Futebol
é o ópio do povo. E também é o narcotráfico da mídia.
–– Millôr
Fernandes em “A Bíblia do Caos” (1994).
A história é antiga: jogador de futebol de origem humilde consegue fama e fortuna em muito pouco tempo e passa a ser um "craque problema" que ruma a passos largos para a decadência e o fundo do poço depois de se envolver em sucessivos escândalos e casos de polícia. Da ascensão vertiginosa ao martírio galopante, a história do jogador de futebol que levou ao delírio tantos torcedores e tem um final dos mais trágicos se repete no Brasil desde as primeiras décadas do século 20 – conforme destaca a biografia "Nunca Houve um Jogador como Heleno" (Ediouro/Geração Conteúdo), do jornalista carioca Marcos Eduardo Novaes.
O livro de Novaes serve de inspiração ao filme de José Henrique Fonseca, que tem roteiro do diretor em parceria com Felipe Bragança e Fernando Castets. “Heleno – O príncipe maldito” traz Rodrigo Santoro na pele do gênio temperamental e boêmio e estreia no Brasil depois de receber prêmios em festivais de cinema da América Latina em Havana, Lima e Cartagena. Com cenários das décadas de 1940 e 1950 e fotografado em preto e branco, o filme de José Henrique, que é filho do escritor Rubem Fonseca, apresenta a trajetória dramática do craque artilheiro, galã e mulherengo na era de ouro do Rio de Janeiro, trazendo no elenco, entre outros, Alinne Moraes, Angie Cepeda, Erom Cordeiro, Othon Bastos e Herson Capri.
Mineiro de São João Nepomuceno, Heleno de Freitas (1920-1959) é um dos personagens inaugurais na galeria brasileira dos craques problemáticos, segundo o biógrafo Marcos Eduardo Novaes. O título do livro, ele explica, faz uma referência ao slogan de lançamento de filme “Gilda” (1946), com Rita Hayworth – “nunca houve uma mulher como Gilda”. Porque Gilda, como recorda o biógrafo, foi um apelido nefasto muito usado pelas torcidas adversárias que quase sempre tirava do sério o jogador: Heleno explodia e partia para a briga sempre que era provocado e chamado de Gilda.
Bonito, charmoso e presença refinada nos salões elegantes, o mais mítico centroavante que já passou pelo Botafogo e pela Seleção Brasileira é tido por muitos como um dos maiores craques de todos os tempos. Foi o protagonista de uma trajetória marcada por grandes vitórias, mas também por muitos escândalos. O final de Heleno é melancólico: endividado, viciado em lança-perfume e diagnosticado com sífilis em seu grau mais avançado (quando a doença atinge o cérebro), abandonou o futebol e passou o resto da vida internado em um sanatório em Barbacena, Minas Gerais, até morrer, em 1959, considerado louco.
"Certamente, houve outros antes do Heleno de Freitas. Apenas a imprensa brasileira, que não tinha tradição de reportagem, não cobriu nem registrou os primeiros dramas do nosso futebol" – avalia em entrevista por telefone o jornalista e escritor Ruy Castro, que recebeu alta hospitalar no final de fevereiro, depois de sofrer uma crise convulsiva. "Mas um craque problema", destaca Ruy Castro, “não é mais frequente no Brasil do que em outros países”.
A
ficção e a vida real: no alto,
Rodrigo Santoro
em cena do filme Heleno e
fotografado durante
as filmagens com Alinne
Moraes. Acima e
abaixo,
o craque Heleno fotografado nas ruas
do
Rio de Janeiro e durante os treinos com o Botafogo
na década de 1940; e na pose para
a
fotografia oficial com o time em 1945
"Será que temos tantos craques-problema aqui? Não sei não. A Inglaterra teve, por exemplo, o George Best, que foi o Garrincha deles, lembra? Também morreu de birita. Mas, realmente, no Brasil, a coisa está passando dos limites", aponta Castro. "O inacreditável dinheiro que entra hoje no bolso de certos jogadores e o estilo de vida que eles passam a levar tendem a criar os tais problemas. Acho que nem o Renato Gaúcho e o Romário, nos anos 1990, tinham tanto acesso a mulheres como os jogadores de hoje".
Ruy Castro, mineiro de Caratinga e autor de biografias especialíssimas como "Estrela Solitária: Um Brasileiro Chamado Garrincha", lançada em 1995 (além de "O Anjo Pornográfico", sobre o dramaturgo e cronista esportivo Nelson Rodrigues, "Carmen", sobre Carmen Miranda, e livros de reconstituição histórica como "Chega de Saudade", sobre a Bossa Nova, entre outros), também considera que as origens humildes, assim como a infância e a juventude marcadas pela pobreza, podem sim ser apontadas como causas determinantes para atitudes de escândalo e até mesmo casos de polícia.
Heleno e outros craques: acima, outro herói do Botafogo na pátria do futebol, Mané Garrincha (1933-1983). Abaixo, cena de Garrincha, Alegria do Povo, filme de 1962 dirigido por Joaquim Pedro de Andrade, e Garrincha em campo pela Seleção Brasileira em 1962
"Sim, é possível apontar essas causas determinantes. Mas não se esqueça de que há muito mais corrupção entre os ricos que entre os pobres", alerta Ruy Castro, antes de acrescentar que o caso policial envolvendo o goleiro Bruno do Flamengo pode ser considerado um dos casos mais graves, já registrados no Brasil, envolvendo um craque do futebol. "Sem nenhuma dúvida, é um dos mais graves. Mas, se Bruno fosse goleiro do Arapiraca, do Botucatu ou do Cascavel, e não do Flamengo, teria tido tanto destaque e seria capa da 'Veja'?", questiona.
Mas nem todo atleta do futebol brasileiro mergulha em excessos e até no crime: também há exceções. Dois exemplos sempre lembrados pela atuação política contra a censura e a repressão da ditadura militar no Brasil são Sócrates, pelo Corinthians, e Reinaldo, pelo Atlético Mineiro. No final da década de 1970, Reinaldo foi um dos responsáveis por denunciar um programa internacional de tortura e perseguição aos opositores, a Operação Condor, comandada pelos generais das ditaduras latino-americanas; e Sócrates, no começo da década de 1980, foi um dos idealizadores do movimento Democracia Corinthiana, o maior movimento ideológico do futebol brasileiro que, entre outras demandas, atuou pela volta das eleições diretas e pelo fim do regime militar.
Recados da bola
Para o também jornalista e escritor Jorge Vasconcellos, autor do livro "Recados da Bola" (Cosac Naify), que reúne depoimentos de 12 mestres do futebol brasileiro: Sócrates, Rivelino, o goleiro Barbosa, Didi, Zito, Nilton Santos, Djalma Santos, Zizinho, Jair Rosa Pinto, Ademir Menezes, Domingos da Guia e Bellini), casos de craques como Heleno de Freitas e Bruno do Flamengo, entre tantos outros no Brasil e em outros países, talvez possam ser considerados paradigmas.
"São exemplos famosos em suas épocas", analisa Vasconcellos. "Na década de 1930, por exemplo, vários jogadores já desfrutavam de grande fama e prestígio, e não deixavam de 'aprontar', como Leônidas da Silva, que, jogando no Peñarol do Uruguai, era criticado pela torcida por gostar de frequentar os cabarés e as atrações da noite local. Mas Leônidas nunca foi considerado um exemplo clássico de 'craque problema'. Ao contrário, é sempre lembrado sempre como um gigante do futebol brasileiro, o que de fato ele foi".
Dois
heróis da velha guarda:
no alto,
Leônidas da Silva
(1913-2004), na época
conhecido
por Diamante Negro, tricampeão
pelo
Botafogo e inventor do "gol de bicicleta";
acima, Didi (1928-2001),
o Mister Football,
inventor
da jogada que ficaria conhecida
como "folha seca".
Didi foi eleito
o
melhor do mundo na Copa de 1958
e Pelé foi o melhor jogador jovem.
Abaixo,
a
seleção brasileira na estação de
Poços
de Caldas (MG), esperando o trem,
dias
antes de embarcar para ser
a campeã
na
Copa do Mundo na Suécia, em 1958.
A
partir da esquerda, Nilton Santos, Dino Sani,
Gilmar,
Bellini, Garrincha, Moacir, Dida, Joel,
Mazolla,
Zagalo e Pelé. Também abaixo, Vavá
e
Garrincha no primeiro gol da partida final
contra
a Suécia; e Leônidas no seu célebre gol
de
bicicleta contra o Juventus na década de 1940
Emoldurado por dois grandes traumas nacionais, as derrotas nas Copas de 1950 e 1982, o livro de Jorge Vasconcellos traz conversas com alguns dos craques que fizeram história no futebol brasileiro. Nos depoimentos, comandados por Jorge Vasconcellos e por Claudiney Ferreira, o leitor fica sabendo como Didi inventou a folha-seca; o porquê de Zizinho preferir passar a bola em vez de fazer o gol e acompanha os bastidores do trágico dia da final da Copa do Mundo do Brasil, em pleno Maracanã, contra o Uruguai em 1950.
Vasconcellos também apresenta em detalhes no livro histórias saborosas sobre as aventuras italianas de Sócrates; Jair Rosa Pinto ensinando Pelé a se defender dos zagueiros violentos e a criação da Democracia Corintiana, entre outros casos e escândalos pontuais que marcaram época no decorrer do século 20 e construíram a mítica do esporte das multidões em todo o Brasil.
Comoção nacional em 1950: o gol do adversário silenciou o Maracanã na final da Copa do Mundo, que teve a situação até hoje pouco esclarecida sobre a não convocação do craque Heleno de Freitas. Abaixo, a seleção brasileira na Copa de 1950, fotografada minutos antes da final dramática contra a seleção do Uruguai
Sobre a trajetória dramática de vitórias e derrotas de Heleno de Freitas e de outros "craques problema", Vasconcellos considera que, diante da enorme população mundial que pratica o futebol, de modo amador ou profissionalmente, esse tipo de escândalo é, na verdade, uma minoria absoluta. "Está longe de ser privilégio nosso. Fiquemos somente com alguns exemplos recentes encontrados no exterior: Maradona, o inglês Paul Gascoigne e o irlandês George Best, entre muitos outros".
As origens humildes e a infância pobre podem ser apontadas como causa determinante para um ou outro escândalo que vem com a fama, mas Vasconcellos é enfático em destacar que pobreza não é sinônimo de desvio de caráter ou de psicopatia. "Com a riqueza, de certa forma, acontece a mesma coisa. Não é a classe social que determina a conduta ética e moral de ninguém. Da mesma forma, deslumbramento não é privilégio de nenhuma categoria social. Acredito que são menores as chances de um jogador dar passos errados quanto mais educado ele for", avalia.
Hideraldo Luiz Bellini, que entrou para
a história como
capitão do primeiro título
em Copa do Mundo da
seleção brasileira.
Em 1958, na Suécia,
Bellini ergueu o troféu,
a Taça Jules Rimet,
após a disputa final,
e criou um gesto que
se transformaria em
um ritual universal
para o esporte.
Também abaixo, duas
imagens da Copa
do Mundo de 1962 no
Chile, em que o
Brasil se tornou
bi-campeão: Garrincha
e Pelé no jogo
contra a seleção do México;
e Pelé cercado por
crianças e adolescentes
durante um treino da
seleção brasileira
em Viña del Mar,
Valparaíso, em
fotografia de
Reginaldo Manente
Para Vasconcellos, é importante considerar também que adquirir fama e fortuna rapidamente não é uma experiência muito fácil para a maior parte das pessoas, sendo ou não atletas de origem humilde. "É preciso aprender a lidar com a nova situação. Mas ninguém está condenado a fazer bobagem por ficar rico e famoso de uma hora para outra, isso não está não. Isso é gravíssimo. Acredito mesmo que o caso do goleiro do Flamengo seja o mais grave registrado no Brasil envolvendo um jogador".
Memórias de craques
Carioca de 1956 e torcedor do Flamengo, Jorge Vasconcellos vem reunindo desde 1994 depoimentos de craques de todos os tempos da Seleção Brasileira – de Domingos da Guia a Rivelino e Sócrates. Às entrevistas, algumas feitas em parceria com Claudiney Ferreira para a BBC de Londres, ele acrescentou bela pesquisa fotográfica, privilegiando imagens de bastidores que os jornais raramente publicavam na época. Na entrevista abaixo, concedida por telefone, Vasconcellos fala sobre o acervo reunido no livro e sobre alguns dos personagens que fizeram a história do futebol no Brasil.
Há quem diga que o futebol é uma das mais complexas formações que a cultura e a sociedade brasileira foram capazes de produzir. Você concorda?
Jorge Vasconcellos – O futebol, de fato, está arraigado na alma brasileira. Só esse aspecto já exige boa dose de complexidade analítica para quem deseja entender a razão de ter evoluído dessa forma por aqui. Quanto à cultura, foram produzidas expressões de grande gabarito no campo das artes com foco no futebol, em diferentes linguagens: filmes, artes visuais, literatura, museus etc. Contudo, muitas iniciativas que ambicionaram chegar ao estado de arte por meio do futebol não foram bem-sucedidas.
Seu livro "Recados da Bola" começa com depoimento de Barbosa, goleiro na Copa de 1950, e fecha com Sócrates, personagem em outra derrota, a de 1982. Por que destacar no livro os heróis que ficaram marcados por derrotas históricas?
Na verdade, o grande trauma de Sócrates (foto abaixo) foi com a Seleção de 1982, na Copa da Espanha. Salvo melhor juízo, as derrotas em 1950 e 1982 foram os momentos mais difíceis vividos pelos brasileiros no que diz respeito ao futebol. No caso de 1950, é muito complexo e extenso o baque que o “Maracanazo” causou nos brasileiros. Jogadores, como Barbosa, nunca mais se recuperaram. Imagine dezenas e dezenas de milhares de pessoas calando-se "estrepitosamente" num mesmo lugar, atônitas com o que estão vendo.
Sócrates (Corinthians) e Reinaldo (Atlético Mineiro):
exemplos de atuação política contra a ditadura militar no Brasil
Vem desse episódio no Maracanã o que Nelson Rodrigues chamava de “complexo de vira-lata”?
Isso mesmo. O famoso complexo de vira-lata, tão bem vislumbrado por Nelson Rodrigues como uma "vocação natural" dos brasileiros, tem sua matriz na derrota arrasadora sofrida pela seleção no Maracanã em 1950. Já em 1982 a seleção assombrou o mundo com um futebol alegre, vistoso, mas que sucumbiu diante da Itália, campeã daquele ano. Sócrates era o capitão daquele time. Ele simboliza, no livro e para quem reflete sobre futebol, a perda de status do futebol-arte como um recurso de jogo vencedor. Infelizmente, a primazia do futebol jogado em grande estilo, pelo menos entre nós, foi mandada para a linha de fundo, ainda que tenhamos craques desfilando nos gramados daqui e do exterior.
Mas o trauma da derrota do Brasil para o Uruguai, no Maracanã, na Copa de 1950, foi o combustível para a sequência de vitórias espetaculares da Seleção nas décadas seguintes?
Há uma espécie de consenso indicando a derrota na final da Copa de 1950 como fator essencial para a posterior sequência de vitórias da Seleção Brasileira. O fato é que o trauma que aquela derrota causou nos brasileiros foi de tal ordem que sua reparação se tornou algo próximo a uma obsessão no Brasil.
O que tem sido mais marcante na trajetória do futebol brasileiro: as vitórias ou as derrotas?
Sem dúvida, as vitórias. Salvo melhor avaliação, somos a maior potência do futebol mundial. Ganhamos cinco Copas do Mundo e centenas de nossos jogadores são objeto de desejo de clubes mais e menos importantes do futebol internacional. Eles são até mesmo titulares em seleções de outros países.
Dos depoimentos de craques reunidos no livro, qual foi o mais complicado ou mais emocionante?
Por incrível que pareça, não houve nenhuma complicação na realização dos depoimentos. Ao contrário, diria que o time dos 12 caracterizou-se pela gentileza e generosidade em lembrar detalhes de suas vidas esportiva e pessoal. Uma das passagens inesquecíveis foi o momento em que Bellini relatou a criação do gesto imortal de vitória, segurando a Taça Jules Rimet sobre a própria cabeça com as duas mãos. Nos momentos efusivos de comemoração, ele lembrava da saúde debilitada do pai e do que estaria se passando, àquela altura, com o povo brasileiro.
Por que o depoimento de Pelé ficou de fora do livro?
Pelé, se não é o maior, é um dos principais protagonistas do futebol em todos os tempos. Tentamos diversas vezes agendar com ele uma entrevista. Mas não foi possível.
No
mundo da ilustração, muitos acham que o ilustrador
é
artista plástico. Eu discordo. O ilustrador é um escritor.
Só
que o seu instrumento de escrever é o desenho.
O
ilustrador é um escritor de imagens.
–– Odilon
Moraes.
Em um de
seus célebres ensaios, o francês Roland Barthes (1915-1980)
interroga o leitor sobre as competições esportivas que, ele recorda, são espetáculos que vêm de outras eras, herdados de épocas ancestrais, resquícios dos antigos
sacrifícios religiosos. "Que necessidade têm esses homens de
atacar? Por que ficam perturbados diante desse espetáculo? Por que
dão tudo de si? Por que esse combate inútil? O que é o esporte?" – questiona o pensador.
O próprio
Barthes encontra a resposta, na frase seguinte, segundo a qual o
esporte remete sempre a outra pergunta – quem é o melhor? – e dá
novo sentido à questão dos antigos duelos. "Quem é o melhor
para vencer a resistência das coisas, a imobilidade da natureza?
Quem é o melhor para trabalhar o mundo e oferecê-lo a todos os
homens? Eis o que diz o esporte. O esporte é feito para relatar o
contrato humano", professa a sabedoria de Barthes.
Escrito em
1961 e mantido inédito em português até 2009, quando foi publicado
no terceiro número da revista "Serrote", do Instituto
Moreira Salles (IMS), o ensaio de Barthes, intitulado "O que é o
esporte?", destaca aspectos mitológicos e cotidianos das arenas
esportivas, nas quais o homem não enfrenta diretamente o homem: há
entre eles um intermediário, algo que está em jogo na cerimônia da disputa, algo que pode ser máquina, pode ser disco, pode ser bola.
No caso
brasileiro, entretanto, o que faz do futebol um esporte nacional? O
ilustrador, pintor e escritor Odilon Moraes enfrenta a questão e
busca a natureza mitológica do mais nacional dos esportes criando uma sequência de imagens que seduz e encanta até mesmo os pequenos leitores ainda não alfabetizados. A resposta do ilustrador e contador de histórias é construída pela simplicidade de um fragmento de memória da vida cotidiana de um garoto comum representada de
forma muito pouco usual.
O traço azul do lápis
Sem nenhuma
palavra – apenas com o traço azul do lápis que preenche com cores
verde-amarelas camisas da seleção e bandeirinhas brasileiras –
Odilon Moraes constrói, nas 48 páginas do livro-imagem "O
Presente" (editora Cosac Naify), uma sequência de
reminiscências da infância que deixa em destaque uma vivência
comum a gerações e gerações de brasileirinhos: a descoberta da
paixão pelo futebol.
"Meu
livro é uma mistura de várias referências, principalmente minhas
próprias memórias de infância e as experiências vividas com as
primeiras Copas do Mundo assistidas pela TV", explica Odilon, respondendo à pergunta que fiz para esclarecer minha suspeita de que "O Presente" contava uma história autobiográfica de algum momento da infância do autor, um paulista que nasceu na capital, em 1966, mas passou a infância e a
adolescência em Tanabi e outras cidades do interior paulista.
"Meu
pai comprou a primeira TV a cores depois da Copa de 1974. Mas
assistimos aos jogos do Brasil na casa de um amigo dele. Foi
inesquecível, apesar das imagens cheias de chuviscos e de
fantasmas", ironiza o autor, na breve entrevista que fiz com ele por telefone. Depois que confesso que "O Presente" me fez lembrar de minha própria infância, com os mesmos cenários e personagens, Odilon resgata na conversa ou ou outro caso curioso que permaneceu
gravado em suas lembranças de criança e conta que tem dois filhos
pequenos, de quatro e de um ano de idade, que atualmente fazem as
vezes de primeiros leitores do pai escritor e ilustrador.
"Como
toda arte e toda literatura, 'O Presente' é um apanhado de várias
verdades para formar uma ficção", define. A opção pela
ausência de palavras no livro, ele reconhece, nasceu da atividade
profissional que o leva no dia a dia a ilustrar textos de outros
autores. "A experiência me fez perceber que o desenho conta
coisas diferentes da palavra, assim como as palavras dizem coisas que
a imagem sozinha às vezes não consegue traduzir", explica.
Ele também acredita que um livro ilustrado, sem palavras, destaca melhor o poder que a imagem
tem, inclusive de transformar a palavra. "Mesmo em um livro ilustrado em que há palavras, acontece este poder quase mágico da transformação da realidade. Você vê a palavra e entende uma
coisa, olha a imagem entende outra, e vice-versa. A grande riqueza é
esse jogo entre palavras e imagens e isso significa interdependência", ressalta o autor, com o conhecimento de causa de quem é também o ilustrador.
Segundo Odilon Moraes, a forma de narrativa do livro ilustrado traduz a
maneira como compreendemos o mundo. "A gente não compreende o mundo apenas pelas
palavras. A gente compreende o mundo pelas palavras e pelas imagens. O leitor
precisa se sujeitar a essa dupla orientação, uma coisa contada pela
imagem e outra pela palavra, que muitas vezes não se cruzam. Mesmo
quando querem contar a mesma coisa, são coisas contadas de forma diferente", completa.
Formado em
Arquitetura, Odilon Moraes estreou como autor em 2002, com "A
Princesinha Medrosa", relançado pela Cosac Naify em 2009.
Depois vieram "Pedro e Lua" (2004) e o livro-objeto
"Ismália" (2006), criado a partir do poema de Alphonsus de
Guimaraens. Recebeu prêmios de melhor livro do ano pela Fundação
Nacional do Livro Infantil e Juvenil e também ilustrou "O Homem
que Sabia Javanês" (2003), de Lima Barreto, "O Presente
dos Magos" (2004), de O. Henry, e "Será o Benedito!"
(2008), de Mário de Andrade, entre outros.
O melhor caminho
Ele também faz questão de ressaltar que nem sempre o livro ilustrado é literatura infantil. "A literatura infantil existiu antes do livro ilustrado. Existiam histórias para crianças, mas eram os pais ou os adultos que liam para elas. A partir do final do século 19 é que surge o livro-brinquedo, o livro que é criado para ser manuseado pela criança. O próprio fato de usar a imagem
como narrativa é uma derivação do universo da criança, assim como
imagens coloridas, pouco texto, imprevisibilidade na exploração do
objeto. Então, podemos dizer que o livro ilustrado nasce dentro desse
pensamento do livro-brinquedo, onde desponta uma curiosidade, que é a
ilustração passar a ser um trilho para construir histórias".
Ilustrações
de Odilon Moraes: acima,
o autor trabalhando em "mesa
de luz"
para o projeto do livro O
Presente.
Também acima, imagens extraídas
de seus livros Será
o Benedito! e
O Homem que Sabia Javanês.
Abaixo,
a capa da primeira edição
de A princesinha medrosa, livro de
estreia
do autor, que além de ilustrar,
também escreveu o texto, conquistando
o prêmio de Melhor Livro para Crianças,
concedido em 2002 pela FNLIJ. Também
abaixo, e nas ilustrações a partir do alto
da página, imagens de O Presente
Na atualidade, alguns autores dizem que o livro ilustrado é literatura
pós-moderna, porque congrega vários elementos: a imagem, a palavra e às
vezes o objeto. Minha teoria é que, pelo fato de o livro ilustrado ter nascido dentro da
literatura infantil, guarda-se o território da criança, da
experimentação. Mesmo se há um adulto que fala 'não faço livro ilustrado para
criança', na verdade ele está se utilizando de recursos do universo
infantil que foram muitos expressivos", ele explica, sempre tendo como exemplo seu próprio trabalho como autor e ilustrador.
"Não basta uma boa ideia ou uma bela imagem. É preciso desenvolver esta ideia em etapas e criar uma sequência", ele diz, referindo-se à experiência de vida transformada nas imagens de "O Presente". No livro,
o garoto protagonista tem uma frustração ao assistir aos jogos da
Copa do Mundo pela TV, vestindo a camisa verde-amarela que ganhara do
pai. Mas ele alcança a superação através do próprio jogo, quando é
convidado para uma "pelada" com os amigos. Trata-se de um
livro sobre futebol, mas que também alcança questões mais
profundas sobre amizade, lembranças e amadurecimento
Na
origem de “O Presente”, o autor confirma, estão muitas de suas lembranças da
infância. “Pensei em datas que marcam as pessoas. Por exemplo, em
todo Natal você se lembra no do ano passado, e pensa em como será o
próximo... E com a Copa do Mundo ocorre algo semelhante. Quando
comecei a fazer o livro, me vi refletindo sobre isso, e pensei no meu
filho pequeno, João. Aí me veio à cabeça uma lembrança muito
especial da primeira Copa que me lembro de ter assistido com
atenção”.
Trabalhando
como ilustrador desde 1989, ele diz que foi de certa forma
influenciado pelo pai, que sempre pintou, e que um dia, quando
resolveu levar seus desenhos a uma editora, pouco antes de se formar
em Arquitetura, conseguiu mudar toda a sua vida. Sobre seu ofício como autor e como ilustrador, ele confessa: "Hoje sei que o
melhor caminho é desenhar quando não consigo escrever e escrever
quando não consigo desenhar".
A infância do autor
Ele recorda
que o ponto de partida para criar o livro foram suas memórias sobre
a Copa do Mundo de 1974, que assistiu pela TV. “Eu morava no
interior e meu pai me levou pra ver uma partida na casa de um amigo,
o primeiro cara que tinha televisão em cores na cidade. O que mais
me lembro é que ninguém conseguia assistir direito ao jogo porque a
TV era mal regulada e só víamos uma coisinha amarela passando para
lá e para cá, uma mancha amarela que eram as camisas da seleção.
Só depois da Copa meu pai conseguiu comprar nossa primeira TV em
cores”.
A
experiência da infância do autor conseguiu gerar uma obra das mais
especiais sobre a paixão de muitos brasileiros pelo futebol. Como
escreve Tales Ab'Sáber, que assina o texto da contracapa do livro, o
futebol é "uma das mais complexas formações que a cultura e a
sociedade brasileira foram capazes de produzir. O despertar do amor
ao futebol se confunde com o despertar da própria consciência de
si".
Traduzindo
algumas de suas memórias de infância na simplicidade e na beleza de
um livro sem palavras, Odilon Moraes tematiza o futebol com o que ele
tem de tristeza e alegria, frustração e surpresa. A partir de suas próprias lembranças, como acontece sempre na grande arte da literatura, ele compõe um
presente de fato muito especial para crianças e para adultos de todas as
idades: uma história que comove com seu texto invisível porque incorpora muito
afeto desenhado em verde, amarelo, azul e branco.