato foram e ainda são de fundamental importância para estudos sobre a etnografia do Japão e demais países do Oriente nas universidades ocidentais – abrindo caminho para novos pesquisadores e estabelecendo parâmetros para os avanços que a fotografia e o fotojornalismo conquistaram nos séculos seguintes.
Com as experiências acumuladas de viajante e de manuseio dos equipamentos em condições adversas, Felice Beato transforma sua surpresa e curiosidade com a tradição cultural japonesa em documentação sem precedentes, através da fotografia, como destaca Chantal Edel na conclusão de seu estudo biográfico publicado em “Japon fin de siècle”. Muito além do exotismo e do espanto que provocaram em seus contemporâneos e conterrâneos europeus, cenários, paisagens e personagens fotografados em expedições pelo pioneiro Felice Beato foram e ainda são de fundamental importância para estudos sobre a etnografia do Japão e demais países do Oriente nas universidades ocidentais – abrindo caminho para novos pesquisadores e estabelecendo parâmetros para os avanços que a fotografia e o fotojornalismo conquistaram nos séculos seguintes.
por
José Antônio Orlando.
Como
citar:
ORLANDO, José Antônio. Felice Beato e os Samurais. In: Blog Semióticas, 31 de maio de 2015. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2015/05/felice-beato-e-os-samurais.html (acessado em .../.../...).
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