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As
fotografias conseguem enganar o tempo: |
A fotografia incide sobre o tempo, como dizia Roland Barthes. Uma demonstração sobre tal incidência surge no intervalo de 100 anos que separam e reúnem as fotografias do Rio de Janeiro Antigo, registradas por Augusto Malta, e cenas da atualidade nas fotomontagens feitas por Marcello Cavalcanti para o fotolivro “Augusto Malta Revival”, lançado pela Gávea Imagens. Nascido em Mata Grande, Alagoas, Augusto Malta (1864-1957) foi um dos mais destacados fotógrafos a atuar no Rio de Janeiro no período de 1900 a 1930, contratado desde 1903 pelo prefeito Francisco Pereira Passos para registrar, em fotografias, a transformação urbana radical que aconteceria na cidade nas primeiras décadas do século 20, mais conhecida como campanha do “Bota Abaixo”.
A ideia de trabalhar com fotomontagens surgiu em 2008, quando Marcello Cavalcanti passava uma temporada em Barcelona, Espanha, uma cidade que reúne a tradição de construções milenares e uma arquitetura moderna. Formado em Design Gráfico, fotógrafo profissional e professor, Marcello nasceu no Rio de Janeiro, em 1980, e se autodefine como um colecionador visual. Na temporada em Barcelona, ele fotografou para sua coleção centenas de portas, janelas, paredes, grafites, becos, vielas, praças e pessoas na cidade da Catalunha, e desde aquela época começou a investir em colagens fotográficas. Anos depois, de volta ao Brasil, ele mergulhou no projeto que reúne na mesma imagem suas fotos autorais de cenários do Rio de Janeiro mescladas às imagens em preto e branco feitas no começo do século 20 pelas câmeras de Augusto Malta.
Cenários do Rio Antigo
A
primeira etapa do projeto de Marcello Cavalcanti teve início em 2012, quando ele fez a experiência de sobrepor duas fotografias feitas do alto do túnel Dois Irmãos, no Rio de Janeiro: uma feita por ele e outra feita por Augusto Malta em 1910. Ele continuou aperfeiçoando a experiência e três anos depois apresentou um projeto que foi selecionado para uma carta de apoio da Prefeitura do
Rio, na época das comemorações dos 450 anos da cidade, seguida de
uma exposição patrocinada pela companhia de eletricidade Light (que
contratou os serviços de Augusto Malta a partir de 1905) e pela
Secretaria de Estado da Cultura. A exposição foi apresentada em outubro de 2015 no
Centro Cultural Light. O acervo de fotomontagens, realizadas a partir
de uma seleção de 60 fotografias de Augusto Malta,
posteriormente foi publicado no fotolivro “Augusto Malta Revival”,
esgotado após o lançamento em 2023 e que terá em breve sua
primeira reedição.
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A produção do acervo de imagens que resultou no livro é o resultado de muitas experiências em 10 anos de trabalho. Marcello fez a sobreposição minuciosa de cada detalhe das antigas imagens de Augusto Malta, com novas fotografias feitas nos mesmos cenários e mesmos ângulos de enquadramento. Neste período, ele também criou um canal no YouTube (“Por trás da foto”), lançou três e-books sobre fotografia (“30 Dicas para o fotógrafo de paisagem”, “Golden Hour – A ciência por trás da melhor luz para fotografar paisagem” e “Lua – Como fotografar”), criou cursos on-line sobre fotografia, fotografou em várias regiões do Brasil e em outros países (Estados Unidos, Canadá, França, Espanha, Noruega, Itália, Tanzânia, África do Sul, Argentina, Chile, Peru, Bolívia, Colômbia, Guatemala, México), recebeu prêmios e criou a editora Gávea Imagens, empresa que gerencia seu trabalho no mercado internacional pelo Fineart e também no Brasil.
Imagens da passagem do tempo
Em
entrevista, Marcello Cavalcanti diz que seu interesse sempre foram os padrões
gráficos e as repetições comparativas que revelam a passagem do
tempo, como demonstrou em suas fotomontagens. Ele também
confessa sua fascinação com as coincidências e as diferenças
que foi descobrindo nas imagens que registram o intervalo de um século. “No trabalho de junção das fotografias, vou apagando coisas ou preservando.
Se tem pessoas na rua: qual pessoa vou deletar, qual vou deixar?
Às vezes acontecem coincidências das pessoas se olhando, pessoas
que estão separadas por mais de 100 anos. Elas estão se olhando na
imagem”, destaca, pontuando detalhes que o impressionaram.
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As fotomontagens de Marcello Cavalcanti sobre as fotografias de Augusto Malta também revelam questões sobre a evolução do urbanismo e da arquitetura do Rio de Janeiro no último século. “É impressionante como o Rio cresceu verticalmente e como a cidade era menos arborizada. A cidade tinha muito casario e poucas árvores nas ruas. Hoje é tudo vertical e temos mais árvores. A passagem do tempo e, como ela influencia, modifica e, ao mesmo tempo, mantém padrões. é o que me fascina no universo imagético em que vivemos”, conclui.
Fotógrafo da evolução urbana
As
fotomontagens já existiam na época de Augusto Malta, mas ao que se
sabe ele não fez nenhuma experiência de colagens usando a técnica
fotográfica. Um caso exemplar de fotomontagem no Brasil veio de um
contemporâneo de Malta, Valério Vieira (1862-1941), fotógrafo
profissional e músico, que em 1901 apresentou ao público “Os
Trinta Valérios”, obra que se tornaria um dos marcos da fotografia
brasileira. Apesar de existirem registros de outras manipulações,
recortes e colagens de matrizes fotográficas em período anterior, a
obra de Valério Vieira rompe com a noção de que a fotografia é um
registro realista e inquestionável. Na fotomontagem, Valério Vieira
surge em diferentes poses e em várias situações na mesma imagem, em autorretratos reunidos na
cena de apresentação de uma orquestra – mas todos em cena são
reproduções da figura do próprio fotógrafo, em um arranjo irônico
que surpreende pelo inusitado da técnica e que ainda hoje
mantém sua aura de bom humor e inventividade.
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O
acervo fotográfico de Augusto Malta, entretanto, ao contrário das experiências de Valério Vieira, está na direção oposta ao
ilusionismo: Malta é considerado o principal fotógrafo da evolução
urbana do Rio nas primeiras décadas do século 20, um período de
acelerada e traumática modernização. Seus belos registros fotográficos
formam um material de pesquisa e documentação fundamental para
historiadores, urbanistas, arquitetos e pesquisadores das mais
diversas áreas. As fotografias de
Malta mostram, entre outros momentos históricos, as etapas de demolição da área onde estava do Morro do Castelo – um marco
da campanha de reforma urbana anunciada para libertar o Rio da
reputação de “cidade insalubre”, com suas metas de
higienização, renovação e demolição de antigos edifícios,
cortiços, pensões e pousadas, para a abertura das grandes avenidas, repetindo o modelo de urbanização que estava sendo adotado em Paris e outras grandes cidades da Europa.
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Fotografia como missão
Augusto
Malta deixou sua terra natal na década de 1880 e foi servir como
cadete do Exército no Recife, em Pernambuco. Em 1888, chegou para
tentar a sorte no Rio de Janeiro, na época Distrito Federal. Em
1900, comercializava tecidos e usava uma bicicleta para fazer
entregas, quando uma barganha mudou seu destino: um de seus fregueses
propôs a troca de uma câmera fotográfica pela bicicleta. Malta
aceitou. E a partir daí iria mergulhar no ofício da fotografia,
registrando ruas e cenários do Rio. Suas fotografias chamaram a
atenção do prefeito Pereira Passos, que mandou contratá-lo em 1903
como fotógrafo oficial da Diretoria Geral de Obras e Viação da
Prefeitura do Distrito Federal, cargo criado especialmente para Augusto Malta, com a missão de registrar imagens das ruas que seriam modificadas pelo gigantesco projeto urbanístico do prefeito.
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Augusto Malta em fotomontagens: acima, a mudança dos veículos do passado na Vista Chinesa. Abaixo, o Túnel do Leme, por onde passavam bondes; e a Rua São Clemente, em Botafogo |
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Pereira Passos encerrou seu mandato em 1906, mas Augusto Malta permaneceu no posto de fotógrafo oficial da prefeitura por mais 30 anos, registrando desde grandes eventos a aspectos da vida cotidiana da cidade. Os registros fotográficos mais importantes sobre a modernização do Rio foram feitos por ele, incluindo marcos históricos como a implantação dos bondes elétricos e da iluminação pública, a abertura e as inaugurações das grandes avenidas, a Exposição Nacional de 1908, a Exposição Internacional para o Centenário da Independência, em 1922, e a inauguração da estátua do Cristo Redentor, em 1931, entre milhares de outros flagrantes de personagens anônimos ou famosos e eventos oficiais.
Uma parte considerável do acervo de Augusto Malta vem dos registros de sua dedicação às alterações na paisagem urbana do Rio, à beleza de suas ruas e edifícios e aos movimentos populares, como o surgimento das primeiras favelas, a Revolta da Vacina, a chegada de Getúlio Vargas com as tropas na Revolução de 1930 e os antigos desfiles de carnaval. Estão preservadas mais de 100 mil fotografias feitas por Augusto Malta, incluindo imagens em papel e negativos em vidro ou filme. Os acervos atualmente estão no Arquivo Geral do Rio de Janeiro, no Museu da Imagem e do Som, no Arquivo da Companhia Light, na Biblioteca Nacional, no Museu Histórico Nacional e no Instituto Moreira Salles.
por
José Antônio Orlando.
Como citar:
ORLANDO, José Antônio. Augusto Malta em fotomontagens. In: Blog Semióticas, 7 de dezembro de 2024. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2024/12/augusto-malta-em-fotomontagens.html (acessado em .../.../…).
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Augusto
Malta em fotomontagens: acima, a célebre ![]() ![]() ![]() |

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Não tenho o hábito de escrever comentários nos sites que visito, mas vou abrir uma exceção porque realmente gostei muito de conhecer esta experiência das montagens fotográficas do jeito que você conta, professor José Antônio Orlando. Seu texto é maravilhoso e esta edição de imagens vale por uma aula. E este acréscimo final com a fotomontagem de 1901 dos Trinta Valérios fechou com chave de ouro o que já estava sensacional.
ResponderExcluirEste seu blog Semióticas é muito forte. Parabéns de novo.
Augusto César de Menezes
Uma beleza de artigo. Realmente gostei muito de conhecer esta história e estas imagens incríveis. Parabéns pelo alto nível deste Blog Semióticas e muito obrigado por compartilhar beleza e sabedoria.
ResponderExcluirEvandro Ferreira
Muito obrigada por você compartilhar. Hoje, quando acordei e entrei no Twitter, encontrei o link para esta postagem e amei o toque. Eu amo tudo neste blog Semióticas, seu texto é tão lindo e tão elaborado. Sinto-me muito agradecida e homenageada. Sua inteligência e a beleza de tudo neste blog Semióticas são um presente valioso 🙏
ResponderExcluirMirella Nogueira
Quando encontrei um link para esta postagem no Facebook, esperava encontrar uma foto e um texto sobre. Engano meu. Esta é a melhor postagem que encontrei nos últimos anos, tudo contextualizado e muito bem escrito, tudo identificado em detalhes. Este blog Semióticas é, para mim, uma descoberta muito surpreendente. Não conheço nenhum outro blog independente que ao menos chegue perto do alto nível de tudo o que encontrei aqui. Amo o Rio de Janeiro e digo que esta postagem é Incomparável. Parabéns porque tudo aqui é uma beleza.
ResponderExcluirRoberto Gama Filho