Não há nenhum vestígio real, bem entendido, de
anjos, de riqueza ou de liberdade. Apenas imagens. .....
–– Walter Benjamin em "O surrealismo, último
instantâneo da inteligência europeia" (1929).
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Uma série de aquarelas com cenas bíblicas que permaneceu inédita por mais de meio século e duas coleções de cartões de Natal criadas por Salvador Dalí (1904-1979) são as mais recentes novidades do acervo da Fundação Gala-Salvador Dalí com sede na Espanha. As obras foram incluídas no Catálogo Raisonné, que é a publicação completa dos trabalhos oficiais do artista, depois de aprovadas por especialistas em minuciosas avaliações comparativas e laudos técnicos. A série de 105 aquarelas foi pintada entre 1963 e 1964, sob encomenda para uma edição de luxo da Bíblia Sagrada em espanhol. Mas uma série de desentendimentos entre o artista e os editores interrompeu o projeto e só recentemente as aquarelas foram localizadas e autenticadas pelos técnicos da fundação.
Quanto às coleções de cartões de Natal, uma delas, com as aquarelas criadas por Salvador Dalí sob encomenda, no final década de 1950, para a editora norte-americana Hallmark, permanecia
inédita. Quando recebeu a encomenda, Dalí exigiu um pagamento antecipado de 15 mil dólares para 10 cartões de felicitações com temas de Natal. O pagamento foi feito e a encomenda foi entregue no prazo previsto, mas os cartões foram considerados perturbadores e polêmicos demais para alcançarem sucesso comercial, motivo pelo qual a direção da empresa apresentou a série em uma exposição em sua galeria de arte, mas produziu apenas uma tiragem restrita. A outra coleção, com obras que em sua maioria também permaneciam inéditas, reúne aquarelas e ilustrações feitas entre 1958 e
1976 para os cartões que a empresa farmacêutica Hoechst
Ibérica enviava a um seleto grupo de clientes a cada final de ano.
As obras que chegaram ao Catálogo Raissoné são
surpreendentes e polêmicas, como sempre, em se tratando da arte de
Dalí. “A diferença entre os surrealistas e eu é que eu sou
surrealista” – costumava dizer, em estado de provocação, o
mestre Salvador Domingo Felipe Jacinto Dalí i Domènech, 1º Marquês
de Dalí de Púbol. Dalí sempre teve a seu favor uma técnica de
pintura extraordinária, com habilidade e domínio criativo tão
grandes quanto sua loucura e originalidade, e atravessou o último
século influenciando artistas das mais diversas áreas, das mais diversas tendências e
nacionalidades, da brasileira Tarsila do Amaral ao norte-americano
Andy Warhol, entre muitos e muitos outros.
Dalí
também merece destaque, entre os mestres da arte no século 20, como
um dos que mais produziram, segundo apontam seus mais importantes
biógrafos, Robert Descharnes e Gilles Néret. Suas obras, disputadas
pelos grandes museus, estão em sua maioria nas coleções do Museu
Salvador Dalí em Saint Petersbourg, na Flórida, Estados Unidos, e
na Fundação Gala-Salvador Dalí, na Espanha. A fundação, criada
pelo próprio Dalí, em 1983, administra três museus na Catalunha: a sede, em
Figueras, e as duas residências de Dalí e Gala, sua esposa e musa
inspiradora desde 1929, transformadas, após a morte do artista, no Teatro-Museu
Dalí, também em Figueras, e no Museu Port Lligat, em Cadaqués.
Uma
trajetória de polêmicas
O
acervo do Catálogo Raissoné das obras de Dalí conta, entre suas
peças mais valiosas, com mais de 1.500 quadros que se inscrevem
entre as mais celebradas e reproduzidas pinturas do último século.
Também fazem parte do acervo completo mais de uma centena de
esculturas, milhares de desenhos e ilustrações feitas sob encomenda para
livros e revistas, cartazes publicitários, obras realizadas em
colaborações e parcerias para teatro e cinema, cartas e manuscritos
autobiográficos, séries de performances em fotografias, entrevistas
e vários outros projetos, todos com o traço e as formas inconfundíveis das criações de Salvador Dalí.
No século passado, Salvador Dalí foi muito criticado por conta
de sua dedicação ao “irracional” e por suas posições
políticas reacionárias, entre elas o apoio ao general Francisco
Franco, que chegou ao poder no rescaldo da Guerra Civil Espanhola.
Contudo, passou ileso pelas incontáveis polêmicas e continua em evidência, como
uma autêntica celebridade, quase 30 anos depois de sua morte, com as exposições
de suas obras sempre atraindo multidões e batendo recordes de
público pelo mundo afora.
A trajetória de controvérsias e provocações de Dalí
teve início nas primeiras décadas do século 20, com a expressão
radical de suas obras que firmou o conceito de Surrealismo nas artes
plásticas. No final da década de 1930, entretanto, ele foi expulso
do grupo dos surrealistas da Europa pelo poeta e mentor do “Manifesto
Surrealista” (1924), André Breton – que passaria a se referir ao
desafeto como “Avida Dólares” (ávido por dólares), um anagrama
perfeito para o nome Salvador Dalí.
A grande arte: caos e criação
Depois do rompimento com os surrealistas, Dalí e Gala
partiram em 1940, rumo aos Estados Unidos, para prestar serviços em
Hollywood e “comercializar” sua produção em artes plásticas
(veja mais em Semióticas: Alice volta ao futuro). A temporada de uma
década na América foi brilhante e também polêmica, como tudo o
que se refere à obra do mestre surrealista. De volta, com Gala, à
sua terra natal, Figueras, na Catalunha, Espanha, na década de 1950,
Dalí iria diversificar cada vez mais seus projetos – incluindo,
entre eles, as séries de aquarelas e ilustrações para cartões de
natal criadas sob encomenda.
Pelo que relatam Robert Descharnes e Gilles Néret, nas
biografias e catálogos publicados pela Taschen (“Dalí – A Obra
Pintada” e “Salvador Dalí – A Conquista do Irracional”),
Dalí produziu 19 aquarelas e ilustrações para os cartões de Natal
produzidos pela empresa farmacêutica Hoechst Ibérica, entre 1958 e
1976. A empresa, que tinha sede em Barcelona, decidiu imprimir uma grande tiragem em formato de 10,04cm X 6,93cm e os cartões eram enviados, a cada final de ano, para médicos e profissionais de
saúde. Atualmente, estes cartões originais com as ilustrações de
Dalí são relíquias valiosas, disputadas por colecionadores.
As imagens da série sob encomenda para a Hoechst
Ibérica não foram as únicas criadas por Salvador Dalí com temas de Natal.
Ele também criou cartões de Natal exclusivos para amigos e
colaboradores como Enrique Sabater, seu secretário particular a
partir de 1969. Há ainda uma série de pinturas em óleo sobre tela,
criada entre 1964 e 1967, com variações sobre imagens de São José
e da Virgem Maria com o Menino Jesus. Como quase tudo que o mestre
produziu, são pinturas que também impressionam, talvez porque,
mesmo representando o tema religioso, a série, batizada de “Iesu
Nativitas” (Natal, em latim), revela imagens que fogem ao
lugar-comum da tradição das cenas de Natal.
O caso mais polêmico envolvendo Salvador Dalí e as encomendas para cartões de Natal parece ter sido mesmo a série produzida para a empresa norte-americana Hallmark. O fundador da empresa, Joyce Clyde Hall, desde o final da Segunda Guerra convidava artistas muito conhecidos para produzir imagens para os cartões de Natal da Hallmark. A iniciativa trouxe prestígio para a empresa e alavancou as vendas, com cartões criados por nomes como Pablo Picasso Georgia O'Keeffe, entre vários outros. Mas com a série criada em 1960 por Dalí surgiu um impasse.
O impasse com a encomenda a Dalí para a criação dos cartões de Natal aconteceu porque, assim que recebeu as imagens originais, pintadas a óleo e em guache sobre papel, a empresa passou a temer repercussão negativa ou até mesmo protestos do público. O pagamento de US$ 15 mil foi feito pelo Hallmark antecipadamente, por exigência do artista. Das 10 imagens criadas por Dalí, a maioria foi considerada pelos executivos da empresa “surreais” em excesso e terminaram rejeitadas e arquivadas, não sendo comercializadas no formato de cartões para produção em larga escala, como antes estava previsto. A série foi apresentada em uma exposição na galeria de arte da empresa, em Kansas City, Missouri, no Natal de 1960, e alguns cartões foram impressas para distribuição restrita. Desde então as imagens permaneceram inéditas.
Além dos cartões para a Hoechst Ibérica e para a Hallmark, Dalí também criou outras ilustrações natalinas sob encomenda para revistas e para anúncios publicitários. Alguns destes trabalhos já estavam no catálogo de suas obras-primas, caso das pinturas e aquarelas que tiveram versões publicadas em dezembro de 1948 na capa da revista “Vogue” norte-americana e dos anúncios de publicidade para as meias de nylon da marca Bryans, publicadas na edição de Natal da “Harper's Bazaar”, também em 1948, quando Dalí e Gala ainda moravam nos Estados Unidos.
As estranhas simetrias
Nas
pinturas, desenhos e ilustrações com os temas de Natal criados por
Salvador Dalí, existe a inevitável persistência de determinados
símbolos que percorrem toda a sua trajetória: no lugar dos típicos
cenários de neve, de pinheiros verdejantes, de laços e bolas
coloridas, as imagens natalinas do mestre surrealista representam
outros elementos, com sugestões arquitetônicas e formas geométricas
em estranhas simetrias de corpos femininos, além dos adornos
propositalmente incomuns que provocam saborosas ilusões de ótica e
remetem a polêmicas que marcaram época.
O Natal surreal de Dalí é repleto de analogias que
fogem dos limites da religiosidade e avançam em aproximações com o
abstrato, o irreal, o sonho. Mesmo quando o que está representado é
a Sagrada Família, formada por São José, a Virgem Maria e o Jesus
Cristo recém-nascido, a imagem vai revelar outras simetrias – com
cores imprevistas, com fragmentos de peixes e insetos, com anjos e
árvores delineados em forma de ambiguidades, às vezes bizarras, e também
com figuras lendárias da história da arte e da literatura, como a
Infanta Margarita Teresa, imortalizada em “Las Meninas”, pintura de 1656
de Diego Velázquez, ou o Don Quijote de la Mancha criado por Miguel
de Cervantes no livro de 1600.
O próprio Dalí declarou muitas vezes que a
irracionalidade e o apelo ao universo do pensamento onírico sempre
foram os princípios condutores de todo o seu processo criativo. Em dois dos
documentários que ele realizou, em parcerias com o fotógrafo Philippe Halsman
(“Chaos and Creation”, 1960) e o cineasta Jack Bond (“Dalí in New York”,
1965), Dalí explica, com muitos exemplos e em mínimos detalhes, as
etapas de seu processo de criação e as técnicas envolvidas dos primeiros esboços à finalização, condenando toda arte que esteja
pautada sobre as regras da tradição e do “bom gosto”.
A tradição da ruptura
No
filme em parceria com o fotógrafo Philippe
Halsman, seu mais fiel colaborador desde a década de 1940, Salvador Dalí
volta às suas declarações polêmicas da época do rompimento definitivo com o
grupo surrealista (“a diferença entre os surrealistas e eu é que
eu sou surrealista”) para avaliar os avanços que a Arte Moderna e
o Surrealismo proporcionaram ao século 20. Segundo Dalí, toda a influência e as referências que a arte produzida por ele legou à História vão muito além das exposições em galerias e do destaque de suas obras nos acervos dos principais museus internacionais: elas atingiram o comportamento
individual de muitos, muito antes da "atitude rock" de estrelas da música e da cultura pop, e marcaram presença até em questões de ciência e tecnologia.
Na sequência final do filme, o artista das controvérsias e das polêmicas apresenta sua conclusão profética que continua extremamente atual, depois de mais de 50 anos. "O Surrealismo irá, pelo menos, ter servido para
provar que a esterilidade e as tentativas de automatizações foram
longe demais e ainda correm o sério risco de conduzir toda arte e
toda civilização a um único sistema totalitário", alerta. Não resta
nenhuma dúvida: o provocador Salvador Dalí permanece
como um daqueles grandes mestres, raros e visionários, que sempre conseguem surpreender.
por José Antônio Orlando.
Como
citar:
ORLANDO,
José Antônio. Natal surreal de Salvador Dalí. In: Blog
Semióticas,
20 de dezembro de 2014. Disponível no link
http://semioticas1.blogspot.com/2014/12/natal-surreal-de-salvador-dali.html
(acessado
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