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29 de abril de 2023

Fractais de Marianne Peretti

    





 

A geometria fractal não é apenas mais um capítulo

da matemática e sim uma habilidade da percepção que ajuda

o homem comum a ver o mundo de maneira diferente.

–– Benoît Mandelbrot (1924-2010).   


Única mulher na equipe de trabalho de Oscar Niemeyer para a construção de Brasília, Marianne Peretti morreu aos 94 anos, no dia 25 de abril, deixando um acervo grandioso de uma forma de arte pouco cultivada no Brasil: os vitrais. As obras mais importantes do vitral no patrimônio histórico e artístico brasileiro foram criadas por Marianne Peretti, com destaque para os conjuntos de vitrais do Plano Piloto da Capital Federal, nos prédios da Catedral de Brasília, da Câmara dos Deputados, do Panteão da Pátria, do Superior Tribunal de Justiça, do Palácio do Jaburu e do Memorial JK, entre outros, incluindo obras em capitais de outros estados do Brasil e no exterior.

Marianne Peretti também se dedicou à criação de centenas de murais e esculturas, instalados no Brasil e em outros países, principalmente em cidades da França e da Itália. Filha da modelo fotográfica francesa Antoinette Louise Clotilde Ruffier e do historiador pernambucano João de Medeiros Peretti, Marie Anne Antoinette Hélène Peretti nasceu em Paris, onde teve sua formação técnica e acadêmica em artes plásticas. Veio de mudança definitiva para o Brasil em 1953, depois de seu casamento com Henry Albert Gilbert, um cidadão inglês que trabalhava em São Paulo e que conheceu em uma das várias viagens de navio que fazia, nas idas e vindas entre o Brasil e a França, para visitar a família.

 

 

             















      
    




Fractais de Marianne Peretti: no alto da página,
a Catedral de Brasília, com a estrutura dos vitrais da
artista Marianne Peretti, considerada por pesquisadores
internacionais uma obra-prima do vitral no século 20.
Também acima, o interior da Catedral de Brasília;
duas fotografias da artista, planejando os vitrais no
interior da catedral e em fotografia de 1965, na época
em que participou da Bienal de São Paulo; e em
uma visita à catedral no ano de 2015.

Abaixo, Marianne Peretti na última visita que fez a
Brasília, em dezembro de 2021, fotografada diante de
sua obra "O lago dos peixes", no Museu do Senado,
um painel em vidro criado e instalado em 1978








Um ano antes da mudança para o Brasil, a artista fez sua primeira exposição individual, apresentada na Galerie Mirador da Place Vendôme, em Paris, em 1952, e contando na abertura com a presença ilustre de um de seus admiradores, Salvador Dalí. Em seus depoimentos para o estudo biográfico “A ousadia da invenção” (Edições SESC e Editora B52, de 2015), o primeiro livro dedicado à artista, organizado por Tactiana Braga e Laurindo Pontes, que catalogou cerca de 600 trabalhos de sua autoria, Marianne Peretti reconhece e destaca a importância da longa parceria com Oscar Niemeyer, que deu origem a mais de 20 trabalhos em Brasília, todos integrados de forma harmoniosa aos projetos arquitetônicos na estética e na funcionalidade.



Harmonia e funcionalidade



A arte de Marianne Peretti também trouxe uma contribuição conceitual para o cânone da arquitetura: com a concepção inovadora de seus vitrais, a força criativa da artista confronta os preceitos da arquitetura modernista que zelam pela autonomia estética dos meios construtivos. Segundo tais preceitos, a integração de esculturas, pinturas, murais e vitrais com a estrutura concreta das obras arquitetônicas nunca alcança resultados convincentes. Porém, a arte de Marianne Peretti comprova, na prática, que matérias-primas inovadoras, aliadas à criatividade nas formas e cores, podem conviver em harmonia e até mesmo ampliar a funcionalidade na engenharia e na arquitetura dos projetos.







Fractais de Marianne Peretti: acima, a artista
com Salvador Dalí, em 1952, na abertura de sua
primeira exposição individual em Paris. Abaixo,
os rascunhos dos vitrais da Catedral de Brasilia,
em tamanho natural, no piso do ginásio Nilson Nelson,
em Brasília, e o painel "Alumbramento", formado
por mais de 200 peças de vidro, instalado
no Salão Branco do Congresso Nacional












Formada a partir de uma variedade de materiais que inclui, além do vidro e da fibra de vidro, resinas, tinturas, bronze e outros metais, a arte do vitral de Marianne Peretti retoma a tradição que teve início a partir do ano 1000, em culturas orientais, e que floresceu como elemento do estilo gótico na ornamentação de igrejas e catedrais da Europa durante a Idade Média. Na forma tradicional cultivada pelos europeus, os vitrais coloridos e seus efeitos refletidos pela luz do sol quase sempre retratam personagens e cenas religiosas do cristianismo. Nas obras criadas por Marianne Peretti, as cenas religiosas cedem lugar a formas abstratas e geométricas que inovam e rompem com os paradigmas medievais do vitral.



Ousadia da invenção



As inovações apresentadas na arte do vitral de Marianne Peretti, como destaca Véronique David, em depoimento para o livro “A ousadia da invenção”, estão presentes na forma e no conteúdo, bem como na relação que se estabelece com a luz. Véronique David, do Centro André Chastel – Sorbonne/INHA, defende que o trabalho da artista na Catedral de Brasília representa uma obra-prima mundial do vitral do século 20. Conforme seu argumento, na maioria dos vitrais na tradição da Europa a relação com a luz se dá como se houvesse uma “parede transparente” que pode reluzir e iluminar um ambiente escuro, enquanto nos vitrais criados por Marianne Peretti as formas translúcidas e as sobreposições de vidro permitem que a obra reflita e se prolongue no espaço, com os reflexos da iluminação sendo projetados nos vãos e superfícies, como se a obra não acabasse nos limites da moldura que está delineada pelos arcos e ângulos do metal e do concreto.







Fractais de Marianne Peretti: acima, a artista
fotografada em 2014 por Breno Laprovitera. Abaixo,
"Pasiphae", painel em cristal e vidro artesanal,
instalado no Salão Nobre do Congresso Nacional;
e o vitral instalado na Capela do Jaburu, em Brasília,
com iluminação natural em horas diferentes do dia

















São exatamente os vitrais mais conhecidos de Marianne Peretti, instalados na Catedral de Brasília, que exemplificam à perfeição suas inovações em relação à tradição do vitral gótico medieval, de inspiração restrita às cenas de passagens bíblicas. Na Catedral de Brasília, os vitrais coloridos da artista, recobertos com camadas de fibra de vidro, rodeiam a construção em 360 graus, cobrindo todos os intervalos das 16 colunas curvas, simetricamente opostas, que formam diâmetros de 70 metros com altura de 40 metros e ampliam as vibrações acústicas, o que dispensa microfones para a celebração das missas. As bases muito afinadas das colunas, intercaladas pelo posicionamento dos vitrais e pelos reflexos do espelho d'água ao redor da catedral, provocam no observador uma certa sinestesia e a impressão de que as estruturas de concreto, de metal e de vidro mal tocam o piso.



Gêneros e suportes variados



Além de sua maestria na construção e na instalação dos vitrais, Marianne Peretti tem uma trajetória de premiações com artes plásticas em gêneros e suportes tão variados como os murais, as esculturas, trabalhos em design e em arquitetura, além do desenho puro em técnicas mistas, incluindo ilustrações sobre encomenda para livros e outras publicações. Entre as premiações no Brasil, a primeira ocorreu em 1965, na Bienal de São Paulo, com o prêmio pela capa do livro “As Palavras”, de Jean-Paul Sartre.







Fractais de Marianne Peretti: acima, a artista em seu
ateliê em Olinda, Pernambuco, em fotografia de
Breno Laprovitera
. Abaixo, dois vitrais da artista:
"Araguaia", instalado em 1977 no Salão Verde
do Congresso Nacional, em Brasília; e o mural
no Memorial Teotônio Vilela, em Alagoas








As obras concebidas para Brasília foram "pensadas" no Rio de Janeiro, onde Marianne morava. Ela viajava para a nova capital a cada 15 dias, para desenvolver e acompanhar os trabalhos, mas quando pisou pela primeira vez em Brasília, a capital já havia sido inaugurada pelo presidente Juscelino Kubitschek e, no entanto, continuava em construção. Em abril de 2016, a artista foi homenageada com a maior retrospectiva já feita sobre suas obras, no Museu da República, em Brasília, com a reunião de peças originais de escultura, objetos funcionais como mesas e cadeiras, ilustrações, maquetes e projetos em tamanho natural, com projeções multimídia reproduzindo o efeito de grandiosidade de seus painéis, murais e vitrais.







Fractais de Marianne Peretti: acima, um anjo no vitral
da artista instalado na câmara mortuária do ex-presidente
Juscelino Kubitschek no Memorial JK, em Brasília.

Abaixo, a artista em fotografia de 1970 e fac-símiles
de duas cartas manuscritas por dois parceiros
de anos de trabalho com Marianne Peretti:
Oscar Niemeyer e Lúcio Costa. Também abaixo,
o documentário "Uma mulher e uma cidade",
realizado em 2018 em homenagem à artista. 

No final da página, os vitrais da artista instalados
no Panteão da Pátria e da Liberdade, em Brasília;
a escultura em bronze "O Pássaro" e "Uma Cadeira",
objeto funcional com design de Marianne Peretti























Arte monumental


A exposição “A arte monumental de Marianne Peretti”, realizada no Museu da República, teve como complemento seminários com pesquisadores, técnicos e especialistas. Elogios e o completo reconhecimento da importância do trabalho da artista também vieram de Niemeyer e de Lúcio Costa, autores do Plano Piloto de Brasília. Niemeyer declarou em uma carta manuscrita: “Me emocionava vê-la durante meses debruçada a desenhar os vitrais. Eram centenas de folhas de papel vegetal que coladas representavam um gomo da catedral. Marianne Peretti é uma artista de excepcional talento. Os vitrais maravilhosos que criou para a Catedral de Brasília são comparáveis, pelo seu valor e esforço físico, às monumentais obras da Renascença. Sua preocupação invariável é inventar coisas novas, influir com seu trabalho no campo das artes plásticas.”

Lúcio Costa, parceiro de Niemeyer, também registrou em uma carta manuscrita, datada de 6 de agosto de 1993, sua homenagem à obra e à maestria de Marianne Peretti, a artista dos vitrais: “Tive afinal o prazer, depois de tanto tempo, de conhecer pessoalmente a artista que soube tão bem ‘dar à luz’ o interior da Catedral de Brasília, problema difícil que somente uma alma como a sua e um saber como o seu seriam capazes de resolver. Em nome da cidade, o inventor dela agradece a você.” Os elogios de Niemeyer e de Lúcio Costa, e também de todos os que passam pela experiência de estar dentro da Catedral de Brasília ou diante da variedade dos painéis transparentes de Marianne Peretti, têm total merecimento.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Fractais de Marianne Peretti. In: Blog Semióticas, 29 de abril de 2023. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2023/04/fractais-de-marianne-peretti.html  (acessado em .../.../…).



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8 de fevereiro de 2021

Era uma vez um cinema






O cinema é como uma velha putana, como o circo e o

teatro de variedades, e sabe dar muitas formas de prazer.

..... –– Federico Fellini, depoimento a Joe Denti em 1971.


 


É como dizem aqueles mêmes da internet: não está fácil para ninguém. Para quem ama o cinema, a situação da pandemia gerou uma crise de abstinência sem data para chegar ao fim e que, talvez, seja mesmo definitiva, irreversível, porque há diferenças radicais entre o ritual social e coletivo de assistir a um filme no cinema ou assistir a filmes e séries nas plataformas de “streaming”. Uma coisa é cinema no cinema, outra coisa é Netflix e internet em um ritual doméstico que, quase sempre, pode ser tão individual e solitário como a leitura de um livro. Há notícia de que em algumas cidades os cinemas retornam, mas a maioria do público segue renitente e nem todos se arriscam no perigo do contágio por covid. Também há a decepção sobre os filmes mais aguardados, incluindo os “blockbusters”, que tiveram lançamento adiado ou com estreias diretamente em plataformas pela internet.

Para completar o cenário de pandemia com decepção e abstinência de atividades coletivas, compartilhadas ao vivo, de forma presencial, os cinéfilos têm agora uma previsão devastadora: o fechamento definitivo de muitos cinemas e o temor de que o ritual de assistir filmes nas grandes salas de cinema se transforme rapidamente numa experiência deixada do passado. Na primeira semana de fevereiro, o jornal inglês The Guardian publicou uma reportagem devastadora sobre o fim dos grandes cinemas em países da Europa e nos Estados Unidos: um amplo levantamento, feito sob encomenda pela consultoria de Londres Omdia, aponta que 70% das tradicionais salas de exibição têm sérias dificuldades para sobreviver após um ano de quarentenas e isolamento provocado pela pandemia.

Somente no Reino Unido, o ano da pandemia gerou perdas que somam mais de 30 milhões de dólares (cerca de 27 milhões de euros) para o setor de exibição de filmes nos cinemas e para os negócios que estão diretamente relacionados. No Brasil, onde o fechamento definitivo dos cinemas chegou muito antes da pandemia, não há estatísticas sobre os prejuízos do setor, mas sabe-se que o cenário é ainda mais catastrófico, com todos os entraves lançados pelo governo de extrema direita com orientação fascista em suas ações deliberadas contra a cultura e contra a produção audiovisual. Os tempos sombrios da atualidade, definitivamente, não estão fáceis para quem gosta de assistir filmes dentro da sala escura com outras pessoas, anônimas, em sua maioria, que também gostam de cinema.



















Era uma vez um cinema: no alto, o monumental
Orpheum Theatre, em New Bedford, Massachussets
(EUA), em fotografia de Frank C. Grace. Atualmente
abandonado e em ruínas, foi construído em meados
do século 19 para apresentar espetáculos de ópera,
passou a ser um espaço para exibição de filmes
na década de 1920 e foi fechado definitivamente
no começo da década de 1970.

Acima, dois dos mais antigos cine-teatros
da Inglaterra em fotografias de Rob Ford,
Bradford Odeon, em Edimburgo, e o
Mirth Cinema, em Londres, que foram
vendidos recentemente e estão em
reforma para serem transformados em
casas de shows. Também acima, imagens
dos últimos cinemas de Belo Horizonte, em
Minas Gerais: o Cine Theatro Brasil, que já
teve as maiores bilheterias de cinema do
Brasil, mas foi fechado definitivamente e
reformado para funcionar como centro cultural;
e a fachada do Cine Belas Artes, o último
cinema de rua de BH, desativado desde março
de 2020. Abaixo, o Cine Royal, no Texas,
cenário de A última sessão de cinema, filme
de 1971 de Peter Bogdanovich que tem no
elenco, entre outros, Timothy Buttons,
Jeff Bridges e Cybill Sheperd





 


Sessão de despedida


Um outro título para este artigo, aliás, poderia ser “A última sessão de cinema”, para lembrar o filme de 1971 de Peter Bogdanovich e os rituais da despedida melancólica dos amigos Sonny Crawford (Timothy Buttons) e Duane Jackson (Jeff Bridges). Às vésperas da formatura no colégio, em uma cidadezinha do Texas no meio do deserto, os dois amigos assistem a reprise de “Rio Vermelho”, clássico faroeste de 1948 de Howard Hawks, em uma sessão de despedida, uma última vez, porque não há mais público para assistir aos filmes e o único cinema do lugar vai fechar as portas. O filme de Bogdanovich, que todo cinéfilo conhece bem, é a tradução de uma época – ou, antes, a tradução do final de uma época.

O fechamento do único cinema e a aproximação do baile de formatura funcionam como um ritual de passagem para a vida adulta na narrativa fragmentada de “A última sessão de cinema” (“The last picture show”). O roteiro, escrito por Bogdanovich e por Larry McMurtry, autor do romance homônimo que deu origem ao filme, assim como a fotografia em preto em branco e as longas sequências de silêncio, reforçam o tom saudosista e de melancolia para a morte simbólica que o filme representa, contaminando a todos na pequena cidade e mudando o rumo das vidas dos personagens. A trama está situada no começo dos anos 1950, uma época entre duas guerras, entre o desfecho da Segunda Guerra e o começo da Guerra da Coreia, com a chegada da novidade da televisão que acelera o fim do cinema e as irreversíveis mudanças de hábitos do público.









Era uma vez um cinema: no alto, os cinemas
e teatros do Império Burnley em Lancashire, norte
da Inglaterra, fechados desde 1995 e atualmente
em ruínas, em fotografia de Christopher Tomond.

Acima e abaixo, uma amostra do acervo de prédios
de cinema fotografados por Simon Edelstein
em cidades de 30 países e reunidos no fotolivro
Abandoned cinemas of the world: acima,
o Cinema Corso em Vicenza, norte da Itália.
Abaixo, dois antigos cinemas desativados na
Índia: o Royal Talkies, em Beaward, e o
Ambala, na cidade de Nishat, que era o único
cinema na região da Caxemira. E o antes
suntuoso Cinema Charleroi, na Bélgica

 










A morte do cinema decretada pela TV já havia sido profetizada ainda nos anos 1950 por vários pensadores – entre eles o canadense Marshall McLuhan (1911-1980), que alertava sobre a cadeia evolutiva nos processos históricos dos meios de comunicação, na obsolescência das mídias e nas transformações dos hábitos de consumo sempre que surge uma nova forma de mídia, ou uma nova forma tecnológica. Foi assim que o surgimento do livro impresso e da imprensa criou novas formas de sociabilidade ao final da Idade Média, assim como a fotografia criou novas formas de percepção da realidade – e o surgimento do cinema levou à extinção ou à transformação radical de outras diversas formas de representação.


O fim de uma época


As revoluções continuaram, na análise de McLuhan, sucessivamente, com os meios de comunicação atuando como extensões dos sentidos da experiência humana. Em “A noiva mecânica” (1951), “A Galáxia de Gutenberg” (1962), “Understanding Media ” (1964), “O meio é a massagem: um inventário dos efeitos” (1967) e outros livros que marcaram época, McLuhan destaca que, assim como a análise do conteúdo se faz importante, a interposição do meio em que tal análise e tal conteúdo são processados e transmitidos se faz essencial, pois a tecnologia da mídia sempre altera os aspectos sociais e mentais tanto individuais como coletivos. Os registros históricos revelam que aconteceu assim com o surgimento de todos os meios de comunicação, do telégrafo, do telefone, da imprensa ilustrada, da fotografia, do cinema, do rádio, do cinema falado, da TV, e agora com a internet e seus dispositivos de acesso, com cada nova mídia provocando e determinando novas formas de consumo, de percepção sensorial e de interação social.






        



Era uma vez um cinema
: os prédios de cinemas
abandonados em vários países em fotografias
de Simon Edelstein: no alto, o Cine Lowe's
Majestic
em Bridgeport, Connecticut (EUA).

Acima, as ruínas do Cine Chand em Nova Deli,
na Índia, e do Cine Cervantes em Tânger,
no Marrocos. Abaixo, o antigo Cine Stanley
em Jersey City, New Jersey (EUA), e o
Cine Lowe's no Brooklyn, em Nova York,
atualmente usados como sedes de culto
por igrejas evangélicas, assim como
acontece com centenas de antigos cinemas
em muitas cidades do Brasil




           



           


Seguindo e confirmando as análises visionárias de Marshall McLuhan, as salas de cinema resistiram por mais de um século, enfrentando as formas de concorrência avassaladora de todas as mídias, da TV, da TV em cores e por assinatura, dos vídeos domésticos e das locadoras de filmes em VHS e DVD. Porém, o avanço das plataformas de streaming na última década, e especialmente neste último ano da pandemia, provocado pelos riscos de contágio tanto nos contatos sociais como nas aglomerações ou em ambientes fechados, sinalizam o derradeiro fim de uma época, com muitos cinemas em cidades do interior e nas capitais do mundo inteiro repetindo aquele ritual de encerramento das atividades e despedida da última sessão do filme de Bogdanovich – uma despedida que pode ser definitiva, ao que tudo indica.



            








Era uma vez um cinema: os prédios de cinemas
abandonados em fotografias de Simon Edelstein
:
acima, o luxuoso Picture Palace, em Bradford,
Inglaterra, transformado em loja de tapetes; e o
que restou das poltronas na plateia de mil lugares
do Cine Eden em Marrakesh, Marrocos.

Abaixo, o Cinéma Metro Art Deco, em Nova York,
recordista de bilheterias desde os anos 1930,
agora transformado em academia de ginástica.
Abaixo, dois tradicionais cinemas da França,
também desativados: o Palace, de Longwy,
e o Le Gaumont Picardie, em Amiens












O ritual de passagem, talvez inevitável, para um mundo sem as grandes salas de cinema teve sua tradução em diversos registros fotográficos publicados nos últimos meses pelo mundo afora. Nas últimas semanas, os jornais The Guardian e The Telegraph, no Reino Unido, as revistas “Variety” e “The New Yorker”, nos Estados Unidos, a revista francesa “Paris Match” publicaram ensaios fotográficos de Frank C. Grace, de Rob Ford e de Christopher Thomond sobre cines-teatros monumentais que já estão definitivamente abandonados ou sendo demolidos em vários países. E também há os livros em edições de luxo que apresentam extensos inventários fotográficos sobre estes monumentos cada vez mais raros nas paisagens urbanas, os cinemas esquecidos, arruinados pelo tempo, em suas dimensões sociais, econômicas, culturais e arquitetônicas. Ao menos dois livros, na verdade réquiens em formato de catálogos fotográficos, ou fotolivros, são dignos de nota, publicados pelos fotógrafos veteranos Simon Edelstein (“Abandoned Cinemas of the World”, Jonglez Publishing) e Carolina Sandretto (“Cines de Cuba”, Editorial Skira).










    
             




Era uma vez um cinema: os prédios de cinemas
abandonados em vários países em fotografias
de Simon Edelstein: no alto, o Cine Avenida
em Costa Nova do Prado, Portugal. Acima, dois
cinemas tradicionais da França, que também
fecharam as portas em 2020: o Rex, em
Audun-Le-Tiche, e o Normandie, em Bayeux.

Abaixo, a fachada do Cine Palace em Marraquexe,
no Marrocos, e o saguão do Cine Commodore
na cidade de Trípoli, região norte do Líbano









Cenários de melancolia


Simon Edelstein percorreu 30 países na pesquisa de campo para seu fotolivro e selecionou 562 fotografias sobre cinemas emblemáticos e grandiosos em seus edifícios que, na atualidade, perderam o protagonismo e a glória de outros tempos. Suas imagens são cenários de nostalgia e melancolia, com grandes salas de cinema definitivamente fechadas, aguardando demolição ou transformadas em outros espaços de uso ou de comércio, tais como igrejas evangélicas, mercados de feiras livres ou lojas enormes de produtos baratos produzidos na China, enquanto o público segue criando o hábito de assistir filmes pela internet e permanece, cada vez mais, indiferente ao desaparecimento de seus prédios históricos. Nas fotografias de Edelstein, os cenários são de total melancolia, nas fachadas e nos pormenores dos interiores, com entradas abandonadas e sem luzes, algumas em completa ruína, outras ainda com parte dos letreiros do último filme em cartaz, as cadeiras destruídas em fileiras incompletas ou cobertas de pó, as paredes descascadas, os cartazes rasgados.

Com Carolina Sandretto, a temporada de pesquisa de campo em Cuba durou quatro anos, um período em que ela viajou pelos quatro cantos da ilha para localizar e fotografar 300 edifícios de cinema com uma câmera Hasselblad no formato que era usual na década de 1950. Pesquisando nas bibliotecas de Havana, a fotojornalista localizou documentos de antes da Revolução de 1959 sobre o funcionamento das antigas salas de cinema. Em 1953, Cuba contava com 694 cinemas, sendo 134 somente em Havana – mais do que havia na cidade de Nova York ou em Paris. Em 1958, eram 511 cinemas exibindo filmes diariamente em Cuba e 130 na cidade de Havana. A maioria, no entanto, terminou fechada nas décadas seguintes. Atualmente, 30 cinemas são usados em Cuba com a finalidade de exibição diária de filmes.










Era uma vez um cinema: os prédios de cinemas
abandonados em Cuba, registrados no fotolivro
Cines de Cuba, de Carolina Sandretto: e
m 1953,
Cuba contava com 694 cinemas, sendo 134
somente em Havana – mais do que havia em
funcionamento na cidade de Nova York ou
em 
Paris. Atualmente, 30 cinemas em Cuba
funcionam com exibição diária de filmes,
entre eles os cines Karl Marx e Yara,
situados no centro comercial de Havana
(fotografias no final da página)














A história dos cinemas em Cuba, segundo Carolina Sandretto, traz reflexos da ocupação e exploração cultural da ilha pelos interesses políticos e econômicos dos Estados Unidos. A maioria dos prédios para instalação dos cinemas foi construída por empresas que faziam parte de conglomerados de estúdios e distribuidoras de Hollywood, como a 20th Century Fox ou a Radio-Keith-Orpheum (RKO), mas logo após a Revolução Cubana as estruturas para exibição de filmes foram pouco a pouco sendo desativadas por falta de investimento e de manutenção, com alguns cinemas sendo revertidos para outros fins comunitários ou transformados em auditórios para escolas. Muitos dos antigos prédios, no entanto, está em ruínas e caiu no esquecimento.

A seleção de imagens melancólicas e nostálgicas sobre esses cinemas abandonados, muitos deles em construções que, em sua época, foram suntuosas, em estilos neoclássico ou Art Déco que justificavam os títulos de “palácios”, e que agora estão em estado de decadência e ruínas, leva a questionamentos dos mais pessimistas sobre o futuro da exibição de filmes para grandes plateias, um ritual que teve início com as sessões inventadas pelos irmãos Lumière no final do século 19. Afinal, será assim, de forma inevitável, destinado ao completo abandono e ao esquecimento, o futuro que aguarda as salas de cinema em todos os países?


por José Antônio Orlando.


Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Era uma vez um cinema. In: Blog Semióticas, 8 de fevereiro de 2021. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2021/02/era-uma-vez-um-cinema.html (acessado em .../.../...).



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