Apenas em Paris eles fazem do jeito que eu quero, que é um retrato exato, mas com a suavidade de um desenho. –– Charles Baudelaire, 1859. |
São
imagens impressionantes, cada uma a seu modo, retratando escravos e
seus senhores no século 19. Em uma das fotografias, datada de 1899,
uma criança branca está montada sobre a babá negra – criança e
babá enfeitadas, endomingadas, com aquele olhar de pergunta que têm às vezes as antigas fotografias, as duas em roupas de renda, insinuando
através da brincadeira nada inocente o exato retrato de uma época.
Em outra imagem, na verdade um cartão-postal datado de 1880, uma ama
de leite negra traz outra criança branca, sorridente, amarrada às
suas costas.
Um inventário sobre fotografias de negros e escravos no Brasil do século 19 foi reunido por Sandra Sofia Machado Koutsoukos, autora de um extenso dossiê intitulado "Negros no Estúdio do Fotógrafo", uma preciosidade publicada pela Editora Unicamp. Na maioria das fotografias selecionadas, os retratos dos personagens, quase todos na condição de escravizados, com poucas exceções, trazem aquela estranha
melancolia que o tempo passado confere às faces e olhares de
ilustres e anônimos.
A época em questão, pontuada de contrastes,
era marcada pela divisão rigorosa da sociedade em duas categorias de
pessoas: os senhores e seus escravos. Os primeiros, europeus em sua
maioria, exerciam o poder com mão de ferro e não hesitavam em
comprar, vender, subjugar, prender, reprimir ou matar o escravo ou o negro
recém-libertado que ousasse contrariar suas vontades ou não se
curvasse às suas exigências.
O
segundo grupo, com pessoas nascidas na África ou descendentes diretos de africanos,
formava a parte mais numerosa da população no Brasil de nossos avós
e de seus pais e parentes, há pouco mais de 100 anos. Esta sociedade dividida
entre escravos e senhores, traduzida em fotografias pelo dossiê publicado por Sandra Koutsoukos, também foi registrada pelas tintas e pinceis dos artistas e naturalistas que viajaram em expedições e missões pelo território nacional.
Brasil em preto e branco
Depois
das míticas missões de naturalistas estrangeiros, quase sempre comandadas pelos
europeus, que rastreavam o território coletando e documentando
espécies vegetais e animais e retratando em pinturas e desenhos o
povo nativo e seus costumes tropicais, entrariam em cena outros
artistas com novas técnicas e maquinarias, uma delas batizada de
fotografia ("photographie") por um desenhista, pintor
e inventor no Brasil, pelo menos cinco anos antes da palavra e
das técnicas fotográficas serem adotadas por outros pioneiros em
países da Europa.
Imagens do Oitocentos: acima,
autorretrato de Hercules
Florence, pioneiro das técnicas e processos fotográficos
e inventor da palavra photographie, em
daguerreótipo datado de 1875. Nas imagens a partir do alto: 1) daguerreótipo de autor desconhecido, datado de
1859, que registra o fidalgo João Ferreira Villela Artur
Gomes Leal com Mônica, uma escrava identificada como propriedade de sua família
(acervo Museu Afro-Brasil); 2) babá com criança, fotografia de 1882 de Alberto Henschel; e 3) retrato de casal, fotografia em cartão de visita datado de 1879 de Militão Augusto de Azevedo; e 4) cerimônia de adivinhação e dança do século 17 em raro domingo de folga de escravos em uma fazenda de Pernambuco, uma das 109 ilustrações em policromia do diário do Brasil Holandês do alemão Zacharias Wagener Abaixo, aquarela que Hércules Florence
produziu
(quando acompanhava, contratado
como
desenhista e pintor, a Expedição do
Barão
Langsdorff pelo território nacional)
para identificar uma fazenda de café em 1829
situada
na região da Serra da Mantiqueira,
na
Província de Minas Gerais. Também
abaixo, mulher escravizada carrega seu filho em Salvador, Bahia, em fotografia de 1884 de Marc Ferrez; e três
registros fotográficos sobre as imensas levas
de africanos capturados para trabalhar como escravos que chegavam ao
Rio de Janeiro em navios negreiros: na primeira e na segunda imagem, fotografias de autores anônimos em meados do século 19; na terceira imagem, fotografia de Marc Ferrez de 1882 registra um grupo de escravos libertados antes do desembarque no Rio de Janeiro, a bordo do HMS London, navio inglês que perseguia traficantes de cativos africanos nos oceanos Índico e Atlântico, devolvendo-os à liberdade |
A
palavra, que vem do grego antigo φως [fós] ("luz") e
γραφις [grafis] ("estilo", "pincel''), formando
γραφη [grafê], que significa "desenhar com luz e contraste”,
ao que se sabe teria sido usada pela primeira vez por Hercules
Florence (1804-1879), francês naturalizado brasileiro. Integrante da
lendária Expedição do Barão Langsdorff, Hércules Florence chegou
ao Rio de Janeiro em 1824 com a tarefa de fazer o relato completo da
aventura da expedição, que percorreu mais de 13 mil quilômetros do
ainda desconhecido território nacional, entre os anos de 1825 a
1829
Além
de concluir o único relato completo sobre a expedição científica,
Hércules Florence também produziu a maior parte da documentação
iconográfica com suas habilidades incomuns de desenhista, polígrafo
e incansável inventor de novas técnicas e processos – uma de suas
invenções, somente reconhecida recentemente, quase dois séculos
depois de suas primeiras experiências, foi o processo fotográfico.
Mais
de 100 anos depois da morte de Hércules Florence, o exame detalhado
de manuscritos e relíquias de acervo do pioneiro foi feito pelo
especialista Boris Kossoy. As peças do acervo e os relatos
registrados em sua época pelas autoridades do Império e pelo
próprio Florence, levaram Kossoy a comprovar o emprego pioneiro por
Hércules Florence da palavra "photographie", pelo menos
cinco anos antes que o vocábulo e também o processo a que se
referiam fosse utilizado pela primeira vez na Europa.
Entre
as experiências impressionantes realizadas por Hércules Florence
está, entre várias outras, a fotografia, em 1833, em Campinas, São
Paulo, da imagem de uma janela. O pioneiro, de acordo com seus
próprios relatos, registrados em documentos cartoriais, utilizou uma
caixa equipada com uma lente e um papel embebido em nitrato de prata.
Cinco anos depois, em 1837, em Paris, França, Louis-Jacques Mandé
Daguerre aperfeiçoa o sistema, que também vinha sendo testado por
Joseph-Nicéphore Niepce, e vende a patente do “daguerreótipo”
para o governo da França.
A fotografia no fim do mundo
A prática da escravidão, disseminada em todo o território brasileiro e garantida por leis até o final do século 19, também deixou como registros as imagens fotográficas: os escravos
e seus senhores foram registrados pela maioria dos pioneiros da fotografia que atuaram no
Brasil – à maneira do que fizeram antes, utilizando desenhos e
pinturas, artistas como o alemão Johann Moritz Rugendas (1802-1858) e
o francês Jean-Baptiste Debret (1768-1848), como aponta a
pesquisadora Sandra Sofia Machado Koutsoukos em "Negros no Estúdio do Fotógrafo" (Editora da Unicamp, 2010).
Graduada
em Belas Artes pela UFRJ, mestre em Artes e doutora em Multimeios,
Mídia e Comunicação pelo Instituto de Artes da Unicamp, com
pesquisa de pós-doutorado apoiada pela Fapesp, Sandra Koutsoukos
apresenta em seu livro-tese um acervo de documentos pouco conhecidos
e imagens raras, belas e impressionantes, garimpado em diversas
instituições pelos quatro cantos do Brasil.
"Negros
no Estúdio do Fotógrafo" surge como um estudo pioneiro,
reunindo imagens que permaneciam inéditas sobre as representações
de pessoas negras, livres, forras e escravas, produzidas em estúdios
de fotografia, principalmente no Rio de Janeiro e em São Paulo. “As
cenas construídas nos estúdios, com os símbolos que expunham, eram
'narrativas', mensagens facilmente entendidas pelos parentes e amigos
que recebiam os retratos dos entes queridos ou dos conhecidos”,
explica Sandra Koutsoukos. “Os retratos deviam deixar explícita a
posição que a pessoa ocupava, ou que pretendia demonstrar que
ocupava. Embora fossem cenas 'construídas', ou por isso mesmo,
costumavam deixar claro o papel de cada um”.
A
pesquisadora também destaca em cada fotografia os sinais legíveis,
a “narrativa construída” sobre o que o corpo de um escravo ou
ex-escravo podia conter, das marcas e cicatrizes às mutilações
pelo trabalho ou por açoites, até indicativos simbólicos como o
sapato, que em pé de negro costumava indicar liberdade. O livro está
organizado em três capítulos, tão breves quanto reveladores. São
eles "A fotografia no Brasil no século 19", "Entre
liberdade e escravidão, na fotografia" e "Na casa de
correção da corte, a Galeria dos Condenados". Em cada
capítulo, Sandra Koutsoukos enumera fotografias e estudos de
fontes agrupadas em três categorias.
Na
primeira categoria listada por Kotsoukos, estão fotografias de negros transformados em escravos para o trabalho doméstico que foram levados aos estúdios por seus senhores, os
quais queriam aquelas fotos em seus álbuns de família. Na segunda categoria estão as fotografias que foram exploradas na chave do "exótico" e
vendidas como souvenir a estrangeiros. Na terceira categoria, fotografias
etnográficas, produzidas para servir de suporte a teorias racistas que na época estavam em voga e que são repetidas ainda hoje de forma criminosa por grupos racistas de extrema direita e por fascistas em geral.
Acervo de escravos e libertos
A
Galeria dos Condenados representou a maior surpresa para Sandra
Koutsoukos, autora de "Negros no Estúdio do Fotógrafo".
Na extensa trajetória de anos de pesquisas e viagens pelo Brasil e
por acervos do exterior, relata a autora, foi um susto a descoberta
das fotos de negros escravos na condição de presos em dois álbuns
por ela localizados e que permaneciam praticamente inéditos há mais
de um século.
Assombra
o leitor, no relato de Sandra Koutsoukos, não só as minúcias descritivas
mas também as imagens fotográficas que ilustram o texto sobre a tal Galeria dos
Condenados – impressionante também pela curiosidade adicional da
feitura dos álbuns na época, decorrentes do fato de que o próprio
fotógrafo era um dos prisioneiros. Os motivos que levaram à
montagem dos álbuns, entretanto, ainda permanecem como enigmas.
"No
decorrer do trabalho de pesquisa nos arquivos, bibliotecas e
coleções, a surpresa maior foi quando pus as mãos nos dois álbuns
da Galeria dos Condenados, com fotos de presos que estavam na Casa de
Correção da Corte na década de 1870, constantes da Coleção Dona
Theresa Christina na Divisão de Manuscritos da Biblioteca Nacional
do Rio de Janeiro", destaca Koutsoukos.
Memórias
da escravidão: as amas
de
leite negras eram encomendadas e
compradas
pelos nobres e senhores de
engenho
para servir à casa grande e para
cuidar
de suas crianças brancas
|
"Surpresa,
pela riqueza, qualidade e quantidade de fotos. Susto, pelo trabalho
que não contava que iria ter. Como falar daquelas fotos? Falar o
quê, se eu nem sequer imaginava para que os álbuns haviam sido
montados? Por onde começar", ela recorda, reconstituindo os
passos que levaram à conclusão da pesquisa e à sua posterior
transformação no livro agora lançado pela Unicamp.
Sandra Koutsoukos
também destaca a importância do estudo na abordagem pioneira entre
liberdade e escravidão no universo da fotografia: para uma pessoa
negra livre ou forra "parecer livre", havia a necessidade
de se fazer aceita (ou, ao menos, tolerada) pela sociedade e, dessa
forma, tentar abrir nela o seu espaço. Estar representado em uma imagem fotográfica trazia para o indivíduo uma posição simbólica que o distinguia na esfera social.
"Comparo,
no livro, algumas fotos de negros livres e de negros forros com fotos
de escravos domésticos. Nas fotos, os pés, calçados ou descalços,
costumavam expor a condição social do retratado. Pelo menos, os
símbolos pé descalço ou sapato eram dessa forma exibidos e
entendidos", explica a autora.
Amas de leite e amas-secas
Sobre
as amas de leite e amas-secas, Sandra Koutsoukos destaca que elas são
maioria no acervo enumerado ao longo dos anos de pesquisa. "No
texto, tento traçar a complexidade do tema da amamentação (por
mãe, por ama, por animal, por objeto) à época, e os problemas que
advinham dele para as partes envolvidas: o bebê branco é o
interesse da fotografia encomendada", aponta.
A
questão, ela explica, volta-se para o entendimento dos motivos pelos
quais as amas foram retratadas sempre de forma que se pretendia tão
"positiva" - tentando passar ideias de intimidade, harmonia
e afeto, num período em que já se condenava o uso de amas de leite
e se tentava estimular a construção da imagem da "nova mãe",
a mãe branca que amamentava seus próprios filhos.
Aos
raros e pioneiros estúdios fotográficos do século 19, destaca
Koutsoukos, iam pessoas de todas as camadas sociais, desde a alta
sociedade até os mais humildes. No livro, o que se vê são retratos
impressionantes de uma época: negros libertos e escravos domésticos,
além da sequência final com as fotos de presos da primeira
penitenciária do Brasil.
Por
meio de vasta pesquisa, a autora traça o caminho daqueles retratos,
sua significação, sua circulação e seu armazenamento em álbuns.
Ao explorar as histórias por trás das imagens, o livro dá vida a
cada um dos personagens – trazendo à memória do leitor seus
próprios álbuns e retratos.
Ou,
como conclui a autora ao final de seu relato em "Negros no
Estúdio do Fotógrafo", trata-se de um acerto de imagens que
não só impressionam, mas que são também reveladoras sobre as
dimensões dos problemas do Brasil atual, na medida em que as lições
do passado costumam equacionar as melhores soluções para os
desafios do presente.
Arturos, um tributo à tradição
Enquanto o livro “Negros no Estúdio do Fotógrafo” resgata um acervo inédito sobre os primórdios da
fotografia no Brasil, um outro trabalho de pesquisa registrado em belas
imagens em preto-e-branco pelo fotógrafo e pesquisador Mário
Espinosa apresenta a beleza e a tradição da Comunidade Negra dos
Arturos em Minas Gerais. Uma seleção de 20 imagens belas e surpreendentes de
Espinosa ganhou uma exposição recente e incomum na praça do Big
Shopping, em Contagem, Minas Gerais.
Nascido
em 1943 em Montevidéu, Uruguai, e naturalizado brasileiro desde
1974, quando se casou com uma brasileira, Mário Espinosa, que é
afro-descendente e professor universitário, pesquisa há décadas as
manifestações culturais que ele define como "afro-diaspóricas"
– aquelas que sobrevivem em remanescentes de comunidades
quilombolas.
A
mostra, que ele define como ''um estudo sobre a abolição da
escravatura no Brasil'', destacou as tradições culturais de um dos
mais importantes patrimônios históricos de Contagem. As 20
fotografias, que registram a festa da Abolição da Escravatura
realizada pela comunidade em maio de 2007, foram doadas pelo próprio
Mário Espinosa para os Arturos.
"Foi um amigo de Minas Gerais, também jornalista, quem me passou a sugestão para visitar a comunidade quilombola dos Arturos. Fui conferir e foi uma paixão à primeira vista. Desde então tenho viajado a Contagem com muita frequência, pelo menos duas vezes por ano, e com duas datas marcadas: na festa do Rosário e na festa da Abolição da Escravatura. Não tem mais jeito de evitar: além da relação de pesquisa, também já estabeleci com a comunidade uma relação afetiva muito forte", destaca o fotógrafo.
Nas fotografias de Mário Espinosa, a música e as danças religiosas do congado estão representadas em cenas expressivas que revelam a intimidade dos Arturos, remanescente de um antigo quilombo que é considerado um dos patrimônios históricos e também, de forma até contraditória, um cartão postal de Contagem, mais conhecida por ser uma cidade industrial.
Escravos e seus descendentes
A comunidade dos Arturos foi fundada há cerca de 120 anos, em meados do século 19, pelos escravos Artur Camilo Silvério e sua esposa Carmelinda Maria da Silva. Seus descendentes, filhos, netos e bisnetos, constituem cerca de 70 famílias que se dedicam a preservar sua identidade cultural de origem africana, transmitida de geração em geração há quase dois séculos.
"Estas fotos que doei para a comunidade dos Arturos fazem parte de um acervo muito maior, que hoje soma mais de 5 mil imagens", explica Mário Espinosa, que tem planos de realizar uma grande exposição itinerante por outras cidades do Brasil e de outros países sobre o tema e publicar um livro com uma seleção representativa de seu acervo sobre a comunidade quilombola.
"Já encaminhei o projeto completo para um edital de incentivo e agora estou aguardando o resultado. Se tudo der certo, começaremos em breve a apresentar esta grande exposição itinerante que deve reunir cerca de 70 fotografias ampliadas em grande formato, com um catálogo que registre a exposição e uma amostragem geral sobre estes anos de pesquisa e contato com a comunidade dos Arturos", explica o fotógrafo, que para a publicação do catálogo já conta com parceria com o jornalista Oswaldo Faustino.
"Em comum a todas as fotos está a memória das tradições de origem africana que sobreviveram até os nossos dias. E tudo registrado em preto-e-branco, porque só o preto-e-branco traduz a beleza e a melancolia de um tema como este. A cor é muito festiva. Prefiro o preto-e-branco pelo resultado plástico e porque é a técnica sobre a qual tenho mais domínio. Creio que imagens coloridas não conseguiriam jamais alcançar o efeito que tenho procurado", completa.
por José Antônio Orlando.
Como
citar:
ORLANDO,
José Antônio. Imagens do Oitocentos. In: Blog
Semióticas,
26 de julho de 2011. Disponível no link
http://semioticas1.blogspot.com/2011/07/imagens-do-oitocentos.html
(acessado em .../.../...).
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Imagens do Oitocentos: fotografia com data de 1899, extraída do álbum de família do autor do Blog Semióticas, mostra uma criança branca montada a cavalo sobre as costas de uma babá negra |