No
capítulo final do célebre “Mitologias”, livro publicado em 1957,
o francês Roland Barthes alerta para o fato de que não mantemos com
os mitos relações de verdade, mas de utilização. “Existem
objetos míticos que são postos de lado, entregues ao sono, por uns
tempos; são apenas vagos esquemas míticos, cuja carga política
perece quase indiferente. Trata-se unicamente de uma oportunidade de
situação, e não de uma diferença de estrutura” – destaca
Barthes, antes de concluir: “O mito, como se sabe, é um valor:
basta modificar o que o rodeia, o sistema geral (e precário) no qual
se insere, para poder determinar com exatidão o seu alcance”.
Barthes
apresenta, como exemplo para suas reflexões, as ocorrências e
significados dos mitos que surgiam na imprensa e na cultura de massa
da França na década de 1950, mas suas reflexões também cabem
perfeitamente para perceber a grandeza e o alcance de um mito
atualíssimo como o líder cubano Fidel Castro, que morreu hoje, aos
90 anos. Dentro e fora de Cuba, Fidel há décadas já havia passado
à História na condição de mito, alcançando a primeira grandeza,
com todas as definições e características que tanto Barthes como
outros grandes pensadores do século 20 apontam para o que seja
“mitológico” – em suas questões e conjunções de
representação coletiva elevada à categoria de metáfora universal.
Morto
em 1980, Barthes por certo acompanhou o desfecho lendário da
Revolução Cubana de 1959 e os capítulos dramáticos da Ilha de
Fidel nos anos e décadas seguintes, as aproximações com a
extinta União Soviética, a rejeição com equivalência e peso de
declaração de guerra aos Estados Unidos – mas
não chegou a visitar Cuba nem a conhecer pessoalmente El Comandante,
como fizeram muitos importantes escritores e intelectuais da esquerda
que foram seus contemporâneos e conterrâneos. A lista dos
admiradores e convivas de Fidel entre os grandes da “intelligentsia”
é extensa, incluindo, entre muitos outros, Jean-Paul Sartre e Simone de
Beauvoir, Marguerite Duras, Henri Cartier-Bresson, Arthur Miller, Noam Chomsky, Ernest
Hemingway, Italo Calvino, Bernard Kouchner, Régis Debray, Jorge Semprun, François Maspero, Pablo Neruda, Julio Cortázar, Gabriel García Márquez,
Eduardo Galeano, Octavio Paz, Carlos Fuentes, Gabriela Mistral, Violeta Parra, Fernando Birri, José Saramago, Jorge Amado, Darcy Ribeiro, Celso Furtado, Chico Buarque...
Herói mítico
“Nenhum
minuto da história é igual a outro; nenhuma ideia ou acontecimento
humano pode ser julgado fora de sua própria época” – escreveu o
próprio Fidel em 2004, em carta endereçada a outro líder
revolucionário da América Latina, o venezuelano Hugo Chávez
(1954-2013), reproduzida em “Fidel para Principiantes”, livro dos
argentinos Néstor Kohan e Nahuel Skerma publicado em 2006 pela Era
Naciente, editora de Buenos Aires. Herói mítico de sua própria
época, desde o final da década de 1950 Fidel passou a representar a
expressão máxima das rebeliões anti-imperialistas e socialistas do
Terceiro Mundo – na América Latina, na África, na Ásia. Não é
pouco.
No
comando de sua ilha, “tão longe de Deus e tão perto dos Estados
Unidos” – como diz a frase lendária e irônica atribuída a
outra personalidade polêmica latino-americana, Porfírio Díaz,
presidente do México no final do século 19 – Fidel sobreviveria a
nada menos que 11 presidentes norte-americanos e a mais de 600
tentativas de assassinato, segundo informam seus biógrafos. El
Comandante resistiu e continuou enfrentando por décadas o Grande
Império, cujos dirigentes não conseguiram derrubá-lo, nem
eliminá-lo, nem modificar os rumos da Revolução Cubana, até que
em dezembro de 2014, com Barack Obama na Casa Branca, tiveram que
admitir o fracasso e a derrota diplomática para, enfim, iniciar um
processo de normalização das relações com o sistema político
cubano.
“Na
exata medida de nossa alienação, não conseguimos ultrapassar uma
apreensão instável do real: vagamos incessantemente entre o objeto
e a sua desmistificação, incapazes de lhe conferir uma totalidade”
– conclui Barthes em “Mitologias”. Novamente, o raciocínio
serve como uma luva para o caso Fidel Castro, porque avaliar a figura
mítica de Fidel não é tarefa fácil. Seu lugar é o do líder
revolucionário que dividiu com outra figura mítica, Che Guevara
(1928-1967), o enfrentamento contra o regime brutal e corrupto
instalado em Cuba pelo ditador sanguinário Fulgêncio Batista,
subserviente aos EUA, mas seu apoio a muitas guerrilhas do Terceiro
Mundo e sua aliança posterior com Moscou também fizeram dele uma
referência libertária e personagem-chave da Guerra Fria em escala
planetária.
Ação internacional
Para seus detratores, Fidel, em sua necessidade
estratégica de fazer vingar a Revolução Cubana, atropelou direitos
humanos e liberdades individuais, principalmente de opositores
associados aos governos dos EUA e saudosos das práticas do antigo
regime – ao que a imensa maioria da população da ilha responde
com a salvaguarda dos avanços sociais, com a reforma agrária, com
os sistemas de educação e saúde pública reconhecidos como
exemplares no mundo inteiro, com a inexistência de analfabetismo e
de desnutrição infantil e com a expectativa de vida que alcança 79
anos, muito além de qualquer país das vizinhanças.
Aos
detratores de Fidel, muitos deles exilados e entrincheirados em
Miami, a intelectualidade de Cuba vem repetindo o questionamento:
como seria possível uma democracia formal com embargo comercial,
econômico e financeiro? Durante décadas, Fidel resistiu bravamente
e a revolução vingou em Cuba – e sua influência avançou muito além das fronteiras da
ilha: ano após ano a reputação internacional do mito Fidel Castro foi
construindo uma política externa de apoio a outras lutas no Terceiro
Mundo, incluindo campanhas de alfabetização e de saúde pública,
com destaque para a reputação humanitária da medicina e dos
médicos cubanos – no caso brasileiro e também em vários outros
países.
No passado recente, o mito Fidel Castro paira sobre casos e
números que impressionam: atualmente, mais de 51 mil profissionais
de saúde de Cuba trabalham em 66 países do mundo, tanto como
voluntários como em missões remuneradas. Depois do maior acidente nuclear da História, em Chernobyl, em 1986, a medicina cubana teve destaque no tratamento a mais de 25 mil vítimas da radiação, entre adultos e crianças, que são recebidas em Cuba e atendidas no centro de atenção especial instalado no território cubano em Tarara desde 1990, tornando-se um complexo médico de referência internacional. Em 2010, o governo cubano
enviou 1.200 médicos para combater a epidemia de cólera no Haiti
após um terremoto, quando todas as missões estrangeiras de
apoio à saúde haviam partido. Também recentemente, quando o pânico causado pelo Ebola assolava a África Ocidental, Cuba liderou os
esforços de ajuda humanitária, enquanto missões oficiais da
Europa e dos EUA mantinham distância.
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Além da ação surpreendente contra a epidemia de
Ebola, os povos de países da América Latina, da África e da Ásia também devem a Fidel esforços de guerra contra ditaduras, pela soberania nacional e pela libertação das antigas colônias em processos de independência
contra países europeus e contra os regimes de Apartheid. Os
registros oficiais mais conhecidos destacam, entre outros casos, ações de Cuba para impulsionar movimentos de esquerda em países latino-americanos, em apoio a brasileiros, argentinos, venezuelanos, bolivianos, colombianos, uruguaios, paraguaios, nicaraguenses, salvadorenhos, chilenos.
Há, também, o apoio cubano à Argélia, na guerra contra o colonialismo francês, em 1961, e em 1963, na guerra contra o Marrocos; em 1965, quando Che Guevara e guerrilheiros cubanos passaram um ano no Congo, em Angola e em Guiné-Bissau; a participação direta de Fidel nos conflitos e nos acordos que levaram ao fim da Guerra do Vietnã, em 1973; o envio da força expedicionária de Cuba, através do Atlântico, em 1975, para ajudar a salvar Angola, na época recém independente, de uma invasão sul-africana; e o apoio à libertação de Nelson Mandela e sua escalada de resistência rumo à presidência e à pacificação na África do Sul.
Com o Brasil os laços diplomáticos de Cuba seriam retomados em 1985 e sinalizaram a retomada da Democracia: a primeira ação internacional da ditadura militar que tomou o poder em 1964 havia sido o rompimento das relações oficiais entre o governo brasileiro e o governo cubano. O receio de que o Brasil seguisse o exemplo da Revolução Cubana e se alinhasse à União Soviética foi um dos pretextos para o apoio decisivo do governo norte-americano ao golpe de Estado que levou à deposição do presidente João Goulart e implantou a ditadura que duraria décadas.
Depois da retomada oficial das relações diplomáticas, uma missão oficial do Brasil visitou Cuba em 1987 e, em 1989, o presidente Fidel Castro visitou o Brasil e teve participação importante, ao lado do futuro presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em um encontro de lideranças de esquerda da América Latina que aconteceu em São Paulo. Depois da eleição de Lula para a Presidência da República, as relações entre Brasil e Cuba ficaram mais próximas com acordos de cooperação em diferentes áreas. Lula realizou visitas oficiais a Cuba em 2003, em 2008 e em 2010. Em 2014, a presidenta Dilma Rousseff implantou um programa importante na área da saúde: o Mais Médicos, com participação ativa dos médicos cubanos no atendimento à população de baixa renda e também às comunidades mais afastadas dos grandes centros urbanos.
Há, também, o apoio cubano à Argélia, na guerra contra o colonialismo francês, em 1961, e em 1963, na guerra contra o Marrocos; em 1965, quando Che Guevara e guerrilheiros cubanos passaram um ano no Congo, em Angola e em Guiné-Bissau; a participação direta de Fidel nos conflitos e nos acordos que levaram ao fim da Guerra do Vietnã, em 1973; o envio da força expedicionária de Cuba, através do Atlântico, em 1975, para ajudar a salvar Angola, na época recém independente, de uma invasão sul-africana; e o apoio à libertação de Nelson Mandela e sua escalada de resistência rumo à presidência e à pacificação na África do Sul.
Com o Brasil os laços diplomáticos de Cuba seriam retomados em 1985 e sinalizaram a retomada da Democracia: a primeira ação internacional da ditadura militar que tomou o poder em 1964 havia sido o rompimento das relações oficiais entre o governo brasileiro e o governo cubano. O receio de que o Brasil seguisse o exemplo da Revolução Cubana e se alinhasse à União Soviética foi um dos pretextos para o apoio decisivo do governo norte-americano ao golpe de Estado que levou à deposição do presidente João Goulart e implantou a ditadura que duraria décadas.
Depois da retomada oficial das relações diplomáticas, uma missão oficial do Brasil visitou Cuba em 1987 e, em 1989, o presidente Fidel Castro visitou o Brasil e teve participação importante, ao lado do futuro presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em um encontro de lideranças de esquerda da América Latina que aconteceu em São Paulo. Depois da eleição de Lula para a Presidência da República, as relações entre Brasil e Cuba ficaram mais próximas com acordos de cooperação em diferentes áreas. Lula realizou visitas oficiais a Cuba em 2003, em 2008 e em 2010. Em 2014, a presidenta Dilma Rousseff implantou um programa importante na área da saúde: o Mais Médicos, com participação ativa dos médicos cubanos no atendimento à população de baixa renda e também às comunidades mais afastadas dos grandes centros urbanos.
Um mito e suas variações
Com o desfecho de sua trajetória mítica, as glórias e as polêmicas sobre Fidel proliferam. Herói revolucionário que enfrentou os EUA? Ditador que
em nome da revolução ignorou os direitos humanos? Estrategista que
treinou e armou guerrilheiros em lutas pela liberdade
política em vários países de vários continentes? Tudo isso junto e misturado?
Provavelmente sim: tudo isso e mais. Um mito é a soma de suas
variações – explicaria Roland Barthes, nas reflexões reunidas em
“Mitologias”, ressaltando que todas as possíveis variações são
expressão da verdade última do mito.
“A História me absolverá” – declarou certa vez o
próprio Fidel, na época um jovem revolucionário de 26 anos, preso
depois de liderar em julho de 1953 a invasão ao quartel militar de Moncada, em
Santiago de Cuba, uma ação de resistência contra o golpe de Estado
em que Fulgêncio Batista tomou o poder e instalou uma ditadura
sangrenta. A invasão terminaria de forma trágica, com a morte da
maioria dos manifestantes e com a prisão do líder Fidel. A história, porém, nunca tem fim: é um constante vir a ser, como destaca o cientista político Moniz Bandeira em "De Martí a Fidel – A Revolução Cubana e a América Latina", livro de referência em que analisa a evolução do regime revolucionário de Cuba e as conquistas sociais desde os antecedentes da Revolução de 1959.
Depois de passar 76 dias preso em um cela solitária,
Fidel, recém-formado em Direito, apresentou-se em 1953 para fazer sua
própria defesa no julgamento. As palavras com que encerrou seu
discurso de defesa no tribunal têm um caráter premonitório, quase de profecia
– antecipando uma trajetória que estava apenas no início: “Sei
que a prisão será dura como nunca foi para ninguém, cheia de
ameaças, de enfurecimento ruim e covarde, mas não a temo, como não
temo a fúria do tirano miserável que arrancou a vida de 70 dos meus
irmãos. Condene-me, não importa, a História me absolverá.”
por José Antônio Orlando.
Como
citar:
ORLANDO,
José Antônio. Mitologias de Fidel. In: Blog
Semióticas,
26 de novembro de 2016. Disponível no link
http://semioticas1.blogspot.com/2016/11/mitologias-de-fidel.html
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