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Dizer
que “a câmera não pode mentir” é simplesmente
enfatizar
as inúmeras fraudes realizadas em seu nome.
–– Marshall
McLuhan.
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Os
primórdios da fotografia e da imprensa no Brasil – e mais especificamente na cidade do Rio de Janeiro, sede da Corte no Império e primeira capital da República, entre 1839, ano
da primeira patente da invenção do daguerreótipo na França, até
o ano de 1900, quando a disseminação e a popularização dos
processos fotográficos se firmavam como negócio altamente rentável
nos centros mais desenvolvidos do território nacional – têm um
documento importante com a publicação de um livro de Joaquim Marçal Ferreira de Andrade que tem como título “História da
Fotorreportagem no Brasil: A fotografia na imprensa do Rio de de
Janeiro de 1839 a 1900”.
Menos
que uma celebração ao processo técnico que provocou revoluções na história da imprensa e na vida social e cotidiana dos indivíduos e das populações desde seu surgimento, e muito mais que um mero relatório de pesquisas
sobre eventos, imagens, nomes e datas do Oitocentos relacionadas à fotografia e à invenção da fotorreportagem, o livro de
Joaquim Marçal, em publicação conjunta das editoras Elsevier, Campus e Biblioteca
Nacional, alcança relações historiográficas que vão além do que outras pesquisas e publicações sobre o tema já revelaram. O autor acompanha a trajetória do jornalismo, da
publicidade, das artes gráficas e dos diversos processos do design que
envolvem a criação e impressão de imagens, apontando o descompasso de longa data entre a imprensa no Brasil em comparação com países mais
avançados.
A
edição do livro coincidiu com o reconhecimento do trabalho do
pesquisador, com o título de Patrimônio da Humanidade concedido
pela Unesco, através do programa Memória do Mundo, ao objeto de
pesquisa a que Marçal há décadas tem dedicação: a Coleção Teresa Cristina Maria, um espólio reunindo um acervo valioso de mais de 2.500 imagens dos
maiores fotógrafos que atuavam no Brasil no século 19 – como Marc Ferrez,
Revert Henry Klumb, Augusto Stahl, Alberto Henschel, Georges
Leuzinger, Juan Gutiérrez e Augusto Malta, entre outros. A coleção foi doada pelo
imperador Dom Pedro 2° à Biblioteca Nacional antes de embarcar para
a Europa, em 1889, forçado pela instauração da República pelos militares.
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Fotorreportagem desde 1839: no
alto
e acima, tropas armadas do Brasil no
campo de batalha e nas trincheiras, depois
da tomada da cidade de Paysandú, no Uruguai, durante a Guerra do Paraguai, em algumas das primeiras fotografias transcritas
em
xilogravuras e publicadas na revista
Semana Illustrada. Abaixo, uma gravura de Heinrich Fleiuss retrata brasileiros e uruguaios invadindo a cidade de Paysandú; e o imperador Dom Pedro 2° em Uruguaiana, no Rio Grande do Sul, em fotografia de 1865 de Luiz Terragno. Sobre os registros
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A
honraria de Memória do Mundo, antes concedida pela Unesco apenas a
relíquias como a Bíblia de Johann Gutenberg, surpreendeu Joaquim
Marçal, que soube da notícia pela TV, enquanto assistia ao Jornal
Nacional da TV Globo. Fiz uma longa entrevista com ele para um jornal de Belo Horizonte, pelo telefone, à época
do lançamento do livro. A notícia de que temos em comum a mesma
dedicação de pesquisa estabeleceu de imediato entusiasmo e empatia
em nossa conversa sobre a história da fotografia no Brasil e o
estado atual da pesquisa e conservação dos acervos.
Marçal
destaca, na entrevista, que além do status de valorização internacional pelo
tombamento pela Unesco do conjunto documental da coleção do
imperador, sua expectativa é que o título de Memória do Mundo
possa garantir recursos para a pesquisa e digitalização do grande
volume de material iconográfico da Biblioteca Nacional e, por
extensão, de outros acervos fotográficos importantes do Brasil que ainda permanecem pouco conhecidos. “A
fotografia brasileira do século 19 é tão rica quanto
desconhecida”, avalia.
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Imagens de guerra: ilustração publicada em
1867 na Semana Illustrada e daguerreótipo
anônimo que registra vários corpos de
soldados paraguaios amontoados
depois da batalha de Humaitá. Abaixo, uma tropa brasileira com o Conde D'Eu e seu estado maior, nas proximidades da cidade de Lambaré, no Paraguai, em registro de um fotógrafo anônimo em 1868
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Acervo
de raridades
Joaquim Marçal é o que se pode chamar, de fato, de especialista na trajetória
da fotografia no Brasil, reunindo um currículo profissional que
inclui atividades como fotógrafo, designer, chefia da divisão de
iconografia da Fundação Biblioteca Nacional, título de mestrado em
Design, doutorado em História Social e docência na PUC do Rio de
Janeiro. “História da Fotorreportagem no Brasil” reúne, na
verdade, a quase totalidade da dissertação de mestrado que Marçal
apresentou na PUC-Rio, em 2002. Já no trabalho de doutorado, retorna
ao Oitocentos com uma investigação sobre imagens fotográficas da
Guerra do Paraguai, tendo como orientadores dois intelectuais
destacados: Celeste Zenha e José Murilo de Carvalho.
Um
dos grandes destaques do livro de Joaquim Marçal é exatamente seu
fôlego exploratório para localizar as primeiras imagens, tanto as
ilustrações como as fotografias, registradas na imprensa
brasileira. O autor destaca que o grande marco, na trajetória das artes gráficas e da imprensa no Brasil, é o aparecimento e o aperfeiçoamento das técnicas de
reprodução de ilustrações e fotografias em jornais e revistas que acontece durante a Guerra do Paraguai, o maior e
mais sangrento conflito armado da América do Sul.
Ilustrações
e fotografias que retratavam o confronto e a união de Brasil,
Argentina e Uruguai (cujas
tropas militares, em ação conjunta, marcharam contra o vizinho
Paraguai, tornando aquele país terra arrasada), eram artigo muito
popular e disputado como fetiche no período da guerra, que se
estendeu de dezembro de 1864 a março de 1870, e também nos anos e
décadas seguintes.
A
derrota também marcaria uma reviravolta decisiva na história do Paraguai,
transformando completamente o país, que passou de única República
das Américas sem nenhum analfabeto para um dos países mais
atrasados do continente. O Paraguai também sofreria decréscimo
populacional, ocupação militar por mais de dez anos, pagamento de
pesada indenização de guerra (que, no caso do Brasil, teve o
pagamento estendido até a Segunda Guerra Mundial) e perda de 40% de
seu território para Brasil e Argentina.
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Guerra do Paraguai e os primeiros registros
em fotojornalismo no Brasil: na imagem do
alto, Rendição de Uruguaiana, recriação
patriótica do
campo de batalha em litografia
de Pedro Américo. Acima, os prisioneiros
paraguaios, a maioria formada por índios
muito jovens, descalços e maltrapilhos que
foram transformada em escravos depois
do fim das batalhas. Abaixo, a igreja central de Paysandú, no Paraguai, completamente destruída depois da batalha, em fotografia anônima de 1865. Também abaixo, cenas do
campo de batalha: o Conde D'Eu (com
a mão na cintura) visita as tropas durante
a guerra, e um raro momento de
descontração dos soldados aliados
em foto no acampamento militar
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Uma
das primeiras fotografias transcritas em xilogravura aparece nas
páginas da “Semana Illustrada”, publicada no Rio de Janeiro,
sede do Império e posteriormente capital da República. A legenda
identifica a imagem, que retrata tropas brasileiras durante a Guerra do Paraguai: “Vistas de Paissandú depois da tomada da
praça, fotografadas ao natural e obsequiosamente oferecidas à
Semana Illustrada pelo Ilm. e Exm. Srn. Vianna de Lima”.
Outro
dos muitos destaques pelo que trazem de avanços para a
historiografia, com importância especial para a história de Minas
Gerais, é a identificação pelo autor do livro "História da Fotorreportagem no Brasil" da primeira fotografia produzida em território
mineiro, realizada por um fotógrafo anônimo em Ouro Preto, então
Vila Rica, possivelmente no começo de 1865, e ofertada como presente ao
imperador Dom Pedro 2°.
Trata-se
de uma vista panorâmica, como se dizia na época, da atual Praça
Tiradentes, enquadrando as tropas em alinhamento militar que
ocupavam o largo da praça antes de seguir viagem para os campos de batalha
na Guerra do Paraguai. A legenda: “Vista da Praça de Vila Rica no
dia da partida da 1ª expedição de Minas para Mato Grosso.
Oferecida a Sua Majestade Imperial e Senhor Dom Pedro por seu súdito
Antônio de Assis Martins”.
Como
identificar, entretanto, data e autoria, quando não há registro
verbal? No caso da foto das tropas em Ouro Preto, o enigma se desfaz
com a comparação da publicação de uma minuciosa recriação em
cópia litográfica quase literal da mesma fotografia pela “Semana
Illustrada” em julho de 1865, creditada a Henrique Fleiuss, mestre
de ofício e entusiasta da novidade da “fotorreportagem” que ele
ajudava a instaurar na imprensa brasileira.
Coleção
do Imperador
Outros
casos de razoável fidelidade das cópias litografias ou em
xilogravura, em relação ao original fotográfico, que surgem em
diversas publicações do período, são destacadas por Joaquim
Marçal, que enumera análises, registros e uma profusão de
gravuras, cartuns, mapas e fotografias que surgem em periódicos como
“Ilustração do Brasil”, “O Besouro”, “A Cigarra”, “O
Mercúrio”, “O Mosquito”, “A Comédia Social”, “A Vida
Fluminense”, “O Torniquete” e “O Mequetrefe”, entre muitos
outros – com o mérito adicional de abordar não apenas o Rio de
Janeiro, estendendo a abrangência a questões nacionais e
internacionais do período, no que se refere à reprodução técnica,
à economia e à socialibidade em geral.
“Tenho
a pesquisa como missão”, reconhece Joaquim Marçal. A vocação
ele atribui a questões de família, especialmente a influência do
trabalho de seu pai, o escritor Olímpio de Souza Andrade.
Pesquisador destacado em seu tempo e especialista na vida e obra de
Euclides da Cunha, o pai de Joaquim Marçal também recebeu um prêmio
importante da Unesco, no final da década de 1950, e chegou a ter seu
trabalho publicado na célebre Coleção Brasiliana.
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Viagens
da Família Imperial do Brasil:
no alto, Dom Pedro 2° e família fotografados
no Vale
das Pirâmides, Egito, em 1871.
Acima, Ouro Preto, antiga Vila Rica,
em
daguerreótipo datado de 1881 de autoria
atribuída ao Imperador Pedro 2°. Abaixo,
capas de duas publicações pioneiras na
imprensa brasileira: a revista Semana Illustrada,
de Henrique Fleuiss, que circulou de 1860 a 1876;
e a Revista Illustrada, de Angelo Agostini, que
circulou de 1876 a 1898. Também abaixo,
um marco
historiográfico registrado pelo
autor do livro, Joaquim Marçal, com a
identificação da primeira fotografia feita
em território das Minas
Gerais: uma vista
panorâmica por um fotógrafo anônimo da praça central (atualmente Praça Tiradentes) em
Ouro Preto, então Vila Rica, registrada possivelmente em 1865, com uma legenda em dedicatória para
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Nos
últimos anos, Joaquim Marçal também foi destaque na mídia por
conta da curadoria que realizou em diversas exposições sobre
fotografias do século 19, entre elas “De Volta à Luz”, “A
Coleção do Imperador Dom Pedro 2°” e “Fotografia Brasileira e
Estrangeira no Século 19”, apresentadas em São Paulo e no Rio de
Janeiro e no exterior, em Buenos Aires, na Argentina, no Porto e em
Lisboa, em Portugal. Uma amostra da qualidade de seu trabalho está
refletida na publicação sobre a história da fotorreportagem no
Brasil.
Registro
de pesquisas que alcança dos primórdios da imprensa e das artes
gráficas no Brasil aos avanços alavancados pelas nos técnicas da
fotografia, nas décadas de 1880 e 1890, no livro Marçal enumera
eventos e periódicos para destacar pioneiros esquecidos,
reconhecendo o mérito de profissionais que fizeram nossos primeiros
jornais e revistas ilustradas. Entre tantos pioneiros,
alguns poucos surgem como exceção pelo reconhecimento que tiveram
em seu tempo e no século seguinte.
Uma
destas poucas exceções é Marc Ferrez, nome fundamental da
fotografia, que obteve as mais importantes condecorações pela
excelência de seu trabalho, no Brasil e em outros países,
especialmente nos EUA e na França, onde suas fotos foram exibidas
com destaque na Exposição Universal de 1900, em Paris. Ferrez
fotografou famosos e anônimos, o trabalho escravo, os primeiros
contatos com povos indígenas, festas religiosas, acontecimentos
políticos e diversas paisagens, nas cidades e nos confins do Brasil, em ângulos e perspectivas que
depois dele ganharam a condição de cenários de cartões postais.
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As
imagens, registradas em daguerreótipos e outras técnicas
fotográficas por pioneiros como Marc Ferrez, eram posteriormente
retocadas e redesenhadas por ilustradores para publicação nos
principais jornais e revistas. Para o leitor significava um
novo mundo aquela possibilidade, até então inédita, de visualizar
as imagens impressas e relacionadas aos fatos narrados – ainda que,
na realidade brasileira, somente a partir do começo do século 20 as
técnicas de impressão, com o uso do clichê como matriz,
garantiriam uma impressão de melhor qualidade e em cores.
Diante
das lacunas intermináveis de nossa história cultural – e considerando o novo
perigo virtual que representa, em sites e blogs, uma impressionante
profusão repetida de plágios para informações equivocadas e atribuições
errôneas – o autor permite, através deste “História da
Fotorreportagem no Brasil”, o acesso e livre trânsito a lições
preciosas e trajetórias contextualizadas para professores, estudantes,
pesquisadores e profissionais de diversas áreas, considerando o
complexo e ainda nebuloso universo que as possibilidades da
fotografia e da imprensa ilustrada vêm inaugurar em território
brasileiro, a partir de meados de 1800.
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Cenas
do Brasil Antigo: Augusto Riedel
registrou, em 1865, a reunião
quinzenal dos
escravos e funcionários nas minas de ouro
em Morro
Velho, região de Nova Lima,
Minas Gerais (no alto). Acima,
fotografia
de Marc Ferrez registra escravos em uma
fazenda de café
na Serra da Mantiqueira,
Minas Gerais, em 1885; e a sessão de votação
da Lei Áurea, em maio de 1888, que
extinguiu a escravidão no Brasil
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