Que
fogo
poderia
se igualar a um raio de sol
num
dia
de
inverno?
–– Henry
David Thoreau, "A Winter Walk" (1863). |
Tempos de proliferação dos mais diversos aparatos de controle na vida cotidiana – com aprovação de leis controversas e tantas proibições que, para alguns, ferem as liberdades individuais, além de muitos problemas que vão da instalação indiscriminada de câmeras de vigilância, invasões rituais de privacidade e denúncias intermináveis de corrupção envolvendo o poder público. Tempos em que é bem-vinda a lembrança de ensinamentos marcantes e questionadores sobre o que parece estabelecido e sobre o que poderia vir a ser, tais como encontramos nos escritos do pensador Henry David Thoreau (1817-1862).
O texto mais conhecido do autor norte-americano, "A Desobediência Civil", publicado em formato de livro em 1849, permanece extremamente atual e, por certo, mais polêmico e mais explosivo do que na época em que Thoreau viveu. Trata-se de uma das defesas da transgressão mais célebres dos últimos séculos: no argumento brilhante do autor, notável por sua atuação como historiador, filósofo, estudioso das ciências naturais, abolicionista e poeta, a desobediência individual surge como forma de oposição legítima frente a tudo o que seja injusto.
Nada mal para um ensaio de ocasião em que o autor queria tão somente explicitar suas razões para se recusar a pagar seus impostos: Thoreau, que passaria à posteridade como um dos grandes escritores norte-americanos e pioneiro com sua teoria relativa à desobediência civil, escreveu seu célebre ensaio como um ato de protesto contra a escravidão e contra a guerra de seu país contra o México, que na época teve grande parte de seu território anexado pelos Estados Unidos.
Sem negar que as formas republicanas e democráticas de governo sejam um avanço político, a obra de Thoreau (traduzida pela primeira vez no Brasil em 1984, pela Rocco, com o título "Desobedecendo - A Desobediência Civil & Outros Escritos") critica a aplicação indiscriminada do princípio do poder da maioria e defende a rebeldia de indivíduos e minorias contra padrões majoritariamente instituídos. As ações de Thoreau e seus escritos têm caráter anarquista e libertário, motivo pelo qual sua força e originalidade vêm sendo retomadas e atualizadas por personalidades distintas em contextos diversos, incluindo de Leon Tolstói e Mahatma Gandhi aos movimentos hippie, da contracultura, da atitude rock'n'roll e das mais variadas ações pelos Direitos Humanos e pelas causas ambientais e ecológicas.
A lei e o cumprimento da lei
Thoreau, pensando à frente de seu tempo, interroga o senso comum: se toda pessoa é dotada de uma consciência, por que deve prevalecer sempre a consciência do legislador ou do aplicador da lei? Para o filósofo, o argumento que alega serem os legisladores ou os "fiscais" do cumprimento da lei os representantes legítimos da coletividade, eleitos por uma maioria, não surge como resposta convincente.
De acordo com Thoreau, a tirania de uma lei não é abrandada por sua origem majoritária. Tal defesa da rebeldia como forma efetiva de ação política teve interpretações radicais, no decorrer do último século, e influenciou a política e as artes. A lição ideológica de Thoreau alcançou consciências iluminadas em 160 anos de história – abarcando pensadores, escritores, artistas, poucos políticos e heróis pacifistas como Mahatma Gandhi (1869-1948), líder da libertação da Índia da condição de colônia da Inglaterra, até as sociedades alternativas do movimento hippie, as contestações estudantis e as revoluções comportamentais que proliferaram desde a década de 1960.
Com o passar do tempo, a arte do pensamento e das palavras de Thoreau projetou utopias de liberdade e participação social, presentes ainda hoje na mobilização popular que cada vez mais volta às ruas, no mundo inteiro, pelos direitos das minorias e contra a discriminação racial e sexual, na luta pela preservação do meio ambiente e na resistência contra leis autoritárias e opressoras, da recente primavera dos países do mundo árabe ao vazamento explosivo de informações confidenciais dos governos de países do primeiro mundo no WikiLeaks, passando pelas manifestações crescentes nas ruas de países da Europa, nos Estados Unidos e também no Brasil.
Para a artista plástica Teresinha Soares, que na década de 1970, no auge da ditadura militar, apresentou instalações ousadas que fizeram história, a contestação sempre será a palavra de ordem. "O mundo está aí, cheio de problemas. Nesse sentido, é preciso ver a questão do feminino diretamente ligada à arte do contestar", argumenta, lembrando muitos episódios recentes que foram notícia e causam repulsa e indignação. "Para quem lutou contra os desmandos da ditadura no Brasil, é difícil demais ver a maioria silenciar diante de paradoxos absurdos", protesta a artista. "Não dá para ficar calada diante de tanta arbitrariedade".
Rupturas com a tradição
"A rebeldia e a contestação são os elementos comuns a todos os modernos na cultura e na arte, desde os movimentos da vanguarda do início do século 20", aponta Eneida Maria de Souza, professora da UFMG e autora do recém-lançado “Janelas Indiscretas” (Editora UFMG), que investiga certos aspectos da cultura e da literatura no Brasil e os cânones do Modernismo à Tropicália.
"Ainda hoje", destaca a professora, "a contestação é a condição para que a obra tenha reconhecimento como obra de vanguarda. Se pensarmos no pós-moderno e na atualidade, mesmo que a obra trabalhe com pastiches e citações, seu valor tem que surgir de algo novo, de original, em relação à tradição e ao lugar-comum".
Na
cena política, entretanto, Eneida reconhece que o valor da rebeldia
e da contestação está ausente, com poucas exceções. "No
Brasil, infelizmente, a contestação na política, na maior parte
das vezes, tem caído no vazio. A contestação na política sempre
vem a reboque dos interesses imediatos, oportunistas, dos partidos
políticos", completa, lembrando episódios do acúmulo quase
diário de denúncias de corrupção e quebra de decoro que vêm se
arrastando por causa da ausência de contestação popular.
Referências
à desobediência civil propostas por Thoreau, um dos precursores dos
movimentos libertários de nossa época, são encontradas em homens
que estiveram à frente de seu tempo – numa lista em que também é
preciso destacar musas que marcaram época com suas revoluções
singulares, como as brasileiras Chiquinha Gonzaga, Maria Lacerda de
Moura, Nísia Floresta, Pagu, Carmen Miranda, Luz del Fuego, Elvira
Pagã, Anaíde Beiriz e Leila Diniz, entre muitas outras.
Há
também referências às ideias de Thoreau em quase toda a bagagem de
muitos rebeldes também na cultura pop, de Rita Lee e Os Mutantes com
a geração tropicalista à sociedade alternativa de Raul Seixas,
Novos Baianos e Secos & Molhados; de heróis da era do rock como
Bob Dylan, John Lennon, Jim Morrison, Janis Joplin e Jimi Hendrix à
utopia representada pelo Festival de Woodstock, em 1969, e daí à
rebeldia grupal dos primeiros movimentos punks, passando por
lideranças universais surpreendentes do Terceiro Mundo como Bob
Marley e Che Guevara, pelas guerrilhas de libertação colonial e contra as ditaduras militares em países da América Latina e da África, pelas vanguardas do Modernismo e pela tradição
da ruptura dos adoráveis malditos na literatura, no cinema, na
música, no teatro, na dança.
Sem a influência das ideias de Thoreau seria impossível também conceber a existência de muitos clássicos da literatura e obras ideologicamente transgressoras identificadas com a cultura das mídias – a exemplo do bom e velho rock´n´roll. Entre as muitas obras derivadas de Thoreau, há algumas que preservam seu espírito libertário e contestador, ganhando uma impressionante atualidade, a exemplo de "On the road" (1957) de Jack Kerouac e outros clássicos da Geração Beatnik, que se mantêm emblemáticas depois de décadas. O mesmo valor antecipatório acontece com certos romances da ficção científica como “Admirável Mundo Novo” e “1984”.
Valores do "futuro"
Escrito
pelo inglês Aldous Huxley (1884-1963) e publicado em 1932,
“Admirável Mundo Novo” narra um hipotético futuro em que as
pessoas são pré-condicionadas a viverem em harmonia com as leis e
regras sociais, dentro de uma sociedade organizada por castas. Qualquer semelhança com os tempos sombrios da atualidade não terá sido, talvez, mera coincidência: a sociedade desse "futuro" criado por Huxley não possui nenhuma ética religiosa, nem solidariedade nem valores morais. No admirável mundo novo de Huxley, qualquer dúvida e insegurança dos cidadãos era dissipada com o
consumo compulsivo de uma droga conformista e calmante sem efeitos colaterais aparentes chamada "soma".
O escritor Aldous Huxley não foi o único a antecipar o futuro sombrio. Publicado
em 1949, exatamente um século depois de "A Desobediência
Civil", "1984" o romance do também inglês George
Orwell (1903-1950), descreve uma sociedade totalitária do futuro (daí
a data fatídica do título), na qual as mínimas ações e até a
expressão facial dos indivíduos são vigiadas por aparatos
tecnológicos a serviço de um suposto "Big Brother" –
que tudo vê, tudo controla e tudo sabe, agindo com plenos poderes em nome do Estado
e usando vigilância e informação para punir qualquer dissidência,
mantendo no poder a estrutura do autoritarismo.
Ironia
do destino e sinal dos tempos: em nossa época, a metáfora do "Big
Brother" virou título para a franquia mundial do "reality
show" na TV – que extrai seu apelo de audiência justamente do
exibicionismo e da "invasão" da privacidade alheia. No
romance, que foi adaptado para o cinema também em 1984, um humilde
funcionário desobedece as leis e o senso comum ao se apaixonar.
Quanto tenta enfrentar a repressão, é esmagado pelo sistema.
Apesar
do desfecho pessimista do romance, George Orwell segue a cartilha de Thoreau
– afinal, um cidadão solitário ou uma minoria renitente são os
agentes mais prováveis de uma ação positiva e bem-sucedida de
desobediência civil. No lado oposto aos que ousam desobedecer, a
multidão e suas maiorias silenciosas podem continuar seu caminho e
obedecer, conformadas.
Mas,
por outro lado, a multidão ou as minorias ou o indivíduo solitário
podem ainda pressionar contra a repressão dos dissidentes – e
podem, também, começar a desobedecer, descobrindo a defesa da
diversidade e estabelecendo a tolerância à divergência como regra
primeira de convivência. Neste caso, a lição de Thoreau terá
superado as barreiras de seu tempo e fincado suas raízes libertárias
no tempo presente.
Livros
sobre a esquerda norte-americana são praticamente inexistentes no
Brasil. Há quem acredite até que a esquerda nunca existiu ou nunca
teve importância no país em que o capitalismo mais prosperou. Ledo
engano – que começa a ser desfeito com a publicação de "A Nova Esquerda
Americana: de Port Huron aos Weathermen (1960-1969)", livro de Rodrigo
Farias de Sousa, lançado pela Editora FGV.
Versão
revista e ampliada da dissertação de mestrado do autor, premiada na seleção anual promovida pela Universidade Federal Fluminense (UFF), "A Nova Esquerda
Americana" revela os trunfos de Rodrigo na pesquisa
documental, valendo-se de depoimentos e entrevistas com lideranças
políticas de uma época em que a utopia de construir um mundo melhor
e mais justo pareceu bem próxima para um grande número de pessoas
no mundo inteiro.
"Logo
no começo da pesquisa, que conclui como tese e agora sai em livro,
percebi que eu precisava seguir numa direção diferente", explica
o autor, em entrevista por telefone. "Não queria ser repetitivo
com um tema tão importante em nossa época. Optei pela esquerda dos
Estados Unidos dos anos 1960 porque era e ainda é um tema
relativamente pouco conhecido por aqui. O que há no Brasil são
obras importantes falando sobre 1968 ou sobre assuntos específicos
daquela época, como as barricadas de maio dos estudantes em Paris,
os protestos contra a guerra do Vietnã, a revolução do rock'n'roll
ou a contracultura que explodiu de repente no mundo todo".
"Mas
há também algo da maior importância que ainda hoje têm
consequências que foi o movimento estudantil norte-americano naquele
período. É um tema que raras vezes é divulgado na mídia e que não
havia sido ainda abordado no Brasil. O que é surpreendente,
considerando o papel dos EUA na história do século 20 e nos anos
1960 em particular”, destaca Rodrigo.
A
lacuna sobre aquele contexto naquele momento da história é difícil
de explicar, concorda o autor de "A Nova Esquerda Americana”.
“Quando se fala de 1968, lembramos das barricadas estudantis do
maio francês ou dos protestos dos estudantes brasileiros contra a
ditadura que deram origem à luta armada. Mas poucos sabem sobre este
período nos EUA, que foi terrivelmente turbulento e que pouquíssimas
vezes chegou ao cinema e à mídia em geral".
Em
uma narrativa sedutora, que enumera eventos que fizeram história e
análises por vezes poéticas, a pesquisa apresentada em seus
percalços – contando na primeira pessoa a história do autor,
brasileiro que estuda a história do estrangeiro no território
estrangeiro – Rodrigo Farias de Sousa consegue alcançar
reflexos do passado no tempo presente, em especial a vitória
espetacular de Barack Obama nas eleições para a sucessão do
retrógrado governo de George W. Bush, além dos empreendimentos
tecnológicos e visionários de protagonistas como Steve Jobs, entre
outros que surgiram nas últimas décadas e foram tidos, à primeira
vista, como propostas estéreis e delirantes.
Zabriskie Point: rebeldia e silêncio infinito
Como
resultado, o livro de Rodrigo Farias de Sousa lança luzes sobre a
complexa cena política atual e os primórdios das grandes questões
contemporâneas nos anos 1960 - quando surgem nos EUA, com notável
vigor, as lutas sociais das chamadas "minorias": lideranças
feministas, gays, negros e outras etnias mobilizam-se, enquanto
surgem inovações na arte e no movimento estudantil.
A
investigação apresentada pelo autor revela o jogo de efervescência
cultural e política nas universidades dos EUA, um cenário que
também foi retratado em "Zabriskie Point" (1970), de
Michelangelo Antonioni – uma obra-prima da contracultura e da
contestação traduzidas em cinema, com os longos planos de panoramas
em silêncio infinito, característicos do cineasta, e trilha sonora
hipnótica que inclui Rolling Stones, Grateful Dead, Jerry Garcia
e The Youngbloods, com destaque para o até então pouco conhecido
Pink Floyd.
Na
trama que a câmera de Antonioni observa, dois protagonistas, os
estreantes Daria Halprin e Mark Frechette, são reunidos pelas forças
do acaso e da sorte e encontram o idealismo de uma revolta
universitária no campus, viajam em uma mistura de fuga e aventura. Terminam sozinhos, em silêncio, no monumental deserto de Zabriskie Point, na
Califórnia.
A
vida imita a arte: depois das filmagens tumultuadas, o filme de
Antonioni sofreu boicote dos estúdios na distribuição e estreou em
poucos cinemas nos Estados Unidos. Pelo mundo afora, em 1970, foi
aplaudido pelo público e pela crítica em vários festivais, mas não
conseguiu espaço nos circuitos comerciais e permaneceu fora de
circulação durante décadas. A bela Daria Halprin rejeitou muitos
convites em Hollywood e abandonou a carreira de atriz quando se casou
com o ator e diretor Denis Hopper, de “Sem Destino / Easy Rider”.
Mark
Frechette, por sua vez, protagonizou um drama que lembra muito o de
seu personagem em "Zabriskie Point": não conseguiu um papel de destaque em nenhum outro filme e, desempregado, acabou envolvido, em 1973, em um
mal sucedido assalto a banco no qual um dos
cúmplices foi morto. Preso e condenado a uma pena de 15 anos, Mark Frechette morreu na
prisão.
O
paralelo com "Zabriskie Point" surge no livro "A
Nova Esquerda Americana" apenas de passagem, mas serve como
analogia à perfeição para o relato que Rodrigo Farias de
Sousa apresenta.
Com precisão e argumentos apresentados em narração que lembra
lances de intrigas da ficção, o autor lança luzes sobre causas e
consequências dos rumos dos Estados Unidos e do mundo a partir do
grupo Students for a Democratic Society (SDS), que reforçou na
mentalidade do cidadão mediano da América e de muitos outros
países, por extensão, a partir dos idos do final dos anos de 1960,
a urgência que não se pode adiar para uma mobilização de lutas
pelos direitos civis e contra o que seja injusto.
por José
Antônio Orlando.
Como
citar:
ORLANDO,
José Antônio. Desobedeça. In: Blog
Semióticas,
11 de novembro de 2011. Disponível no link
http://semioticas1.blogspot.com/2011/11/desobedeca.html
(acessado em .../.../...).
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O cineasta Michelangelo Antonioni
com Daria Halprin e Mark Frechette no deserto de Zabriskie Point, em Death Valley (EUA), em 1969. Abaixo, a cena final de Zabriskie Point |
'Aqui estão os loucos. Os desajustados.
Os rebeldes. Os criadores de caso.
Os pinos redondos nos buracos
quadrados. Aqueles que veem as coisas
Os rebeldes. Os criadores de caso.
Os pinos redondos nos buracos
quadrados. Aqueles que veem as coisas
de forma diferente. Eles não curtem
regras. E não respeitam o status quo.
Você pode citá-los, discordar deles,
glorificá-los ou caluniá-los. Mas a única
coisa que você não pode fazer é ignorá-los.
regras. E não respeitam o status quo.
Você pode citá-los, discordar deles,
glorificá-los ou caluniá-los. Mas a única
coisa que você não pode fazer é ignorá-los.
Porque eles mudam as coisas. Empurram
a raça humana para a frente. E, enquanto
alguns os veem como loucos, nós os vemos
como geniais. Porque as pessoas loucas
a raça humana para a frente. E, enquanto
alguns os veem como loucos, nós os vemos
como geniais. Porque as pessoas loucas
o bastante para acreditar que podem mudar
o mundo, são as que o mudam.'
o mundo, são as que o mudam.'