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14 de abril de 2024

A invasão do Gibi

 




Criada em 1905, a revista em quadrinhos “O Tico-Tico”,
pioneira no Brasil, reinava desde o primeiro número com sucesso absoluto entre crianças e adultos, com seus personagens e aventuras tipicamente brasileiros, criados por artistas nacionais, com poucas exceções de estrangeiros que apareciam como convidados em suas páginas. Sem nenhum rival à altura, “O Tico-Tico” seguia rentável e imbatível até a década de 1930, quando outros jornais e revistas decidiram investir no público infantojuvenil. Foi então que “O Tico-Tico” começou a perder público e as dificuldades financeiras foram se agravando, nos anos e décadas seguintes, com a invasão norte-americana e a conquista do território nacional pelos personagens Disney e as aventuras de heróis e super-heróis da DC Comics e da Marvel.

A batalha foi violenta: em pouco tempo, a maioria dos personagens nacionais deixaria de ter histórias inéditas e passaria a ser apenas lembranças, coisa do passado, ou apenas exceções, como aconteceria com o surgimento isolado de personagens de artistas como Ziraldo ou Maurício de Souza, a partir da década de 1960. Um capítulo importante da invasão dos quadrinhos norte-americanos aconteceria às vésperas da Segunda Guerra Mundial: em abril de 1939, a editora O Globo, um setor das Organizações Globo, grande conglomerado de jornais, revistas e rádios, já naquela época sob o comando de Roberto Marinho (1904-2003), lançou uma revista infantojuvenil semanal chamada “Gibi” que foi um sucesso imediato e a primeira grande concorrente a desbancar a liderança de “O Tico-Tico” (Veja também: Semióticas – Revistinha de vovô).










A invasão do Gibi: no alto da página, o mascote,
personagem símbolo da revista "Gibi", um estereótipo
racista e discriminatório que estava presente em todas
as edições. Acima, um anúncio de vendas da revista
por reembolso postal, expediente que garantia à
Editora O Globo várias reimpressões com milhares de
exemplares; e a apresentação do Spirit, criação de
Will Eisner, um dos personagens de grande
sucesso na trajetória da "Gibi".

Abaixo, O Fantasma na capa e nas páginas
da "Gibi": personagem criado por Lee Falk
(também criador de Mandrake, o mágico) e pelo
desenhista Ray Moore, foi um dos grandes
sucessos entre os leitores da revista.
Também abaixo, a ilustração da última página
da última edição semanal de "Gibi" em 1975












Além de ser uma porta de entrada para a invasão dos heróis e super-heróis dos quadrinhos norte-americanos, a revista lançada pelo Grupo Globo também fazia seu marketing reforçando um preconceito racial: "Gibi”, desde o seu número de estreia, trazia como símbolo, na capa, a referência racista de um personagem em desenho estereotipado retratando um menino negro e pobre. Na época, a palavra “gibi” era uma expressão francamente racista, muito usada como xingamento e como ofensa, para designar “menino negro”, “negrinho ladrão” ou “negro feio e grosseiro”. Mas o preconceito racial foi normalizado em pouco tempo: o sucesso da publicação do Grupo Globo foi tanto que a palavra “gibi” começou a perder seu caráter racista, pejorativo e discriminatório, para ganhar no senso comum um novo significado como revista de histórias em quadrinhos de heróis e super-heróis.



Desembarque no Brasil



A grande variedade de personagens norte-americanos dos quadrinhos, de vários autores e em vários gêneros, começou seu desembarque maciço no Brasil pelas páginas da revista “Gibi”, sem enfrentar nenhuma resistência nem do público nem dos criadores de quadrinhos brasileiros. Entre os invasores estavam Flash Gordon, Charlie Chan, Fantasma, Mandrake, Spirit, Capitão Marvel, Namor, Tocha Humana, Cavaleiro Negro, Agente X-9, Ferdinando, Brucutu, Popeye e muitos outros. Impressa em papel jornal, sempre alternando páginas coloridas, páginas em preto e branco e páginas em duas ou três cores, a revista ganharia vários formatos desde o lançamento. O formato principal, conhecido como série original, circulou entre 1939 e 1954, tendo 1842 edições.









A invasão do Gibi: no alto, a apresentação do herói
Flash Gordon, criação de Alex Raymond, na capa da
revista "Gibi", que também mostrava uma seleção
de outros personagens que estavam na edição.
Acima, o super-herói Capitão Marvel, criado pelo
roteirista Bill Parker e pelo desenhista C.C. Beck,
na capa da edição mensal da revista "Gibi".

Abaixo, edição da "Gibi Mensal" de janeiro de 1946
trazendo na capa a estreia de um novo herói em luta
contra os japoneses, Namor, o Príncipe Submarino,
criado pelo escritor e roteirista Bill Everett; duas capas
da "Gibi" em 1940; e uma amostra de suas páginas
com impressão no padrão de duas cores






                  

         

Em paralelo à série original foram lançadas, também com grande sucesso de vendas, “Gibi Mensal”, que circulou de 1941 a 1963, com 271 números; “Gibi Semanal”, de 1974 a 1975, com 40 edições; e lançamentos especiais, com edições não consecutivas entre 1974 e 1985, além de 12 edições de “Gibi” para colecionadores, lançadas no começo dos anos 1990. Cada tiragem das revistas tinha números altos, que variavam entre 50 mil e 100 mil exemplares, algumas vezes com reimpressões para atender às encomendas de vendas, sendo que o motivo principal das interrupções nas edições de cada formato não foram as quedas de vendas, mas sim os novos lançamentos: novas revistas que foram criadas para trazer exclusivamente apenas personagens específicos.

As revistas em quadrinhos, com a "Gibi" em primeiro plano, ganhavam cada vez mais leitores no Brasil. O sucesso de vendas era tanto que, em 1952, o Grupo Globo fundou uma nova empresa, a Rio Gráfica Editora, para dar conta da impressão das edições da "Gibi", que continuava a publicar suas coletâneas com vários personagens na mesma revista, em edições semanais e mensais, e dos novos lançamentos em quadrinhos, com novas revistas dedicadas cada uma a um só personagem. No começo dos anos 1990, a Rio Gráfica Editora seria modernizada e receberia o nome de Editora Globo. 

“Gibi” foi o maior sucesso durante anos, mas não foi um caso único. Desde o começo da década de 1930 surgiram outras revistas em quadrinhos no Brasil e também páginas inteiras de jornais dedicadas ao formato em tirinhas, acompanhando as novidades editoriais que faziam sucesso no mercado dos Estados Unidos e de outros países. O jornalista e editor russo, naturalizado brasileiro, Adolfo Aizen (1904-1991), foi um dos primeiros a apostar nas publicações exclusivas de quadrinhos de origem norte-americana. Em uma temporada nos Estados Unidos, em 1931, Aizen conheceu a variedade e o sucesso comercial das revistas em quadrinhos e também das páginas de tirinhas nos jornais, além dos suplementos temáticos semanais, dedicados ao público feminino e infantojuvenil, que vinham como cadernos encartados nas edições. De volta ao Brasil, Aizen ofereceu um projeto sobre a novidade para seu chefe nas redações de jornais e revistas, Roberto Marinho, que no primeiro momento descartou a proposta por não acreditar no potencial de vendas.








A invasão do Gibi: no alto, Adolfo Aizen, um dos
pioneiros na publicação de histórias em quadrinhos
importadas dos Estados Unidos. Acima, Aizen
na década de 1950 em um jantar comemorativo
com seu principal concorrente, Roberto Marinho.

Abaixo, capa de uma edição da revista "Gibi"
de 1940 que apresentava pela primeira vez
um personagem chamado O Pato Donald









Guerra dos Gibis


Aizen, então, emplacou seu projeto de quadrinhos junto à concorrência, no jornal carioca A Nação. O projeto de Aizen foi publicado no formato do Suplemento Juvenil, semanal, com sucesso imediato, trazendo personagens na época muito populares nos Estados Unidos e licenciados pela King Features Syndicate, incluindo histórias do Super-Homem, Tarzan, Pinduca, Betty Boop, Os Sobrinhos do Capitão e as primeiras produções dos estúdios de Walt Disney (Veja também: Semióticas– Estratégias do Zé Carioca) . Segundo informa o pesquisador Gonçalo Júnior, no livro “A Guerra dos Gibis: a formação do mercado editorial brasileiro e a censura aos quadrinhos (1933-1964)”, lançado pela Companhia das Letras em 2004, o sucesso foi tanto que, nos dias de publicação do Suplemento Juvenil, as vendas do jornal A Nação triplicavam.

O sucesso do Suplemento Juvenil levaria Aizen a fundar sua própria editora especializada em quadrinhos, registrada como Grande Consórcio de Suplementos Nacionais. As publicações da editora de Aizen se tornando cada vez mais populares foram um alerta para a concorrência, levando outros empresários à criação de projetos similares, também na década de 1930, sempre com conteúdo importado dos Estados Unidos. Entre outros lançamentos que fizeram sucesso neste período estavam a Gazeta Juvenil, encarte tabloide do jornal A Gazeta de São Paulo, e o Mundo Infantil, da Editora Vecchi do Rio de Janeiro. Roberto Marinho também copiou o projeto de seu ex-funcionário Aizen, lançando em 1937 O Globo Juvenil, suplemento semanal que era encartado no jornal O Globo. A recepção favorável do suplemento com histórias em quadrinhos e o aumento considerável nas vendas levou Marinho à criação da revista “Gibi” em 1939.








A invasão do Gibi: no alto, Mandrake, criação de
Lee Falk, na capa do Suplemento Juvenil em
agosto de 1937. Acima, O Pato Donald na capa
da última edição do Suplemento Juvenil em 1945.
Abaixo, Superman na revista da
EBAL





Ao fim da Segunda Guerra, o mercado de jornais e revistas alcançou uma considerável expansão no Brasil, multiplicando os parques gráficos nas décadas seguintes. A concorrência se tornaria mais acirrada e levaria Adolfo Aizen a fundar, em 1945 uma nova editora especializada em revistas infantojuvenis, a Editora Brasil-América Limitada (EBAL), com publicações específicas para cada personagem e cada herói, com grande destaque para o lançamento da primeira revista exclusiva para o primeiro e mais famoso super-herói, o “Superman” (Veja também: Semióticas – Um novo Superman)
. Um novo capítulo da concorrência viria em 1950, com a criação da revista “O Pato Donald”, primeiro lançamento da Editora Abril fundada por Victor Civita.

Nascido em Nova York e descendente de judeus italianos, Victor Civita começou em sociedade com seu irmão, Cesar Civita, que também havia fundado na Argentina uma Editora Abril, na década anterior. Instalando sua editora em São Paulo, Victor Civita se naturalizou brasileiro e, a partir do licenciamento para todos os personagens dos Estúdios Disney,
criou um grande império editorial (Veja também: Semióticas – Páginas de Realidade)
com dezenas de revistas, voltadas para diversos segmentos do público, passando a disputar, em pouco tempo, a liderança de vendas no mercado nacional com as Organizações Globo de Roberto Marinho e com os Diários Associados de Assis Chateaubriand, um conglomerado que controlava a edição de jornais em vários estados do Brasil. Chateaubriand também era o proprietário da revista O Cruzeiro, fenômeno editorial que liderou o mercado brasileiro de revistas de notícias e variedades desde seu lançamento, em 1928, até encerrar as edições no começo da década de 1970. O fim da revista O Cruzeiro foi ocasionado pela falência do império dos Diários Associados, que ficou acéfalo depois da morte de Chateubriand em 1968 (Veja também: Semióticas – O Cruzeiro nos bastidores)









A invasão do Gibi: no alto, a capa da primeira
edição da revista Gibi com a apresentação de
Charlie Chan, o detetive de origem chinesa,
criação de Earl Derr Biggers. Acima, o anúncio
do lançamento da "Gibi" na primeira página do
jornal O Globo em 12 de abril de 1939.
Abaixo: uma capa de "Gibi" em tempos de
guerra, em 5 de janeiro de 1945







Ausência de regulamentação


A hegemonia norte-americana nas histórias e revistas em quadrinhos não se deu apenas por alguma qualidade superior ou pelo estilo deste ou daquele criador, como poderia supor o leitor mais ingênuo: a grande vantagem que as empresas norte-americanas tiveram foi resultado de uma total ausência de regulamentação para sua entrada no Brasil, onde puderam atuar livres de impostos e sem a contrapartida de nenhum investimento, porque seus custos de produção haviam sido cobertos pelo próprio consumo interno em seu país de origem.

Diante do público brasileiro, o que estava em jogo era o controle do mercado, a exploração comercial predatória, motivo pelo qual o produto norte-americano chegava com custos muito baixos, com o objetivo violento de eliminar qualquer resistência e toda a concorrência local, com preços muito mais acessíveis do que o valor real que deveria ser pago ou investido para manter a produção nacional. No universo das histórias em quadrinhos, os artifícios de dominação pelo monopólio da produção econômica e da produção cultural tiveram uma total equivalência.







A invasão do Gibi: acima, a capa do número 2 da
revista "Gibi" em 1939. Abaixo, capa do número 47,
também de 1939, e uma edição especial de 1963
com seleção de histórias de Águia Negra,
Capitão César, O Sombra e Robin Hood
.

Também abaixo, trabalhador na expedição da
revista "Gibi", na sede de O Globo, em 1948,
e uma capa da edição semanal
lançada em 1974









Os quadrinhos e toda a produção cultural estrangeira, conforme destaca Julia Falivene Alves em “A invasão cultural norte-americana” (Editora Moderna, 2012), chegavam e eram amplamente consumidos porque seus preços eram bem mais acessíveis do que aquele que qualquer editor teria de pagar aos similares brasileiros que fossem criados pelos artistas nacionais. Segundo a historiadora, isso naturalmente acontecia (e acontece) porque a indústria norte-americana conta com a mais completa benevolência das autoridades locais, em vários níveis, e com a ausência de regulamentação para tais transações comerciais no Brasil – além de deter, na maioria das vezes, equipamentos e tecnologias mais avançadas, maior disponibilidade de capital e mercado consumidor mais amplo do que os pequenos e independentes produtores nacionais do Brasil e dos países periféricos.

Ao considerar a invasão norte-americana, tanto a que se deu pelas histórias em quadrinhos e por outras mídias, no decorrer do século 20, como os cenários de maior complexidade da internet e das plataformas de redes sociais na atualidade, é de fundamental importância ressaltar os aspectos políticos e ideológicos, sejam eles diretos, explícitos, ou dissimulados e subliminares. Nenhum leitor ou espectador pode ser ingênuo em relação às intenções em jogo, uma vez que os personagens norte-americanos, sem exceção, não apenas os heróis e super-heróis envolvidos em tramas de guerra e dominação imperialista, mas também os nada ingênuos personagens Disney e equivalentes, promovem, de forma permanente, processos de “lavagem cerebral” no público – em estratégias premeditadas que, com o passar do tempo, passaram a ser vistas com naturalidade. Enquanto seus produtores e o país ao qual pertencem obtêm lucros imensos e garantem sua hegemonia no mercado internacional de produtos culturais, os selvagens pacíficos do Terceiro Mundo, em troca de alguma diversão, continuam “pagando o pato”.


por José Antônio Orlando.

Como citar:

ORLANDO, José Antônio. A invasão do Gibi. In: Blog Semióticas, 14 de abril de 2024. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2024/04/a-invasao-do-gibi.html (acessado em .../.../…).

 

 
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11 de outubro de 2021

Um novo Superman

 





Eu vos ensino o super-homem. O homem é algo

que deve ser superado. Que fizestes para superá-lo?

................ Friedrich Nietzsche, “Assim Falou Zaratustra” (1883).


As histórias de super-heróis são uma criação do século 20, mas personagens com poderes extraordinários têm uma longa tradição desde as mitologias da Antiguidade Clássica. No século 20, o primeiro da lista é Superman, criação da década de 1930 de dois estudantes de Cleveland, Ohio (EUA): o norte-americano Jerome Siegel, mais conhecido pelo apelido Jerry Siegel, e seu amigo canadense Joseph “Joe” Shuster. Superman foi criado e recriado diversas vezes pela dupla a partir de 1933, em publicações de pequenas tiragens que investiam no gênero da ficção científica, até estrear para o grande público em 1938, com o lançamento da revista em quadrinhos “Action Comics”. O sucesso foi tão grande que a revista alcançou rapidamente tiragens superiores a 500 mil exemplares e, no ano seguinte, o personagem ganharia uma revista exclusiva com o nome “Superman”.

Desde a estreia, Superman passou por várias transformações, mas mantendo sua identidade secreta disfarçado como Clark Kent, um tímido jornalista, ganhando novos superpoderes e até desenvolvendo a capacidade de voar, em 1941, para apoiar as tropas dos Aliados na luta contra o Eixo de nazistas e fascistas durante a Segunda Guerra Mundial. No pós-guerra começaram suas primeiras versões em filmes curtos para cinema e depois para a TV, aumentando a popularidade e o alcance do personagem alienígena – sim, alienígena, porque ele nasceu no fictício planeta Krypton, mas está sempre em ação para combater vilões e bandidos e salvar a espécie humana e o planeta Terra. A mudança mais recente e mais radical nesta trajetória agora foi lançada pela DC Comics com um novo Superman: Jonathan Kent, filho de Clark Kent e da jornalista Lois Lane, um ativista do meio ambiente que discute política e tem um relacionamento amoroso com um amigo.






Um novo Superman: no alto, Jonathan Kent, o filho
de Clark Kent e Lois Lane, dá um beijo inesperado
em seu amigo jornalista, Jay Nakamura. Acima, a capa
original da primeira edição da revista "Action Comics",
que marca a primeira aparição do Superman, em 1938.

Abaixo, a mais antiga imagem do Superman, em uma
história criada para uma revista de ficção científica
da qual resta apenas uma página, que é a capa.
Também abaixo, uma página de "Superman: Son
of Kal-El"
, lançamento da DC Comics com uma
atualização do super-herói que agora combate
incêndios florestais causados pelas mudanças
climáticas, impede tiroteios em escolas de
ensino médio e protesta contra a deportação
de refugiados em Metrópolis










Como era de se esperar, a mudança, apresentada pela DC Comics com o lançamento de “O Filho de Kal-El” (“Son of Kal-El”), foi recebida com muitos elogios e algumas críticas furiosas. As críticas, como sempre, vêm dos conservadores, dos fundamentalistas que usam a religião como plataforma para interesses políticos e dos fãs saudosistas que se sentem traídos com a atualização do personagem para os novos tempos. Contudo, a salvação do planeta e as questões políticas fazem parte do enredo das histórias do Superman desde sempre, motivo pelo qual as críticas recaem mesmo é na orientação sexual do novo personagem. No site oficial da DC Comics, Tom Taylor e John Timms, roteirista e desenhista da nova série, explicam que é uma questão natural a opção sexual do novo Superman – que desde a estreia é um ativista do meio ambiente que discute questões de política e combate incêndios florestais causados pelas mudanças climáticas, impede tiroteios em escolas do ensino médio e protesta contra a deportação de refugiados em Metrópolis.


Símbolo de esperança e justiça


“A ideia de substituir Clark Kent por outro salvador, outro homem branco, parecia uma oportunidade perdida, porque desde o início pensávamos que o novo Superman merecia enfrentar novos problemas do mundo real”, escreveu Tom Taylor no site oficial da DC Comics. “Eu sempre disse que todo mundo precisa de heróis e todo mundo merece ver a si mesmo em seus heróis. O símbolo do Superman sempre representou esperança, verdade e justiça. Hoje, este símbolo é mais plural porque mais pessoas são representadas pelo super-herói mais poderoso dos quadrinhos”, concluiu. Assim como seu pai Clark Kent se envolveu com Lois Lane, repórter do seu local de trabalho, a redação do jornal “Planeta Diário”, o jovem Jonathan, chamado de Jon Kent, herdou os superpoderes paternos e também se apaixona por um repórter, Jay Nakamura. O primeiro beijo entre o novo Superman e seu melhor amigo não demorou a acontecer.






Um novo Superman: acima, página de
"Superman: Son of Kal-El" em que
Jonathan Kent leva o amigo Jay para
conhecer sua casa e seus pais, Lois Lane
e Clark Kent. Abaixo, os quadrinhos com
as declarações amorosas entre os amigos
 













Superman: Filho de Kal-El” provocou a maior repercussão sobre o personagem em muitos anos. Nem mesmo os filmes recentes do Homem de Aço tiveram tantos comentários, postagens e engajamentos de amor ou de ódio nas redes sociais. Mas não foi sua primeira renovação. Desde sua criação, Superman vive de ressurgimentos e de períodos de ostracismo na cultura das mídias, apesar de nunca ter perdido seu papel de protagonista da cultura pop. Entre as superproduções que adaptaram o personagem das histórias em quadrinhos estão a primeira série de TV, “As aventuras de Superman”, precedida pelo filme de sucesso “Superman and the Mole Man” (no Brasil, “Super-Homem contra o Homem Topeira”). A série, com George Reeves no papel-título, estreou em 1952 e foi produzida até 1958. Foi a primeira versão, mas não foi a mais marcante. A versão mais celebrada, e por muito tempo considerada como versão definitiva do Superman estrearia nos cinemas em 1978: "Superman – O filme”, com direção de Richard Donner e com Christopher Reeve no papel principal.

O Superman com Christopher Reeve foi um raro sucesso de público e crítica, conquistando Oscars (melhor montagem, melhor edição, melhor mixagem de som) e reunindo um elenco de estrelas: Marlon Brando como Jor-El, Gene Hackman como Lex Luthor e Margot Kidder como Lois Lane, entre outros. O sucesso do filme renderia mais três sequências nos anos seguintes, mas nenhuma delas alcançou os resultados do primeiro filme. O personagem retornaria em seguida com duas novas séries de TV: em 1993, estreava “Lois & Clark, As novas aventuras do Superman”, com Teri Hatcher e Dean Cain; e em 2001, “Smallville”, que teve 10 temporadas até 2011, com Tom Welling no papel do jovem Superman em suas aventuras na cidade do interior do Kansas. Em 2006 haveria um novo filme, “Superman Returns”, com direção de Brian Singer, Brandon Rouch como Superman, Kate Bosworth como Lois Lane e Kevin Spacey como Lex Luthor.









Um novo Superman: acima, Christopher Reeve, astro da
performance de 1978 no cinema, sucesso de público e de
crítica; e Henry Cavill, a nova identidade visual do herói.

Abaixo, James Cain e Teri Hatcher na série de TV
"Lois & Clark"; e o casal Tyler Hoechlin e Elizabeth Tulloch
na nova série, "Superman & Lois", estreia de 2021











O capítulo seguinte de Superman no cinema foi com Henry Cavill como protagonista, com produção da Warner para o universo DC Comics. O primeiro filme foi “Homem de Aço”, em 2013, com direção de Zack Snyder. Depois vieram “Batman e Superman, A origem da Justiça”, em 2016, e “Liga da Justiça”, em 2017, ambos com Zack Snyder na direção. Superman teve ainda pequenas aparições em outros filmes de super-heróis da DC Comics, antes de ganhar uma nova série de TV em 2021, com produção da Warner e prevista para durar três temporadas, cada uma com 15 episódios: “Superman & Lois”, com Tyler Hoechlin e Elizabeth Tulloch. Na série, Clark Kent e Lois Lane deixam Metrópolis para tentar viver como pessoas comuns em Smalville com os dois filhos adolescentes, os gêmeos Jordan e Jonathan (Alexander Garfin e Jordan Elsass). Mas o clima de paz e tranquilidade em Smallville dura pouco e Superman novamente é convocado para salvar o planeta.


Mudanças de enredo


Superman não é o único personagem dos quadrinhos tradicionais a passar por mudanças de enredo e de sexualidade. Também pela DC Comics, empresa que desde a década de 1930 vem se mantendo como grande conglomerado de editoras e de direitos autorais de diversos personagens (a sigla “DC” é uma referência à primeira editora de Superman, a “Detective Comics”), estão acontecendo transformações no universo de Batman, que já havia sido recriado nos anos 1980 no “Cavaleiro das Trevas” de Frank Miller. Talvez o segundo super-herói mais popular entre todos, rivalizando com Superman, o primeiro, desde que foi criado em 1939 por Bill Finger e Bob Kane para a revista “Detective Comics”, Batman tem a diferença de não contar com superpoderes, mas carrega desde a origem a atitude de ter sempre com ele um ajudante adolescente, o que já gerou muita controvérsia.

Batman também tem uma trajetória de muitas mudanças. A mais recente, também tentando se aproximar da diversidade das minorias e das questões sociais mais urgentes, traz o novo ajudante de Batman, Tim Drake, também declarando sentimentos românticos e eróticos por um amigo. Tim Drake é o terceiro Robin com maior importância depois do primeiro, Dick Grayson, que ficou mais de quatro décadas ao lado de Batman, desde que surgiu em 1940. Antes de Tim Drake, houve outros adolescentes atuando como Robin, o Garoto Prodígio, mas com pouca importância e sempre substituídos em diversas ocasiões. O principal, depois de Dick Grayson, se chamava Jason Todd, mas assim como Grayson ele também ficou adulto e abandonou o milionário Bruce Wayne (a identidade secreta de Batman) para seguir trajetória como herói independente: Dick Grayson assumiu a identidade de Asa Noturna; Jason Todd ressurgiu como Capuz Vermelho.







Um novo Superman: acima, uma redefinição
do universo da DC Comics com o lançamento
de "Crise Final", reunindo na mesma história
Superman e Batman. Abaixo, o cartaz do
filme "Batman v Superman", lançado em 2016,
com direção de Zack Snyder e Ben Affleck no
papel de Batman e Henry Cavill como Superman.
Também abaixo, a dupla Burt Ward e Adam West
na série de TV "Batman e Robin", lançada em 1966

 









Popularidade contra preconceitos


Nesses novos tempos, há também novas mudanças em curso para atualização dos temas dos enredos e da sexualidade de outros personagens do universo de super-heróis, tanto na DC Comics como em sua concorrente Marvel Comics, que detém os direitos sobre outra imensa galeria que inclui Homem-Aranha, Capitão América, Homem de Ferro, Hulk, Thor, Viúva Negra e X-Men, entre muitos outros. No final das contas, as novidades sempre trazem maior popularidade para todos os envolvidos, ampliam as vendas em diversas mídias e, também, ajudam a quebrar preconceitos. No universo dos super-heróis, estes novos tempos chegam com décadas de atraso, desde o jogo duro da censura e da autocensura que surgiu na década de 1950, ao mesmo tempo em que começou a censura política criada pelo Macarthismo – os tribunais instalados nos EUA para a repressão política aos comunistas. Na onda do Macarthismo, os temas políticos e a sexualidade dos super-heróis também passaram a ser omitidos ou ostensivamente proibidos.

Ainda na década de 1950, houve o caso célebre e muito influente do livro “Seduction of the Innocent”, lançado em 1954 pelo psiquiatra Fredric Wertham, que levantou acusações e preocupações moralistas sobre sexo e violência nas histórias em quadrinhos, especialmente com os super-heróis, sugerindo uma ligação direta de causa e consequência entre a leitura de quadrinhos e a delinquência juvenil. Um dos capítulos do livro de Wertham descrevia a saga de Batman e Robin como “um sonho de desejo sexual de dois homossexais vivendo juntos e compartilhando experiências”. Em outro capítulo, a força e a independência da Mulher Maravilha a caracterizavam como lésbica. A imensa repercussão do livro levou à criação de audiências judiciais e comissões parlamentares de investigação pelo Congresso dos EUA e teve como resultado a criação de um código de censura, o Comics Code Authority (Código dos Quadrinhos), que definiu padrões sobre o que as histórias em quadrinhos podiam ou não representar.







Um novo Superman: acima, a capa da
primeira edição de "Son of Kal-El", lançamento
de 2021. Abaixo, dois momentos radicais na
trajetória do super-herói: o casamento com
Lois Lane, em 1996, e a primeira aparição
de Jonathan Kent, o filho e herdeiro dos
superpoderes de Clark Kent, em 2015.

Também abaixo, a capa e duas páginas
do livro de 1954 de Fredric Wertham
que influenciou na criação dos códigos
de censura às histórias em quadrinhos;
e as páginas com o beijo dos super-heróis
da Marvel que o prefeito do Rio de Janeiro,
ligado à seita neopentecostal de Edir Macedo,
tentou censurar na Bienal do Livro de 2019.
No final da página, uma retrospectiva da
evolução do Superman desde a primeira
edição de 1938 e uma vista da cidade
fictícia de Metrópolis como ela surgiu
no início da década de 1950









          



 

Códigos de Censura


O Código dos Quadrinhos modificou o conteúdo das revistas, transformando a sexualidade em tema tabu, modificando as tramas e a psicologia de vários personagens e alterando até mesmo as cores e as palavras apresentadas. As revistas que adotavam o código passavam a trazer um selo de identificação na capa e algumas publicações foram banidas do mercado porque recusavam as restrições. O código influenciou a criação de modelos de censura semelhantes em vários países, inclusive no Brasil, que depois da instalação da ditadura militar em 1964 teve a criação de um “Código de Ética” pelas quatro principais editoras: Abril, Rio Gráfica Editora (sigla RGE), Editora Brasil América Limitada (sigla EBAL) e O Cruzeiro (Diários Associados de Assis Chateaubriand). As editoras instituíram um selo similar ao norte-americano que indicava “aprovado pelo Código de Ética” e era estampado na capa das revistas. O selo teve vigência no Brasil até a redemocratização na década de 1980.

Os beijos entre personagens de mesmo sexo nas histórias em quadrinhos também tiveram um episódio revelador com destaque na imprensa em setembro de 2019, durante a Bienal do Livro do Rio de Janeiro. Na época, o prefeito do Rio, Marcelo Crivella, que é “bispo” da seita neopentecostal Universal do Reino de Deus, criada por seu tio, Edir Macedo, usou o cargo para mandar recolher o álbum gráfico “Vingadores, a cruzada das crianças”, publicação da Editora Salvat, porque na opinião dele o livro tinha “conteúdo inadequado” e “impróprio para menores”. A atitude autoritária do bispo-prefeito, no entanto, não encontrou respaldo jurídico e a proibição terminou não sendo cumprida. A história criada por Allan Heinberg e Jim Cheng, que faz parte do universo da Marvel Comics, abordava a equipe dos Jovens Vingadores e destacava dois personagens masculinos, Wiccano e Hulkling, que na época eram namorados e que se casaram na edição de agosto de 2020.












Um herói mitológico


Um novo Superman que tem um relacionamento amoroso com o melhor amigo, contudo, é algo inédito e muito surpreendente, mesmo para os padrões menos conservadores. Afinal, não se trata de um herói pouco conhecido ou de figuras caricatas que somente têm fãs em grupos específicos e restritos. Trata-se do primeiro super-herói, o mais popular e mais poderoso entre todos. A novidade surge como algo que ninguém poderia prever na linha do tempo original do Superman – que teve início na década de 1930, quando ele chega à Terra ainda bebê e é adotado por um casal de fazendeiros que não teve filhos. Depois ele cresce descobrindo seus poderes, frequenta a escola como se fosse um ser humano comum e, ao se tornar adulto, vai trabalhar como jornalista na cidade grande, onde, escondido em sua identidade secreta, conhece seu grande amor Lois Lane.

Houve muitas mudanças nas características do personagem e no contexto em que ele é apresentado, em quase 100 anos, ao mesmo tempo em que houve poucas alterações em sua vida íntima e pessoal. A existência e o sentido da existência de Superman foram tema de muitos estudos teóricos e filosóficos, com destaque para as abordagens de Coulton Waugh (“The Comics”, 1947), Mircea Eliade (“Mito e Realidade”, 1963), Umberto Eco (“O Mito do Superman”, 1963) e Glen Weldon (“Superman: Uma biografia não autorizada", 2013), que discutem sua presença na indústria cultural como versão moderna dos heróis mitológicos ou folclóricos. A primeira grande metamorfose aconteceu em 1996, quando ele se casou com Lois Lane. A segunda, na passagem de 2015 para 2016, com a apresentação de Jonathan Kent como filho e herdeiro dos superpoderes de Clark Kent e o incentivo para que o filho se tornasse o novo Superman. Embora Jon Kent não seja o primeiro herói LGBTQ, e com certeza não será o último, sua presença é um sinal importante das grandes mudanças, nos quadrinhos e fora deles, que ainda estão para acontecer.


por José Antônio Orlando.


Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Um novo Superman. In: Blog Semióticas, 11 de outubro de 2021. Disponível no link https://semioticas1.blogspot.com/2021/10/um-novo-superman.html  (acessado em .../.../…).


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