Quando, em 1865, o matemático inglês apaixonado por jogos e enigmas e pioneiro da fotografia Charles Lutwidge Dodgson (1832-1898), hoje conhecido pelo pseudônimo de Lewis Carroll, publicou o romance "Alice no País das Maravilhas", encontrou um sucesso inesperado e também muitos problemas. A começar pela primeira edição, de 2 mil exemplares, que mal saiu da gráfica, na época, e foi recolhida pelo ilustrador John Tenniel, sob a alegação de que a qualidade da impressão estava ruim.
Tenniel, patrocinador, destruiu a maioria dos livros. A edição seguinte, bancada pelo próprio professor Dodgson, esgotou em pouco tempo e rendeu ao autor um processo por ir contra os bons costumes e escrever um livro incompreensível. Depois vieram outras edições, mas os poucos exemplares que sobreviveram daquelas primeiras tiragens hoje são guardados a sete chaves. Em 1998, um deles foi leiloado por US$ 1,5 milhão.
"Alice no País das Maravilhas" foi escrito pelo professor Dodgson com exatas 36 mil palavras, a pedido de Alice Pleasance Liddell, uma garotinha que na época tinha 10 anos e que era filha do reitor da escola onde Dodgson lecionava. O retrato de Alice Liddell, a fotografia mais conhecida feita pelo professor Dodgson (reproduzida acima), está completando 150 anos.
"Alice no País das Maravilhas" foi escrito pelo professor Dodgson com exatas 36 mil palavras, a pedido de Alice Pleasance Liddell, uma garotinha que na época tinha 10 anos e que era filha do reitor da escola onde Dodgson lecionava. O retrato de Alice Liddell, a fotografia mais conhecida feita pelo professor Dodgson (reproduzida acima), está completando 150 anos.
Charles Lutwidge Dodgson era amigo da família e se dizia perdidamente apaixonado pela inteligência de Alice, a quem fotografava com certa frequência. Durante um passeio de barco no rio Tâmisa, com Alice e outras crianças, o professor contou uma história engraçada e de puro nonsense sobre uma garotinha que segue um coelho e começa a viver uma aventura fantástica. Anos depois de sua morte, o professor Dodgson ganharia popularidade no mundo inteiro com seu pseudônimo: Lewis Carroll, autor de “Alice no País das Maravilhas”.
Nudez, jogos, ilusionismo
Nudez, jogos, ilusionismo
Apaixonado por magia, ilusionismo e todo tipo de jogos, Dodgson gostava de teatro e era frequentador de ópera. Nunca se casou, mas manteve uma relação amorosa por toda a vida com a atriz Ellen Terry, o que também escandalizava a sociedade de sua época. Algumas das acusações que se fazia ao professor Dodgson perduram até nossos dias – a mais cruel delas é que ele tinha um comportamento obsceno e pedófilo.
A acusação vem da amizade que o professor mantinha com Alice e outras garotinhas, mas tudo não passava de suspeitas: nunca ficou provado nenhum delito contra ele. As amizades eram aprovadas pelas famílias e algumas também autorizaram Dodgson a fotografar as garotas. Mas ele temia que a divulgação das imagens pudesse causar problemas às famílias e às crianças, motivo pelo qual pediu em testamento que, após morte, todas as fotografias fossem destruídas ou devolvidas às crianças e a seus pais.
Algumas das fotos de Alice e das outras meninas, por sorte, sobreviveram e foram reunidas em 1995 no livro publicado por Carol Mavor, “Pleasures Taken - Performances of Sexuality and Loss in Victorian Photographs". Versão da tese acadêmica que a autora apresentou na Duke University, o livro apresenta um estudo sobre as fronteiras entre a arte e o obsceno a partir das primeiras fotografias produzidas na Inglaterra sob o reinado da austera e puritana Rainha Vitoria (1819-1901).
A partir da análise das fotografia de Dodgson e de outros fotógrafos pioneiros da segunda metade do século 19 (incluindo Julia Margaret Cameron, autora da foto que ilustra a capa do livro), Carol Mavor faz uma defesa veemente da arte e da personalidade do autor de “Alice no País das Maravilhas”, descrito como alguém muito à frente de seu tempo. O livro de Carol Mavor inclui uma seleção de imagens surpreendentes, como a foto da menina Evelyn Hatch, fotografada por Dodgson em 1878 totalmente nua.
As edições brasileiras já reuniram as obras completas de Lewis Carroll, à exceção de seus estudos de lógica e matemática e dos seus manuais manuscritos com instruções sobre passes de mágica e truques de ilusionismo – alguns dos quais se tornaram muito comuns no mundo inteiro, como a modelagem de um camundongo com um lenço para em seguida fazê-lo pular misteriosamente com a mão e as dobraduras para fazer chapéus e barquinhos de papel.
Além de “Alice no País das Maravilhas” e “Alice no País do Espelho”, foram publicados no Brasil “Algumas Aventuras de Silvia e Bruno”, “Rimas no País das Maravilhas”, “A Caça ao Turpente” e “Obras Escolhidas”, coletânea de seus contos e histórias curtas. Outro livro, o mais polêmico de todos, foi publicado em 1997 pela editora 7 Letras: "Cartas às suas amiguinhas", que como indica o título reúne o conteúdo das cartas de Lewis Carroll às meninas com quem ele se relacionou. Nas cartas, o autor revela a mesma personalidade, tão ingênua quanto enigmática, que consagrou na literatura universal a presença de Alice.
Piadas e trocadilhos visuais
Traduzidas para mais de 50 línguas, as incríveis aventuras da garota que foi parar em um mundo inacreditável após cair na toca do coelho ganharam muitas versões e variantes pelo mundo afora. A mais recente, dirigida pelo cineasta norte-americano Tim Burton, entusiasta do fantástico e do sobrenatural, dividiu opiniões – exatamente como tem sido há décadas e décadas com o próprio livro de Lewis Carroll, que já provocou processos e acusações delirantes de pedofilia, má influência, elogio da loucura e outras blasfêmias.
O teor mais provocante das aventuras de Alice, contudo, perde-se inevitavelmente nas traduções. Muitos enigmas e situações ambíguas contidos no livro são quase que imperceptíveis para os leitores atuais, com suas tiradas filosóficas e por vezes absurdas, suas palavras-valise (“alicinações” é uma delas) e suas muitas referências cifradas, incluindo as piadas e os trocadilhos lógicos que só fazem sentido na língua inglesa.
Nas livrarias e na cultura pop, quase 150 anos após a primeira edição do clássico de Lewis Carroll, viagens ao mundo dos sonhos, monstros, seres encantados, magia e poderes sobrenaturais – que por incrível que pareça provocaram a repulsa sobre Alice de muitos leitores e críticos mais puritanos no último século – nunca fizeram tanto sucesso, incluindo a saga milionária saída dos livros com as aventuras do bruxo adolescente Harry Potter, que descobre um outro mundo quando entra para uma escola de magia, e dos romances da saga "Crepúsculo", sobre a garota que cai em um mundo fantástico e delirante, povoado de criaturas surreais, quando descobre o amor por um vampiro.
A Alice imaginada por Lewis Carroll teve dezenas de versões no cinema, no decorrer do século 20, e permanece como presença marcante adaptada para mídias diversas e formatos diversos, incluindo histórias em quadrinhos, teatro, TV, videogames e também no mundo da moda, como é o caso do célebre editorial fotografado por Annie Leibovitz para a revista "Vogue" em 2003, com estilistas do primeiro time no papel de personagens do livro apresentando criações de figurinos de alta costura para a Alice interpretada pela modelo Natalia Vodianova.
Nos últimos anos, a publicidade em torno da superprodução para o filme de Tim Burton sobre "Alice no País das Maravilhas" (fotos abaixo) impulsionou e continua impulsionando o lançamento de novas edições e novas versões do clássico da literatura fantástica assinado por Lewis Carroll. Entre os muitos lançamentos, algumas edições são dignas de nota, entre elas a versão do artista plástico Luiz Zerbini (editora Cosac Naify), com ilustrações autorais feitas com maquetes de cartas de baralho de diversos países.
Também merecem destaque, entre vários outros, o mineiro de Belo Horizonte Rafael Resende, com “Alice" (editado pela 2 Pontos Wide Business); outro mineiro de Juiz de Fora, Arlindo Daibert (1952-1993), com uma sequência espelhada nomeada como “Alice no País das Maravilhas" produzida com ilustrações de grafite e lápis de cor sobre papel, atualmente no acervo do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro; o espanhol Iban Barrenetxea, premiado em 2010 pela Sociedade Lewis Carroll do Reino Unido por sua coleção de aquarelas baseadas na história original e publicadas em uma edição de "Alice" pela editoria Anaya (Espanha); e a uruguaia Verónica Leite, com “Uma história para Alice” (Editora Melhoramentos), autores de trabalhos surpreendentes que dialogam com o original de Lewis Carroll e estendem as fronteiras da história que todos sabemos de cor e salteado.
Também merecem destaque, entre vários outros, o mineiro de Belo Horizonte Rafael Resende, com “Alice" (editado pela 2 Pontos Wide Business); outro mineiro de Juiz de Fora, Arlindo Daibert (1952-1993), com uma sequência espelhada nomeada como “Alice no País das Maravilhas" produzida com ilustrações de grafite e lápis de cor sobre papel, atualmente no acervo do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro; o espanhol Iban Barrenetxea, premiado em 2010 pela Sociedade Lewis Carroll do Reino Unido por sua coleção de aquarelas baseadas na história original e publicadas em uma edição de "Alice" pela editoria Anaya (Espanha); e a uruguaia Verónica Leite, com “Uma história para Alice” (Editora Melhoramentos), autores de trabalhos surpreendentes que dialogam com o original de Lewis Carroll e estendem as fronteiras da história que todos sabemos de cor e salteado.
Antes e depois da viagem
Autora de "El Mandado del Tatú" e "Un Misterio para el Topo", premiados no Uruguai, seu país de origem, Verónica Leite investe no contexto histórico da Inglaterra da era vitoriana, em que foi criado o texto mais célebre de Lewis Carroll, e aposta principalmente na inteligência do leitor, acrescentando um "antes" e um "depois" à narrativa sobre a "viagem" delirante de Alice.
O livro-álbum de Verónica Leite, que traz enigmas visuais para o leitor adulto, por certo vai encantar os pequenos ao brincar com forma e conteúdo para contextualizar a origem da história: o passeio de barco no rio Tâmisa do professor Dodgson com a pequena Alice Liddell, sua preferida, na época com 10 anos, e suas duas irmãs, Edith e Lory. Verónica reconstitui a cena, diálogos, trajeto, até que a pequena Alice convence o professor a escrever aquela história mirabolante de números, cálculos, sonhos e seres inacreditáveis. À viagem de Dodgson e de Alice pelo mundo da lógica e da matemática, a nova versão de Verónica Leite acrescenta citações sofisticadas e bem-humoradas.
Bem no espírito da narrativa original, a autora investe em detalhes à margem das páginas: à Rainha Vitória, símbolo do moralismo extremado da época em que viveram Alice Liddell e o professor Dodgson, e a grandes escritores dos domínios do fantástico e do mundo maravilhoso dos sonhos que vieram antes e depois dele, entre eles Shakespeare, Swift, Freud, Borges, mais The Beatles (que adaptaram a história de Alice e Dodgson em “I Am the Walrus”) e os mestres surrealistas Dalí, Chagall, André Breton, Magritte e Paul Klee. Um deleite inteligente – para cativar leitores de todas as idades.
O chapeleiro é louco e a lebre é maluca
|
Outra edição de “Alice”, produzida em Belo Horizonte por Rafael Resende, não é menos surpreendente e inteligente. Para comemorar seu aniversário de 10 anos, a 2 Pontos Wide Business lançou o livro em belíssimo projeto gráfico, desenvolvido pelo próprio Rafael Resende, que também traduziu o texto original e elaborou uma série de sofisticadas ilustrações (imagem abaixo).
Rafael, que trabalha como ilustrador, conta que o livro teve origem como projeto de graduação em Design Gráfico na UEMG. "Foi um presente esta proposta para editar o livro", comemora. Além da dedicação profissional às ilustrações, ele também trabalha como fotógrafo de eventos, incluindo aniversários, casamentos e formaturas. Uma amostra do trabalho de Rafael Resende está disponível em seu site (clique aqui).
Traduzida para o português, a "Alice" de Rafael Resende é fiel ao extremo ao original em inglês, repleta de trocadilhos e ironias sutis. A pesquisa de Rafael também avançou pela biografia de Lewis Carroll e da garota Alice Liddell, investigando sutilezas que virariam a inspiração do escritor para inventar a incrível personagem que segue um coelho branco e descobre um mundo onírico com estranhas criaturas depois de cair num buraco.
Perfeccionista, o designer de Belo Horizonte pesquisou a linguagem figurada do livro original de Lewis Carroll para representar expressões ligadas à cultura popular da época vitoriana. Na versão de "Alice" segundo Rafael Resende, personagens como o Chapeleiro Louco e a Lebre Maluca ganham sentidos insuspeitados e muitas vezes surpreendentes. Um deles: antigamente, na Inglaterra, os chapeleiros usavam mercúrio na confecção de chapéus e muitos deles sofriam de demência pelo contato excessivo com o produto. Enlouqueciam.
Perfeccionista, o designer de Belo Horizonte pesquisou a linguagem figurada do livro original de Lewis Carroll para representar expressões ligadas à cultura popular da época vitoriana. Na versão de "Alice" segundo Rafael Resende, personagens como o Chapeleiro Louco e a Lebre Maluca ganham sentidos insuspeitados e muitas vezes surpreendentes. Um deles: antigamente, na Inglaterra, os chapeleiros usavam mercúrio na confecção de chapéus e muitos deles sofriam de demência pelo contato excessivo com o produto. Enlouqueciam.
Já a Lebre Maluca vem da sabedoria de um dito popular daqueles tempos, "louco como uma lebre de março": as lebres que habitam os campos e bosques do Reino Unido costumam procriar neste mês e, por conta do cio, ficam completamente descontroladas, em estado de euforia, à beira da loucura. Entre outras histórias saborosas que dialogam com o original de Lewis Carroll, Rafael Resende lembra, na entrevista, do filme que Walt Disney fez baseado nas aventuras da garotinha no país das maravilhas. Ele diz que sempre gostou muito do visual da versão Disney e que ele é uma inspiração inevitável porque faz parte do imaginário coletivo.
Lançado somente em 1951, “Alice” foi, na verdade, o primeiro projeto de Walt Disney, mas demorou décadas para ser concluído. A versão final, que teve problemas com a censura no Pós-Guerra, incluiu a colaboração não creditada e polêmica de Salvador Dalí, que terminou com o rompimento entre Disney e o artista espanhol e sobre a qual há muitas versões e rara documentação (sobre a parceria entre Disney e Dalí, veja também Semióticas: Alice volta ao futuro). Mesmo não estando entre os maiores sucessos comerciais dos estúdios Disney, “Alice” tem qualidades que sobreviveram ao tempo e continua encantando crianças e adultos de todas as idades. Tal e qual o estranho livro das aventuras de Alice Pleasance Liddell escrito por um certo professor Dodgson.
por José Antônio Orlando.
Como citar:
ORLANDO, José Antônio. Alice vai ao futuro. In: Blog Semióticas, 19 de julho de 2011. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2011/07/alice-vai-ao-futuro.html (acessado em .../.../...).
Para comprar o livro "Alice no país das maravilhas", clique aqui.
por José Antônio Orlando.
Como citar:
ORLANDO, José Antônio. Alice vai ao futuro. In: Blog Semióticas, 19 de julho de 2011. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2011/07/alice-vai-ao-futuro.html (acessado em .../.../...).
Para comprar o livro "Alice no país das maravilhas", clique aqui.