Defender o nosso patrimônio histórico
e artístico é alfabetização. –– Mário
de Andrade (1893-1945).
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O
Brasil e a maioria de suas cidades cresceram em torno de igrejas
católicas – tanto que, durante séculos, ser brasileiro era quase
um sinônimo de ser católico. Neste terceiro Milênio, o Brasil
continua sendo o maior país católico do mundo, mesmo que as
estatísticas demonstrem uma crescente redução no número de fiéis
ao longo das últimas décadas: no primeiro censo aqui realizado, em
1872, a religião católica era seguida por 99,7% da população; no
último censo do IBGE, divulgado em 2012, há 123 milhões de
católicos no Brasil, o que representa 64,6% da população.
Muito
além das questões de fé ou do significado religioso, as antigas
igrejas católicas são importantes marcos da construção do
patrimônio histórico e cultural do Brasil, mas a maior parte delas
não sobreviveu até nossos dias. Da maioria, não restaram sequer
ruínas, mas em alguns casos as igrejas que já não existem tiveram
sua imagem preservada em belos registros feitos pelos pioneiros da
fotografia no século 19 e no começo do século 20. Estas imagens,
relíquias produzidas em técnicas diversas, antes restritas apenas para um pequeno grupo de
pesquisadores, estão agora disponíveis para acesso público pela
Internet através do portal Brasiliana Fotográfica.
Resultado
de uma parceria entre a Fundação Biblioteca Nacional e o Instituto
Moreira Salles (IMS), o Brasiliana Fotográfica abriu para acesso livre e gratuito uma galeria de imagens das antigas igrejas
registradas nos primeiros tempos da fotografia. Centenas de imagens fotográficas, em sua maioria pouco conhecidas e pouco divulgadas anteriormente, já foram
publicadas pelo portal em alta resolução – todas elas
provenientes dos acervos das valiosas e raríssimas coleções fotográficas que
estão atualmente preservadas e sob a guarda da Biblioteca Nacional e
do IMS.
Alguns dos primeiros e mais importantes nomes da fotografia no
Brasil estão na galeria de imagens raras e preciosas
apresentada pela série da Brasiliana Fotográfica, com destaque para Marc Ferrez (1843-1923), Militão Augusto de Azevedo
(1837-1905), Augusto Malta (1864-1957) e Guilherme Antônio dos
Santos (1871-1966), entre vários outros. Mas não são apenas os primeiros fotógrafos brasileiros que tiveram obras selecionadas. Na galeria do portal também estão pioneiros de
outros países que instalaram seus ateliês de ofício de fotografia e serviços gráficos no Brasil ou que
viajaram pelas regiões do litoral e do interior do país registrando em imagens fotográficas os cenários,
os povos e os monumentos que encontraram.
Ilustres
e desconhecidos
Entre os estrangeiros que registraram em fotografias as antigas igrejas do
Brasil, incluídos na série da Brasiliana Fotográfica, estão os alemães Revert Henrique Klumb (1830-1886), Augusto
Riedel (1836-1877) e George Huebner (1862-1935); os franceses
Jean-Victor Frond (1821-1881) e Theophile Auguste Stahl (1824-1877);
os suíços George Leuzinger (1813-1892) e Guilherme Gaensly
(1843-1928); o inglês Benjamin Robert Mulock (1829-1863), o
português Felipe Augusto Fidanza (1847-1903) e outros pioneiros célebres. Há também, no acervo publicado
pelo portal, diversas fotografias
muito bem preservadas mas que têm autoria anônima, porque a
identificação do fotógrafo se perdeu com o tempo.
Além
das fotografias de autoria anônima, há também aquelas atribuídas
a fotógrafos sobre os quais há mínimos registros biográficos –
como Schleier J., que atuou em Salvador, Bahia, na década de 1870;
Bernardo Scheidemantel, que atuou na região de Blumenau, Santa
Catarina, na década de 1860; Louis Niemeyer, que atuou na região de
Joinville, também em Santa Catarina na década de 1860; Camillo Vedani, que atuou no Rio de Janeiro e em Salvador, nas décadas de 1850 e 1860; e Reginald
Gorham, identificado como autor de raridades como as vista panorâmicas datadas por volta de 1927 que mostram as antigas igrejas de Nossa Senhora da Conceição em Pedras de
Maria da Cruz, Minas Gerais, e a Matriz de Santo Antônio em Paratinga, no interior da Bahia.
Entre
os fotógrafos sobre os quais há mínimos registros biográficos,
incluídos na série da Brasiliana Fotográfica sobre antigas
igrejas, um caso singular é Augusto Flávio de Barros, conhecido tão
somente porque realizou a primeira e única documentação em
fotografia sobre a fase final da Guerra de Canudos, em 1897. O fotógrafo, que no início da década de 1890 possuía um estúdio de retratos na cidade Salvador, esteve presente na quarta e última investida militar violenta contra o beato Antônio Conselheiro e seus mais de 10 mil seguidores, mas não se sabe ao certo se ele acompanhou as tropas como
voluntário ou se foi convocado para o trabalho após a morte do espanhol Juan Gutierrez, que era o fotógrafo oficial do Exército Brasileiro em Canudos.
Os registros historiográficos indicam que três máquinas fotográficas estiveram presentes na fase final da Guerra de Canudos, sendo duas profissionais, que operavam com negativos de vidro, usadas pelos fotógrafos Juan Gutierrez e Flávio de Barros, e uma câmera portátil de negativos em rolo fabricados pela Eastman Kodak, que pertencia a Euclides da Cunha, na época correspondente enviado pelo jornal O Estado de S. Paulo. Das imagens produzidas por estas três câmeras, apenas as de Flávio de Barros foram divulgadas e permanecem como registros da guerra até a atualidade. Os negativos ou fotografias que foram feitos por Juan Gutierrez ou Euclides da Cunha nunca foram localizados.
Os registros historiográficos indicam que três máquinas fotográficas estiveram presentes na fase final da Guerra de Canudos, sendo duas profissionais, que operavam com negativos de vidro, usadas pelos fotógrafos Juan Gutierrez e Flávio de Barros, e uma câmera portátil de negativos em rolo fabricados pela Eastman Kodak, que pertencia a Euclides da Cunha, na época correspondente enviado pelo jornal O Estado de S. Paulo. Das imagens produzidas por estas três câmeras, apenas as de Flávio de Barros foram divulgadas e permanecem como registros da guerra até a atualidade. Os negativos ou fotografias que foram feitos por Juan Gutierrez ou Euclides da Cunha nunca foram localizados.
Augusto Flávio de Barros foi o único fotógrafo a acompanhar a guerra, que terminou com a destruição completa e com o número oficial de mais de 5 mil mortos no arraial de Canudos, no sertão da Bahia, entre o fim de setembro e o início de outubro de 1897. Na série divulgada pela Brasiliana Fotográfica estão cinco imagens de ruínas das igrejas de Canudos registradas, ao final da última batalha das tropas militares o contra o arraial liderado por Antônio Conselheiro, pela impressionante reportagem fotográfica de Augusto Flávio Barros, que no total é formada por 164 fotografias – sendo que 72 delas pertencem ao Museu da Republica, no Rio de Janeiro; 24 permanecem no acervo da Casa de Cultura Euclides da Cunha de São José do Rio Pardo, em São Paulo; e, infelizmente, 68 das fotografias de Barros desapareceram do acervo do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia.
O fotógrafo Mário de Andrade
Na
trajetória cronológica, as mais recentes fotografias de igrejas
antigas na série publicada pela Brasiliana Fotográfica datam do final da década
de 1920 – época em que Mário de Andrade, um dos principais
expoentes da Semana de Arte Moderna de 1922, liderou o engajamento
pela preservação do patrimônio histórico e artístico. É quase
inevitável relacionar a preservação do patrimônio e da memória
nacional com Mário de Andrade – o intelectual, escritor, poeta,
crítico literário, jornalista, musicólogo, ensaísta, folclorista,
fotógrafo e, sobretudo, produtor de ideias, sempre a procura de um
germe novo que se abriga na tradição e que traz à tona um Brasil
muitas vezes esquecido e submetido a processos de conquista e
dominação.
A
relação de Mário de Andrade com as questões do resgate das
tradições artísticas e da memória da cultura nacional vem de
antes da Semana de Arte Moderna de 1922 e culmina com o anteprojeto que ele redigiu
para a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (SPHAN), a pedido de Gustavo Capanema, ministro da Educação
de 1934 a 1945, durante o governo de Getúlio Vargas. Mário foi o
primeiro secretário de cultura do Brasil, na época em que exerceu o
cargo de diretor e fundador do Departamento de Cultura da Prefeitura
de São Paulo, e sempre esteve ligado às questões da preservação
da memória e do patrimônio da cultura nacional, mas tudo indica que
esta dedicação passou a ter para ele maior importância depois de
sua primeira viagem a Minas Gerais, em 1919.
Desta
primeira viagem de Mário a Minas resultou a publicação de seu
estudo sobre os monumentos e igrejas das cidades mineiras do Ciclo do
Ouro, intitulado “Arte Religiosa em Minas Gerais”. Sua segunda e
lendária viagem a Minas aconteceria em 1924, em companhia de um
grupo de amigos modernistas que incluía Oswald de Andrade, Tarsila
do Amaral e o poeta e escritor francês Blaise Cendrars. Naquela
viagem o grupo redescobriria o encanto da Arte Barroca, sua
arquitetura, sua pintura, sua religiosidade popular, como uma
manifestação legítima das mais preciosas e autênticas raízes e
matrizes da cultura brasileira, que teve em Antônio Francisco
Lisboa, o Aleijadinho, seu mais importante intérprete.
O Turista Aprendiz
Depois
viriam outras viagens, outros livros e outros projetos da maior
importância. Algumas destas viagens de Mário pelo Brasil foram
registradas por ele no relato para o livro ilustrado com suas fotos
“O Turista Aprendiz”, concluído em 1943, mas publicado pela
primeira vez somente em 1976. O livro agora está sendo relançado
pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional) e pelo IEB-USP (Instituto de Estudos Brasileiros da
Universidade de São Paulo), em edição organizada pelas professoras
Telê Ancona Lopez e Tatiana Longo Figueiredo.
A
nova edição ilustrada, com 462 páginas, inclui um CD-Rom com os diários de Mário de Andrade
fotógrafo, formado por imagens e legendas feitas por ele com muito
bom humor e em tom de informalidade, narrando sua trajetória de
viagens e suas descobertas pelo interior do Brasil. A edição também
traz encartado um DVD com o documentário de
autoria de Luiz Bargmann, “A Casa do Mário”, que através de imagens de arquivo, fotografias, peças de sua coleção de arte, livros e discos, reconstitui o
cotidiano familiar e social do ilustre paulistano na casa em que morou
entre 1921 e 1945, situada em um endereço que se tornou lendário
para seus amigos e leitores, na Rua Lopes Chaves, n° 546, Barra
Funda, em São Paulo.
Em “O Turista Aprendiz”, Mário de Andrade registra detalhes saborosos sobre as viagens de pesquisa que fez à
região Norte, até as fronteiras com Peru e Bolívia, em 1927, e
depois, em 1928, ao Nordeste, incluindo Pernambuco, Paraíba,
Alagoas, Bahia e Rio Grande do Norte. Vale lembrar que, além das
imagens publicadas no livro, Mário também deixou cerca de 1600 fotografias em
positivo e centenas em negativo que comprovam suas habilidades como exímio fotógrafo.
Todas as fotografias das viagens foram feitas com sua câmera Kodak tipo “caixão” (máquina Codaque, como ele mesmo escrevia), durante suas viagens e nas expedições folclóricas que coordenou. A maior parte do acervo de Mário, que inclui suas fotografias, seus rascunhos, cartas, gravações de áudio, objetos recolhidos durante o trajeto das viagens, manuscritos e anotações diversas, somando cerca de 30 mil peças, mais sua biblioteca (com 17.624 volumes) e sua coleção de artes plásticas e mobiliário (1.234 peças) está, atualmente, no arquivo do escritor sob a guarda do IEB-USP.
Todas as fotografias das viagens foram feitas com sua câmera Kodak tipo “caixão” (máquina Codaque, como ele mesmo escrevia), durante suas viagens e nas expedições folclóricas que coordenou. A maior parte do acervo de Mário, que inclui suas fotografias, seus rascunhos, cartas, gravações de áudio, objetos recolhidos durante o trajeto das viagens, manuscritos e anotações diversas, somando cerca de 30 mil peças, mais sua biblioteca (com 17.624 volumes) e sua coleção de artes plásticas e mobiliário (1.234 peças) está, atualmente, no arquivo do escritor sob a guarda do IEB-USP.
Visão
abrangente e contemporânea
Na
viagem de 1927, Mário teve como acompanhantes sua amiga, aristocrata
do café e mecenas dos modernistas, Olívia Guedes Penteado, sua
sobrinha Margarida Guedes Penteado e a filha de Tarsila do Amaral,
Dulce do Amaral Pinto. Outros amigos planejavam participar, entre
eles o casal Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade, mas terminaram
adiando por conta de outros compromissos. Durante três meses, a
partir de maio daquele ano, a comitiva de Mário seguiu do Rio de
Janeiro a Iquitos, no Peru, navegando pelos rios Amazonas, Solimões
e Madeira, incluindo uma temporada em Manaus.
Na
segunda viagem, iniciada em novembro em 1928, Mário de Andrade
partiu sozinho para o Nordeste, onde permaneceu até fevereiro do ano
seguinte e foi recebido por outros célebres pesquisadores do
folclore e da cultura popular, entre eles Ascenso Ferreira, Jorge de
Lima, Cícero Dias e Luís da Câmara Cascudo. O contato com a
floresta e com o sertão, as cidades, vilarejos, seus habitantes e
suas manifestações culturais, a religiosidade, os folguedos, as
danças, as músicas, quase sempre impregnadas de muito sincretismo e
superstição, causam em Mário um grande impacto, consolidando uma
visão de nacionalidade muito mais abrangente, em oposição às
concepções dominantes da época, copiadas principalmente dos
ambientes das cidades da Europa. Entre a primeira e segunda viagem,
Mário escreveu e publicou uma de suas obras-primas, o romance
“Macunaíma”.
Mais
tarde, em 1936, Mário de Andrade aceita o convite do ministro
Gustavo Capanema para redigir o anteprojeto para o futuro SPHAN
(atualmente Iphan), que foi criado em 1937 e teve como primeiro diretor
Rodrigo Melo Franco de Andrade. Ainda hoje a proposta elaborada e
redigida por Mário impressiona por conta de sua visão abrangente e
contemporânea. Organizado em três capítulos, o anteprojeto estabelece as competências do Serviço do Patrimônio, as categorias dos bens culturais e os critérios de seleção para tombamento em quatro livros do tombo. A fundamental presença de Mário na criação e no
apoio à gestão do SPHAN iria se estender de 1936 até a sua morte
precoce, aos 52 anos, em 25 de fevereiro de 1945.
Desde
então a obra literária de Mário de Andrade, sua atuação como
mentor nas questões da cultura nacional e também sua
correspondência com uma legião de discípulos (como Carlos Drummond
de Andrade, Rodrigo Melo Franco de Andrade, Tarsila do Amaral,
Fernando Sabino, Manuel Bandeira, Gustavo Capanema e muitos e muitos
outros) assumem importância crescente e estabelecem a crônica e o
cenário de uma época em que, após séculos de colonialismo, o
Brasil forma sua imagem e identidade. Neste cenário, a preservação
e a valorização do patrimônio nacional, em suas múltiplas
interfaces, têm muito da presença ideológica de Mário de Andrade
e a criação do SPHAN significa, por certo, sua certidão de
nascimento.
por
José Antônio Orlando.
Como
citar:
ORLANDO,
José Antônio. O passado intransitivo. In: Blog
Semióticas,
8 de janeiro de 2016. Disponível no link
http://semioticas1.blogspot.com/2016/01/o-passado-intransitivo.html
(acessado
em .../.../...).
Para visitar o acervo de Mário de Andrade no IEB-USP, clique aqui.
Para assistir o documentário A Casa do Mário, de Luiz Bargmann, clique aqui.
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