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9 de agosto de 2018

Retratos da União Soviética













Alguns dos principais teóricos da imagem têm em comum a máxima de que toda grande fotografia representa um momento libertado do tempo –– uma definição que tem menos de surrealismo e muito mais de realismo, como se poderia supor à primeira vista. Se pudéssemos ver em detalhes o que aconteceu antes e depois daquela cena registrada, a realidade da imagem já seria outra, por certo, dissolvida por sua vez em outros acontecimentos passageiros e perdidos para sempre em ondas sucessivas ou simultâneas de movimentos, de imagens, de ruídos. Em vez disso, o fotógrafo conseguiu preservar aquele único instante, aquele enquadramento que nunca mais vai se repetir no tempo e no espaço –– o que pode elevar a imagem fotografada do mais simples ao mais precioso e sublime, ou mesmo conferir a ela um poder quase de devoção religiosa diante do que nunca mais irá se repetir existencialmente.

Não é só que o tempo congelou, mas toda aquela complexidade que, ao interromper seu fluxo, a câmera revela e preserva: um brilho estático, quase sobrenatural, um momento parado na quietude, um silêncio, uma reverência na qual derramamos nossas crenças e nossas interpretações motivadas por questões pessoais, sentimentais ou estéticas, documentais, ideológicas. Quando estamos frente a frente com o trabalho realizado por um grande fotógrafo, esta percepção de um momento libertado do tempo é quase sempre permanente, muitas vezes inevitável, como demonstram as imagens reunidas em duas exposições itinerantes que estão na agenda de Belo Horizonte e outras capitais brasileiras, ambas apresentando imagens do século passado na antiga União Soviética, ou URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas –– CCCP, na sigla em russo), que teve sua vigência de 1922, no período posterior à Revolução Russa de 1917, até a dissolução oficial em 1991, quando 12 das repúblicas até então associadas tornaram-se independentes da Rússia.






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Retratos da União Soviética: no alto e
acima, fotografias da Rússia na exposição
O último império, de Serguei Maksimishin.
Na primeira, trabalhadores no Monastério
Aleksandro-Svirski, na região de São Petersburgo,
carregam uma moldura com pintura sobre a cena
bíblica da crucificação de Cristo para a montagem
de uma exposição em 2002; na segunda
fotografia, uma vista da praça central na cidade
de Krasnokamensk, região de Zabaikalski,
em 2006; na terceira, uma ovelha é arrastada
para o sacrifício na celebração muçulmana
do Eid Al-Adha em São Petersburgo, 2004.

Abaixo, duas fotografias de Viktor Akhlomov,
apresentadas na exposição A União Soviética
através da câmera: na primeira, jovens sobre
uma estátua de Stalin derrubada em um
parque de Moscou, em 1991; na segunda,
uma vista sobre a Kalinin Avenue, em
Moscou, em fotografia de 1977















As fotografias mostram cenas mais poéticas que prosaicas e por vezes enigmáticas nas exposições “A União Soviética através da câmera”, que selecionou um total de 120 imagens em preto e branco de seis veteranos da fotografia, cinco da Rússia e um da Lituânia, e “O último império”, com 65 instantâneos mais contemporâneos e em cores de Serguei Maksimishin, registrados a partir da década de 1990. Os seis fotógrafos da primeira exposição, que retratam o período conhecido como “degelo soviético”, de 1956 a 1991, sob curadoria de Luiz Gustavo Carvalho e Maria Vragova, têm em comum uma visão humanista e otimista sobre a vida cotidiana: são eles Vladimir Lagrange, Leonid Lazarev, Vladimir Bogdanov, Yuri Krivonossov, Victor Akhlomov e Antanas Sutkus. Em contraste com os seis mestres veteranos da primeira exposição, Maksimishin tem registros mais jornalísticos, mas a composição elaborada de cores e enquadramentos imprevistos retiram suas imagens do lugar comum mais usual que, com frequência, encontramos em publicações de jornais e revistas. 



Imagens do “país fantasma”



A curadoria da exposição “A União Soviética através da câmera”, no informe distribuído à imprensa, usa uma expressão incomum para se referir ao antigo Estado Soviético: “país fantasma”. Incomum mas não inadequado, já que a dissolução da União Soviética em 1991 criou, de fato, uma fantasmagoria: o estado com a maior abrangência territorial e geopolítica do século 20, não mais existente, ficou no passado e deixou margens para que as fronteiros entre o real e o abstrato permaneçam apenas como registros da memória que as fotografias, e a História, presentificam. “Através do olhar de fotógrafos diferentes, a exposição propõe uma reflexão sobre a vida cotidiana deste ‘pais fantasma’, do Degelo de Khrushchov à Perestroika de Gorbatchov, assim como sobre o papel singular exercido pela fotografia na sociedade soviética pós-stalinista”, destacam os curadores. 






Retratos da União Soviética: acima e abaixo,
três fotografias de Vladimir Lagrange na
exposição A União Soviética através da câmera.

Acima, Mãe, fotografia de 1966; abaixo,
Jovens bailarinas, de 1963, e os estudantes
reunidos em 1962 em Comemoração na
Praça Vermelha, em Moscou












Diante da diversidade de autores e de obras que as duas exposições reúnem, é importante destacar a herança construtivista que todos eles possuem, com ressonância em nomes que marcaram época e permanecem como referência incontornável como Serguei Eisenstein (1898-1948), Dziga Vertov (1896-1954), Alexandr Rodchenko (1891-1956) e outros grandes mestres das artes em geral e do cinema e da fotografia em particular –– expoentes das vanguardas no período posterior à Revolução de 1917 e que exerceram influência central, muito além de suas fronteiras geográficas ou políticas, nos principais movimentos que estão na origem do que chamamos de Arte Moderna e nas expressões vigentes da abrangência de áreas como a arquitetura e o design industrial no último século.

Ao contrário do culto às autoridades e aos desfiles cívicos para reverência à pátria dos tempos de Josef Stalin, no período de 1937-1953, o que os retratos selecionados da antiga União Soviética colocam em cena é a vida social no cotidiano de pessoas comuns por trás do que, durante décadas, o mundo do Ocidente conhecia como “Cortina de Ferro”: trabalhadores, homens e mulheres em cenários indistintos, crianças em salas de aula, pais brincando com os filhos, adolescentes em momentos de lazer, o movimento urbano de ruas e praças. O intervalo de tempo que a exposição acompanha, de 1956 a 1991, tem quase a mesma extensão da chamada “Guerra Fria”, deflagrada no pós-guerra, no final da década de 1940, quando Estados Unidos estabelecem a “Doutrina Truman” como tentativa de travar a expansão soviética e intensificam o conflito mundial pela influência ideológica –– mas o tema da “Guerra Fria” parece ter sido sistematicamente excluído das imagens selecionadas.









Retratos da União Soviética: quatro fotografias
de Antanas Sutkus na exposição "A União
Soviética através da câmera". Acima e abaixo,
crianças na Lituânia: Alunas de ginástica,
de 1963, Mão materna, de 1965;
O pequeno Ignalina, de 1964;
e a destituição do posto da estátua de Lênin
de uma praça em Moscou, fotografia de
1991 nomeada pelo autor como
Adeus aos camaradas do partido











Ausências e esquecimentos



Como muitas vezes acontece, contudo, nem sempre o retrato é fiel e completo em relação ao que é retratado. Também estão ausentes da exposição "A União Soviética através da câmera”, entre outras questões e acontecimentos que fizeram a História, imagens ou referências às multidões em mobilizações políticas ou mesmo às grandiosas campanhas militares da expansão da URSS, que formou o país de dimensões continentais, assim como foram sintomaticamente esquecidas nos acervos pesquisados pela curadoria todas as cenas de comoções populares diante das surpreendentes investidas da União Soviética durante a corrida pela conquista do Espaço Sideral.

Há somente uma única menção direta às imagens heroicas e lendárias do período em que os soviéticos tomaram a dianteira frente aos norte-americanos e enviaram para além da atmosfera terrestre as primeiras espaçonaves que no imaginário popular pareciam saídas da imaginação mirabolante de artistas da ficção científica. São ignoradas imagens lendárias do primeiro satélite artificial, o Sputnik 1 (de 1957), do primeiro animal a orbitar o Planeta Terra, a cadela Laika (em 1957), e da primeira nave que fez um pouso na Lua, a sonda Luna E-6M (em 1966). A única referência à corrida espacial está em uma imagem do primeiro homem a viajar pelo espaço – o astronauta Yuri Gagarin, fotografado por Leonid Lazarev em 1961, na Praça Vermelha, em Moscou, com o secretário geral do Partido Comunista, Nikita Khrushchov. As cenas que marcaram época com as reações das multidões, perplexas ou incrédulas, que segundo relatos célebres de muitos historiadores assistiram aos acontecimentos, em projeções em teatros, em televisores instalados em pontos comerciais e em desfiles organizados com toda pompa e circunstância, foram solenemente ignoradas pela curadoria.







Retratos da União Soviética:duas fotografias de
Leonid Lazarev na exposição "A União Soviética
através da câmera". Acima, o astronauta Yuri Gagarin
fotografado 
em 1961, na Praça Vermelha, em Moscou,

com o secretário do Partido Comunista, Nikita Khrushchov.
Abaixo, Lembranças da infância, fotografia de 1957









Vladimir Lagrange, talvez o mais conhecido dos seis fotógrafos reunidos na exposição, por conta da comercialização desde 1963 de seu trabalho como fotojornalista por publicações alemãs como a revista “Freie Welt”, tem um pequeno mas revelador depoimento sobre a vida cotidiana na “Cortina de Ferro” da URSS exibido ao lado de uma de suas fotografias. “Havia uma vida pessoal: pais, casa, trabalho, amor, filhos, amigos”, relata Lagrange. “E a vida do país: slogans, reuniões, obrigações, condecorações, planos do partido e do povo. Não ficávamos surpresos, pois éramos habituados a viver assim. Não conhecíamos outra vida. Pensavam por nós, nos privavam de qualquer autonomia, tudo era familiar, cada um fazia o seu trabalho. E sempre recordo de algumas palavras que faziam parte de nossa vida cotidiana: Stalin, queda de preços (o que todos esperávamos), querosene, abrigo antiaéreo, jornal Pravda, lenha, filas e assim por diante”. 



Pessoas comuns e mudanças de hábitos



Os seis fotógrafos reunidos na mostra “A União Soviética através da câmera” pertencem à mesma geração, nascidos após a Revolução de 1917, nas décadas de 1920 e 1930, e todos conquistaram prêmios importantes dentro e fora das fronteiras da Rússia. O mais velho, Yuri Krivonossov, que nasceu em Moscou, em 1926, ganhou notoriedade exatamente em 1953, ano próximo do período inicial da mostra, quando publicou na revista soviética “Ogonek” uma fotografia histórica que retrata o funeral de Stalin. Leonid Lazarev e Vladimir Bogdanov nasceram em 1937, Victor Akhlomov e Vladimir Lagrange em 1939. O único dos seis fotógrafos que não nasceu na Rússia foi também o mais censurado: Antanas Sutkus nasceu em 1939 na Lituânia e, assim como todos os outros, permanece na ativa, à exceção de Akhlomov, morto em 2017.
 






Duas imagens de Vladimir Bogdanov selecionadas
para a exposição A União Soviética através da
câmera
: acima, Primeiros passos em Moscou,
fotografia de 1976. Abaixo, Meninos em Moscou,
fotografia do ano de 1989








Considerado o fotógrafo mais importante de seu país, Sutkus mantém, desde 1976, entre outros projetos, uma série contínua e monumental de referência em estudos de antropologia, ainda sem similares em outros países. Intitulada “Pessoas da Lituânia”, o projeto de Sutkus registra cidadãos comuns em uma proposta de estudo comparado para documentar as pessoas e as mudanças de hábitos cotidianos. Ao que se sabe, Antanas Sutkus teve durante décadas seu trabalho sistematicamente arquivado e não autorizado para publicação na URSS, exatamente porque registrava sempre pessoas comuns em cenas prosaicas, ao invés dos trabalhadores e dos cidadãos tidos como modelos idealizados pelo regime soviético. Nos últimos anos as fotografias de Sutkus ganharam retrospectivas no Victoria & Albert Museum da Inglaterra e em outros grandes museus da França, Dinamarca e Estados Unidos. 



O diferencial da cor e o “choque cultural”



Assim como os seis veteranos reunidos na primeira mostra, Serguei Maksimishin retrata cenas da vida cotidiana na exposição “O último império”, também sob curadoria de Luiz Gustavo Carvalho e Maria Vragova. Nascido na Rússia, em 1964, e considerado um dos principais fotógrafos das novas gerações de seu país, Maksimishin estreou na fotografia com publicações em jornais e revistas da Rússia e de outros países no começo da década de 1990, assim que concluiu seus estudos na Universidade de São Petersburgo, simultaneamente aos novos tempos da Perestroika instituída por Mikhail Gorbatchov. Com o diferencial da cor, as 65 fotografias selecionadas também revelam cenas com pessoas comuns em situações aparentemente corriqueiras –– mas destacam a performance de virtuose do fotógrafo em composições, luminosidades e enquadramentos que impressionam à primeira vista.










Retratos da União Soviética: acima, duas
imagens de Yuri Krivonossov, "Meninos
mergulham em frente ao Kremlin",
fotografia de 1960; e "Crianças durante
a celebração dos 40 anos do movimento
Pioneiros", fotografia de 1962.

Abaixo, duas fotografias de Maksimishin:
na primeira, Estudantes em sala de aula
na Faculdade de Teologia do Daguestão,
em 2004; na segunda, soldados crianças
em frente ao monumento da Fonte Amizade
dos Povosem Moscou, em 2005










As diferenças culturais do país continental em relação aos hábitos mais comuns dos países do Ocidente também sobressaem no trabalho de Maksimishin. O fotógrafo esteve no Brasil para a abertura de sua primeira exposição na América Latina, em maio, na Caixa Cultural de São Paulo, e surpreendeu quando declarou, em várias entrevistas, que em sua formação como fotógrafo e no “choque cultural” representado pelas imagens selecionadas de seu país, ele reconhece apenas um professor principal de fotografia: o escritor Nikolai Gogol (1809-1854), autor de grandes clássicos da literatura universal, publicados pela primeira vez exatamente na mesma época em que, por coincidência histórica, também surgiam os primeiros experimentos de registros fotográficos. Entre estes grandes clássicos que Gogol escreveu e publicou estão romances, contos e peças de teatro, tais como “Almas Mortas” (1842), “O Inspetor Geral” (1836), Taras Bulba” (1934), “O Diário de um Louco” (1835), “O Capote” (1942), “O Retrato” (1842) e outras obras-primas.

Se considerarmos que a literatura de Gogol inaugurou o realismo no Império da Rússia do século 19, influenciando todos os escritores que vieram depois dele, inclusive de outras línguas e de outras nacionalidades, como o brasileiro Machado de Assis, com rasgos de absurdo, de humor amargo e de uma percepção onírica da vida em sociedade que seriam retomados como uma das principais influências do surrealismo, a referência de Maksimishin parece bastante adequada –– com os detalhes imprevisíveis de temas e de composições que suas fotografias revelam. Em uma delas, para ser mais preciso na descrição, o que vemos em primeiro plano é uma pessoa vestida como um personagem do programa infantil de TV Teletubbies, produzido pela BBC de Londres no final da década de 1990, em frente a uma pequena igreja isolada em um povoado do interior da Rússia. O Teletubbie, vestido de vermelho, está em destaque no centro da fotografia; à direita, saindo do enquadramento, uma longa fila de mulheres e crianças caminha para a entrada da igreja em ruínas.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Retratos da União Soviética. In: Blog Semióticas, 9 de agosto de 2018. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2018/08/retratos-da-uniao-sovietica.html (acessado em .../.../...). 


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O último império: acima, Igreja no vilarejo,
fotografia de 2003 de Serguei Maksimishin.

Abaixo, o fotógrafo na abertura da exposição
em São Paulo, em maio de 2018, em
fotografia de Valéria Gonçalvez, e uma de
suas fotografias que registra outra cena incomum
no cotidiano da Rússia: dois executivos no
teleférico de acesso para as montanhas
Vorobyovy em Moscou, 2004
 










17 de maio de 2014

Lygia Clark no MoMA






O erótico vivido como profano e a arte vivida como algo sagrado se fundem 
em uma experiência única. Trata-se, na verdade, de misturar a arte e a vida. 

–– Lygia Clark (1920-1988).   




Lygia Clark ganhou destaque internacional com uma grande retrospectiva de sua obra no MoMA – Museum of Modern Art, em Nova York, aberta ao público de 10 de maio a 24 de agosto de 2014. Maior exposição já dedicada a uma brasileira em um museu dos EUA, “Lygia Clark: The Abandonment of Art,1948- 1988” (Lygia Clark: O Abandono da Arte, 1948-1988) aborda, pela primeira vez, todas as fases da carreira da artista que se autointitulava “não artista e que se tornou uma referência, na segunda metade do século 20, na busca por uma arte contemporânea –– ou de algo que pudesse ultrapassar os limites das formas não convencionais de arte.

Com um acervo de 300 obras nunca reunidas em uma única exposição, tomadas de empréstimo, depois de longas negociações, em coleções públicas e privadas no Brasil e outros países, a mostra apresenta desenhos, pinturas, fotografias, filmes, esculturas, objetos, instalações e obras participativas criadas nas quatro décadas de produção artística de Lygia Clark. O acervo, organizado de forma cronológica, foi reunido pela curadoria do MoMA a partir de três grandes temas: Abstração, Neoconcretismo e Abandono da Arte.

Além das obras e instalações permanentes em exposição, completam a programação do MoMA o lançamento de um catálogo com a obra completa de Lygia Clark, que inclui fac-símiles de projetos e escritos inéditos da artista, e uma série de eventos paralelos, entre oficinas, palestras e exibição de documentários com participação de Lygia – entre eles "O Mundo de Lygia Clark" (1983), de Eduardo Clark; "Memória do Corpo" (1973), de Mario Carneiro; e cinco curtas-metragens sobre a obra de Lygia realizados entre 1974 e 1979 por Anna Maria Maiolino. Também está na programação uma mostra de filmes experimentais brasileiros dos anos 1960 e 1970, com produções de Glauber Rocha, Rogério Sganzerla, Neville D'Almeida, Ivan Cardoso, Rubens Gerchman, Hélio Oiticica e Lygia Pape, entre outros (veja link para o catálogo e para uma visita virtual no final deste artigo).







  




No alto, cenas da abertura da exposição
Lygia Clark: The Abandonment of Art,
1948-1988” no MoMA, Museum of Modern Art,
em Nova York. Acima, Lygia Clark sua
Máscara Abismo com tapa-olhos em 1968.

Abaixo, Lygia Clark em uma experiência
de "arte relacional" no Rio de Janeiro,
na década de 1970; e fotografada em
Paris, em 1970, por Alécio de Andrade.
Também abaixo: 1) Lygia na primeira
Exposição Neoconcretaem 1959;
2) Lygia em frente às suas obras
Unidades, de 1958; e 3) a capa do
catálogo com a obra completa editado
pelo MoMA para a exposição











Na edição do catálogo, os organizadores da exposição apresentam de forma linear a trajetória da artista, nascida em 23 de outubro de 1920, em Belo Horizonte, Minas Gerais, e morta aos 67 anos em decorrência de um ataque cardíaco em 25 de abril de 1988, para colocar em relevo sua prática inovadora, desde seus primeiros trabalhos com tendências abstratas, literalmente abertos à participação ativa do espectador. Mais abrangente publicação já lançada sobre a arte de Lygia Clark, o catálogo reúne todo o acervo da exposição e outros trabalhos em belíssima seleção de imagens, com estudo biográfico, textos inéditos da artista e ensaios de Cornelia Butler, Luis Pérez-Oramas, Sergio Bessa, Eleonora Fabião, Briony Fer, Geaninne Gutiérrez Guimarães, André Lepecki, Zeuler Lima, Christine Maciel e Frederico de Oliveira Coelho.




Arte de vanguarda e prática terapêutica



No dossiê para a imprensa, os curadores da mostra e também organizadores do catálogo, Cornelia Butler e Luis Pérez-Oramas, destacam a importância e a atualidade de Lygia Clark e apontam que a exposição pretende valorizar sua produção inovadora e reinscrevê-la em discursos atuais da arte em diversas perspectivas, especialmente nos questionamentos e pesquisas sobre abstração, na participação interativa do público em diversos suportes e nas práticas terapêuticas.





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Ao reunir todas as partes da sua produção tão radical e tão pioneira é possível observar que ela sempre esteve na vanguarda”, aponta Luis Pérez-Oramas, reconhecendo que o pioneirismo de Lygia Clark se dá em várias frentes – seja na participação ativa dos espectadores através da composição permanente de suas obras de arte não convencionais, seja em suas práticas com arte sensorial que a levaram a pesquisas com terapia psicanalítica e a desenvolver uma série impressionante de novas proposições terapêuticas fundamentadas na arte.

A trajetória de Lygia Clark faz dela uma artista atemporal e sem um lugar muito bem definido dentro da História da Arte, tanto que ela autointitulava-se "não artista". Pintora, escultora, escritora, “performer”, terapeuta, professora: em 1972, morando em Paris desde 1968, foi convidada a ministrar um curso sobre comunicação gestual na Sorbonne e, segundo os biógrafos, suas aulas eram verdadeiras experiências coletivas apoiadas na manipulação dos sentidos e das sensações. 













São dessa época algumas das proposições impressionantes da artista, tais como “Arquiteturas biológicas, 1969", “Rede de elástico, 1973", “Baba antropofágica, 1973" e “Relaxação, 1974". Em 1976, há uma alteração marcante na trajetória, quando Lygia Clark retorna para o Rio de Janeiro para se dedicar às práticas terapêuticas com experiências individuais e coletivas em arte sensorial através dos seus "objetos relacionais". 



Abstração geométrica



Na apresentação ao evento no MoMA, Pérez-Oramas destaca no primeiro módulo da exposição, dedicado à abstração, a presença de predecessores fundamentais na obra de Lygia Clark, desde o diálogo de suas obras iniciais com mestres da arte brasileira e com grandes nomes das vanguardas, Duchamp, Calder, incluindo seus contemporâneos na abstração geométrica, Paul Klee, Fernand Léger (de quem foi aluna), Piet Mondrian, Vladimir Tatlin, Max Bill, Georges Vantongerloo.










A arte de Lygia Clark: no alto e acima,
desenhos e pinturas da primeira fase
questionam os limites entre obra e moldura 
a partir do alto, “Sem título” (1954),
Superfície Modulada nº 9” (1957) e
Superfície Modulada n° 4” (1957).

Abaixo, "Estudo" (1957) e "Composição"
(1953), formas geométricas e cores em
diálogo com as célebres experiência de
Mondrian e de Escher. Também abaixo,
painel montado em mosaico de pastilhas
no edifício Mira Mar, na Avenida Atlântica,
Rio de Janeiro, criado em 1951.
Exceto quando indicado, todas as
imagens fazem parte do acervo da
Associação Cultural O Mundo de Lygia Clark”
e foram extraídas do catálogo do MoMA
Lygia Clark: The Abandonment of Art















 


Mas o grande apelo para o público está no segundo e terceiro núcleos da mostra, com os objetos relacionais da artista e suas proposições sensoriais que questionam o suporte material da obra de arte – alguns eram aplicados diretamente no corpo dos participantes, como mostram vídeos da época. Além da exibição dos originais, os visitantes contam com ajuda de monitores treinados para reproduzir com réplicas as experiências sensoriais propostas por Lygia Clark.

Como característica marcante dos desenhos e pinturas iniciais da artista, nas décadas de 1940 e 1950, já estava a complexidade das superfícies e o questionamento sobre o suporte material, com a exploração dos limites entre obra e moldura. “O que eu quero é compor um espaço e não compor dentro dele”, escreveu Lygia Clark certa vez, reconhecendo que a linha construtivista da arte brasileira – no concretismo, no neoconcretismo e seus desdobramentos – a levou a investigações para a arte além dos limites do tradicional e das formas convencionais. Nessa época, surgem os “Bichos”.










A arte de Lygia Clark: amostras das,
metamorfoses permanentes na série
“Bichos” e outras séries de Lygia Clark:
a partir do alto, Relógio de Sol”, de 1960,
e “O Dentro é o Fora”, de 1963.

Abaixo, uma série de "Bichos" na
instalação do MoMA; a escultura
Trepante, Versão 1”, de 1965, 
e “Óculos” (Goggles), de 1968





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Além do limite convencional



Por volta de 1960, Lygia Clark encontrou uma maneira de desdobrar as investigações sobre arquitetura e topologia de sua fase neoconcreta para um repertório tridimensional. O resultado foi a série de esculturas conhecida como “Bichos”, obras interativas que Lygia Clark concebeu para serem inteiramente e infinitamente remoldadas por seus manuseadores.

Em cada um dos “Bichos”, as linhas orgânicas se tornam dobradiças entre painéis, permitindo que a escultura seja transformada de um achatamento esquemático para uma variedade de configurações tridimensionais inesperadas. Algumas destas obras carregam enorme semelhança com seres vivos específicos, como o “Caranguejo” (1960), enquanto outros evocam temas da investigação artística de Lygia, como “Relógio de Sol” (1960). 




 

 

O segundo núcleo inclui, além dos “Bichos”, as séries “O Dentro é o Fora” (1963) e “O Antes é o Depois” (1963), que apresentam tripas de metal entrelaçadas, sem dobradiças. Completam o núcleo obras da série “Trepantes” (1965), estruturas de metal compostas por aço inoxidável retorcido em linhas líricas e formas circulares, e “Caminhando”, que a artista criou em 1963, retorcendo uma tira de papel em 180 graus para colar suas pontas e gerar um Anel de Moebius – uma forma circular que aparenta ter dois lados, mas na verdade tem apenas um, recortado longitudinalmente até o seu limite. 

 

Exílio e abandono da arte



O terceiro núcleo da exposição aborda o período a partir do final da década de 1960, quando ela passou a se dedicar exclusivamente a obras que incluíam a participação ativa do público, que poderia transcender o papel de mero espectador, acabando com a distinção entre artista e plateia – com trabalhos muito polêmicos em sua época, uma vez que Lygia Clark nunca os considerou nem como “performance” nem como “happenings”. 







Lygia Clark no ateliê: acima, em seu
estúdio no Rio de Janeiro, na década de
1950. Abaixo, "Escada", pintura em
óleo sobre tela de 1951.

Também abaixo, Lygia em Paris,
em 1969, trabalhando na instalação
"Arquitetura Biológica II”, em fotografias
de Alécio de Andrade; e amostras das
célebres performances coletivas sob
o comando de Lygia também registradas
em fotografias de Alécio de Andrade:
A casa é o corpo”, apresentada na
Bienal Internacional de Veneza, em 1968;
"Arquiteturas biológicas", em Paris, 1969;
"Rede de Elástico" (Paris, 1973)






 
Pelo contrário: estas investigações de sua última fase terminaram por levá-la a questionar profundamente o status e utilidade de trabalhos convencionais como meios de expressão. Entre 1966 e 1988, um período que coincidiu com uma crise pessoal e uma subsequente longa temporada de exílio na Europa, Lygia retomou de forma radical conceitos e práticas que havia confrontado em trabalhos anteriores. Fez objetos muito simples a partir de coisas como luvas, sacos de plástico, pedras, conchas, água, elásticos e tecidos.

Estes “objetos sensoriais”, segundo Pérez-Oramas, foram criados para tornar possível uma consciência diferente de nossos corpos, nossas capacidades perceptuais e as nossas restrições físicas e mentais. Os “objetos sensoriais” da artista tinham o propósito de serem ativados em contato e coordenação com as nossa s funções corporais e orgânicas.

Ao combinar nossos gestos com esses simples objetos, ela pretendia projetar uma dimensão orgânica sobre os materiais inertes e industriais”, explica Pérez-Oramas. Nessa época, Lygia parou de se definir como artista e passou a se concentrar no desenvolvimento de experiências sensoriais de uso terapêutico.










A casa é o corpo



Além dos três núcleos em exposição no sexto andar do MoMA, o quarto andar é dedicado exclusivamente a uma única instalação: "A casa é o corpo: penetração, ovulação, germinação, expulsão". Criada em 1968 por Lygia Clark para a Bienal de Veneza, a instalação simula em minúcias o aparelho reprodutor feminino e permite ao público uma experiência de imersão corpórea ao percorrer o seu interior.

Obra de fundamental importância para a história da arte brasileira – como destaca Maria Alice Milliet no ensaio biográfico “Lygia Clark: obra-trajeto”, publicado em 1992 pela EDUSP – “A Casa é o Corpo” se constituía de um grande balão plástico situado no centro de uma estrutura formada por dois compartimentos laterais e um labirinto de 8 metros de comprimento – uma obra-ambiente concebida “para ser penetrada pelo visitante como abrigo poético”.















 
Ao entrar (“penetração”) no primeiro dos três compartimentos da instalação, o espectador encontra um quarto escuro de piso macio; depois, segue para a “ovulação”, um espaço repleto de materiais esféricos (balões, bolas de borracha e de isopor); em seguida, entra em uma bolha transparente no formato de uma lágrima (“germinação”) e, ao final do percurso, atravessa uma cortina de fios de “cabelo” para se deparar com um espelho deformado onde vê o próprio reflexo.

Passados quase 50 anos, as imagens de “A casa é o corpo” ajudam a explicar o impacto e o estranhamento que a obra sensorial e as ideias de Lygia Clark provocaram no Brasil e naquela Bienal de Veneza, com sua influência posterior em conceitos como “suporte”, “instalação”, “arte conceitual”, “arte-terapia”. A atual celebração de sua obra pelo MoMA e a recepção unânime e surpreendente de público e crítica a trazem de volta ao futuro.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Lygia Clark no MoMA. In: Blog Semióticas, 17 de maio de 2014. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2014/05/lygia-clark-no-moma.html (acessado em .../.../...).



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A arte de Lygia Clark: no alto,
uma amostra e um coletivo da série
"Bicho" (1963). Acima, "Sem título" (1957).

Abaixo, registro da Vernissage da mostra
de Lygia Clark apresentada no MoMA 



 






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