O
homem é dono do que cala e escravo do que fala. Quando
Pedro
me fala sobre Paulo, sei mais de Pedro que de Paulo.
–– Sigmund Freud (1856–1939). |
Há
mais de um século o gênio fascinante e por vezes contraditório do
doutor Sigmund Freud sempre esteve em foco para outros pesquisadores
e para os “leitores comuns”. O que não faltam são livros – os
publicados pelo próprio Freud e centenas de outros, que relatam da
biografia à correspondência do pai da Psicanálise, incluindo
aqueles que se dedicam a aspectos incomuns na vida e obra do
biografado ou mesmo os que recriam, em forma de ficção, momentos na
trajetória do mestre. Dos muitos títulos sobre Freud das safras recentes nas livrarias,
alguns são documentos preciosos sobre os ensinamentos do mestre na intimidade e na vida cotidiana.
Entre as edições nacionais, alguns destaques são a
correspondência que Freud manteve com a filha Anna, cerca de 300
cartas enviadas entre 1904 e 1938, e dois estudos publicados pela
Record, “Deuses de Freud” e “A Fuga de Freud”. A
historiadora da arte Janine Burke é autora do primeiro, que revela o
lado colecionador e menos conhecido do biografado. Freud, por mais de
40 anos, teve dedicação diária para reunir um extraordinário
acervo de mais de 2 mil miniaturas, estátuas, vasos, joias e pedras
preciosas esculpidas, remanescentes das civilizações da Antiguidade
Clássica. E também teorizou sobre o assunto, como destaca a autora, recortando citações em que Freud compara o trabalho da Psicanálise com a Arqueologia: "O psicanalista, como o arqueólogo, deve escavar camada após camada da psique do paciente, antes de ter acesso aos mais profundos e valiosos tesouros".
Enquanto
Janine Burke pesquisa e desvenda hábitos incomuns na intimidade
cotidiana do médico austríaco, o psicólogo, jornalista e cineasta
David Cohen investiga os últimos tempos de vida de Freud, com o
avanço do nazismo que o levaria a fugir de Viena para Londres. São
três relatos com mais semelhanças que diferenças. Enquanto as
cartas reunidas em “Correspondência – Sigmund Freud e Anna
Freud” (“Briefwechsel”, L&PM Editores) revelam muito sobre
as relações familiares e de afeto entre o pai e seus filhos –
especialmente Anna, a caçula, de quem Freud se tornou analista entre
1918 e 1924 – tanto Burke quanto Cohen também fornecem,
igualmente, elementos biográficos e analíticos.
Tanto na "Correspondência" quando nos relatos de Janine Burke e de David Cohen, o que está em evidência são dois perfis do doutor
Freud: aquele da intimidade familiar e o outro, referência das mais
importantes em seu tempo e protagonista de revoluções da cultura no
último século que chegaram ao senso comum e permanecem até a
atualidade. Nos relatos de Burke e Cohen, cada um dos perfis surgem
como mosaicos, construídos pelas palavras e impressões de
terceiros. Nas cartas, cada opinião ou decisão é anunciada nas
palavras do próprio Freud.
Complexo
de Édipo
Através
de “Correspondência”, pela primeira vez o leitor brasileiro
tem acesso aos bastidores de uma das mais famosas relações entre
pai e filha da história: a correspondência mantida durante 34 anos
entre o médico e a caçula dos seus seis filhos, a única a seguir
seus passos na profissão. Escritas entre 1904 e 1938, as cartas
compõem um registro abrangente da gênese e do desenvolvimento da
psicanálise, enquanto enumeram as opiniões de Freud sobre seus
discípulos mais próximos.
Na
trajetória de descobertas como o Complexo de Édipo e nas
repercussões de obras radicais como “Três Ensaios sobre a Teoria
da Sexualidade” (1905), Freud constata, através das cartas, seu
crescente prestígio na comunidade científica e o quanto a
Psicanálise vai adquirindo reconhecimento como teoria do
funcionamento do aparelho psíquico, dispondo de um método de
investigação com a interpretação das associações livres na
transferência.
Curiosamente,
depois da morte de Freud, em 1939, Jung renunciou à presidência da
Sociedade Médica Internacional para Psicoterapia. No pós-guerra,
quando Freud e outros grandes pioneiros na teorias que fundamentam a
Psicologia e a Psicanálise já estavam mortos, Jung ressurgiria com
status de referência intelectual e celebridade na mídia
internacional. Em 1955, aos 79 anos, lúcido e polêmico, Jung é
reverenciado na capa da revista “Time”, com entrevista que marcou
época criticando a massificação da Psicologia e da Psicanálise.
A compreensão e a escuta
As
questões de sua época, das vanguardas na arte à política, da evolução de seu entendimento sobre os chistes às articulações espontâneas do inconsciente como linguagem, dos esboços de suas teorias sobre a psicologia das massas ao
contraponto do nazismo em ascensão – tudo está registrado nos comentários de Freud
e nas respostas sempre breves da filha.
A formação de Anna, contudo, é o fio condutor de “Correspondência”. De criança problemática e precoce, a caçula de Freud passou a mulher independente e determinada, subverteu convenções sociais e tornou-se analista mundialmente reconhecida. Depois da morte de Freud, Anna também se destacou como guardiã do legado intelectual paterno – um legado que ela aprofundaria com rigor científico, sobretudo nos estudos sobre psicanálise infantil.
A formação de Anna, contudo, é o fio condutor de “Correspondência”. De criança problemática e precoce, a caçula de Freud passou a mulher independente e determinada, subverteu convenções sociais e tornou-se analista mundialmente reconhecida. Depois da morte de Freud, Anna também se destacou como guardiã do legado intelectual paterno – um legado que ela aprofundaria com rigor científico, sobretudo nos estudos sobre psicanálise infantil.
Anna
Freud e o pai, fotografados em
Viena,
em 1920. Abaixo, a capa da
edição
nacional de Correspondência
e
o jovem Sigmund Freud (ao centro)
em
retrato de família datado de 1872
|
As cartas acompanham a educação sentimental de Anna e seu envolvimento crescente com as pesquisas e com os discípulos do pai. "Olhando você me dou conta do velho que sou, porque tens exatamente a mesma idade que a psicanálise. As duas me deram preocupações, mas no fundo espero de tua parte mais alegrias que dela", escreveu Freud a Anna no final de 1920. Todas as cartas, com raras exceções, são iniciadas com "Minha querida Anna" ou "Querido papai", e deixam vislumbrar como no início da psicanálise essa prática era testada nos círculos dos iniciados e em família.
O
leitor familiarizado com os textos do pai da Psicanálise irá
descobrir um tom afetivo comovente e surpreendente, em momentos em
que o sisudo doutor Freud manifesta "uma humanidade profunda e
palpável" – segundo as palavras de Anna. O leitor que não
tem tanta leitura sobre as teorias de Freud também tem a descobrir
outros tantos segredos nas cartas do destaque entre os mentores da
“intelligentzia” de sua época. Um aprendizado: escrevendo à
filha, o mestre parece evitar atitudes moralizantes e dá prioridade
à compreensão e à escuta.
O
próprio Freud confessaria, em novembro de 1928: "Foi para mim uma
experiência preciosa aprender quanto pode receber um de seus
próprios filhos". Em outros momentos, a reflexão cede ao
trivial, como na carta para Anna datada de julho 1904:
Minha
querida Anna,
Foi muito gentil da tua parte me teres escrito, e por isto eu respondo
conscienciosamente. Deves ter te enganado na tua carta, querendo
dizer que engordaste um quilo; mas se realmente tiveres emagrecido,
então a tia deve te alimentar com Salvelinus alpinus, até que
tenhas recuperado teu peso. Na tua idade ainda se pode ganhar peso
sem ter medo de engordar. A mamãe já está com a passagem de leito
para a quinta-feira à noite, então vocês estarão completos, só
faltando este último, que já está feliz por chegar em breve,
teu
velho papai.”
Navegando no mar
dos sonhos
“Freud
não estava sozinho quando entrou no mar dos sonhos. Seus
companheiros eram deuses do Egito, da Grécia e de Roma”, destaca
Janine Burke na abertura de “Deuses de Freud”. Foi no final
dos anos 1890, quando escrevia sua obra mais conhecida, “A
Interpretação dos Sonhos”, que Freud se tornou um colecionador de
arte.
A autora reveste de significados simbólicos, usando referências dos próprios conceitos e argumentos analíticos desenvolvidos pelo primeiro entre seus pares na Psicanálise, um detalhe importante: pouco depois de adquirir sua primeira peça de alto valor, ele tem uma notícia que o deixaria profundamente abalado: a morte de seu pai, Jacob Freud, em 25 de outubro de 1896. Desde então, Freud passaria a conviver com uma intensa obsessão por antiguidades da arte e pequenos objetos de culto, tesouros da Arqueologia.
Amuletos, alguém diria. Por certo, amuletos, alguns deles, não por acaso, transferidos à argumentação das teses mais conhecidas do doutor Freud, transformados em alegorias no método que ele celebrizou e que leva seu nome à categoria de adjetivo, "freudiano", tomando de empréstimo a metáfora da Arqueologia em que camadas sucessivas são removidas para revelar o mais importante, a chave do enigma: o sentido que permanece no fundo, submerso, a aguardar por seu resgate futuro.
A autora reveste de significados simbólicos, usando referências dos próprios conceitos e argumentos analíticos desenvolvidos pelo primeiro entre seus pares na Psicanálise, um detalhe importante: pouco depois de adquirir sua primeira peça de alto valor, ele tem uma notícia que o deixaria profundamente abalado: a morte de seu pai, Jacob Freud, em 25 de outubro de 1896. Desde então, Freud passaria a conviver com uma intensa obsessão por antiguidades da arte e pequenos objetos de culto, tesouros da Arqueologia.
Amuletos, alguém diria. Por certo, amuletos, alguns deles, não por acaso, transferidos à argumentação das teses mais conhecidas do doutor Freud, transformados em alegorias no método que ele celebrizou e que leva seu nome à categoria de adjetivo, "freudiano", tomando de empréstimo a metáfora da Arqueologia em que camadas sucessivas são removidas para revelar o mais importante, a chave do enigma: o sentido que permanece no fundo, submerso, a aguardar por seu resgate futuro.
Peças
da coleção preciosa de miniaturas
e
relíquias de civilizações da Antiguidade
na
mesa de trabalho de Freud, em Viena
|
“Seu
gosto era preciso e sagaz”, aponta Burke, que persegue os percalços
do gênio em seu estúdio vienense, onde todo espaço disponível –
estantes, móveis, armários, gavetas – com o tempo ficaria
apinhado de objetos antigos. Os mais valiosos ficavam inacessíveis à
maioria dos visitantes, mas no restante da casa, especialmente no
escritório, ele mal podia se mover sem arrastar algum objeto ou
vários deles. A imagem de Freud como austero e hostil é contestada
pelas revelações de Burke, que descobre no cotidiano do médico uma
personalidade generosa, por vezes até hedonista, encantado pelos
fetiches (para usar o termo tão caro às teorias freudianas)
preciosos da coleção.
Segredos milenares da Arqueologia
Segredos milenares da Arqueologia
De
Viena, o médico avançava na teoria e acompanhava à distância que
segredos milenares e tesouros da Arqueologia estavam sendo
descobertos em todo o mundo: em 1871, o aventureiro Heinrich
Schliemann, idolatrado pelo jovem Freud, desenterra as ruínas de
Tróia; em 1900, data da publicação de “A Interpretação dos
Sonhos”, Arthur Evans traz à tona os monumentos e estatuária de
Creta; em 1922, Howard Carter penetra no túmulo de Tutankamon.
Fascinado pela Antiguidade Clássica e pelas histórias sobre as descobertas recentes da Arqueologia, Sigmund Freud seguiu montando sua
coleção de miniaturas, papiros e pequenas gravuras em relevo no intervalo entre 1871 e o final da década de 1930, No
início, réplicas de gesso. Quando começou a ganhar dinheiro com a
Psicanálise, passa às peças verdadeiras, por vezes recorrendo ao
mercado negro e, segundo fontes pesquisadas pela autora, também às redes de mercenários e assaltantes de tumbas. O
relato de Burke é didático:
“Para
Freud, a religião cumpre a função de ajudar o ser humano a
satisfazer na imaginação o que na realidade ele não se atreve ou
não pode realizar na vida real", ela explica. "Para satisfazer estas necessidades,
o indivíduo se identifica com um intermediário, que atua como 'muleta' para que a pessoa possa seguir com sua vida. Desta
maneira, o indivíduo assim se expressa: 'Eu sofro, mas através de
Cristo (ou de qualquer outro Deus) os meus sofrimentos serão
recompensados'. Tudo isto nos mostra que o próprio Freud, em sua
crítica sobre a religião, acaba nos mostrando que sua ligação com
os Deuses e com a arte funcionava também como a "perna de pau"
que o pirata usa para poder caminhar e seguir seu caminho”.
Objetos para amar
“Eu
preciso ter sempre um objeto para amar”, confessaria Freud certa
vez a Jung, em passagem citada por Janine Burke. David Cohen e seu “A
Fuga de Freud” vai em outra direção, deixando para trás a
coleção de antiguidades e os prazeres secretos do médico na
intimidade da família e da vida cotidiana. Cohen vai aos dias mais
difíceis, quando Freud, famoso tanto na Europa quanto nos Estados
Unidos na década de 1930, entrou em xeque quando a Áustria foi
tomada pela Alemanha de Hitler, em 1938.
Nascido em uma família judia, da pequena burguesia comerciante da
Morávia, desde muito cedo Freud aprendeu a conviver com problemas financeiros. Foram eles que obrigaram toda a família a se mudar para
Viena, na Áustria, onde Freud viveria desde 1860, quando tinha
apenas quatro anos. Aos 17, ingressou na Universidade de Viena. Formou-se em Medicina, com especialização em Neurologia. Aos
30, se casou com Martha Bernays e abriu uma clínica especializada em
distúrbios nervosos, onde desenvolveria os princípios da
Psicanálise. Em Viena, sempre usufruiu de vida financeira modesta, só ocasionalmente pontuada por regalias permitidas à sua classe
social. Mas tudo mudou muito rápido em 1938.
Naquele
ano, os nazistas obrigaram os judeus a declarar todos os seus bens –
que passariam a ser tratados como riquezas ilegalmente adquiridas. Aí
vem o golpe de sorte: Anton Sauerwald, estudante de Medicina e fã
dos livros de Freud, foi designado para supervisionar os ganhos do
médico de Viena, mas escondeu de seus superiores as provas de contas
secretas na Suíça. Em “A Fuga de Freud”, todo o processo, a
partir dos documentos oficiais, é investigado por David Cohen e
narrado em primeira pessoa, em tom de novela policial.
Cohen
acompanha o agravamento da situação, os lances mais arriscados e o
passo a passo de Freud em Viena, naqueles dias turbulentos, às
vésperas da Segunda Guerra Mundial, até sua escapada espetacular
aos 82 anos para Londres, a bordo do Orient Express, com vistos
conseguidos por Sauerwald. Contudo, muitos na família de Freud,
incluindo suas quatro irmãs, não foram autorizados a deixar a
Áustria, acabaram presos e morreram no campo de concentração de
Auschwitz. Segundo Cohen, Sauerwald foi salvo dos tribunais que
julgaram os crimes de guerra nazistas no último momento, em 1947,
por intervenção emocionada e emocionante de Anna, filha de Freud.
Segredos
de família
Segredos
de família, fraudes, suicídios, transações bancárias: nada
escapa ao faro do jornalista e cineasta David Cohen, que por sua
formação profissional como psicólogo pode se dar ao luxo,
inclusive, de pontuar as situações biográficas do pai da
Psicanálise com trechos das obras principais e comentários do
próprio Freud, incluindo o que há de mais polêmico.
Descrevendo
a agonia do veterano pensador e médico austríaco em fuga para
Londres, o relato de Cohen ressalta que Freud, simultaneamente,
inovou em vários domínios, tanto ao desenvolver uma teoria da mente
e da conduta humana, quanto ao apresentar técnicas terapêuticas
revolucionárias para ajudar pessoas afetadas psiquicamente. Vastos
domínios, que terminaram por afastar alguns seguidores,
influenciados por um, mas não pelo outro campo de atuação.
Cohen transforma em ritmo de thriller de suspense o momento mais amargo da biografia de Freud. Seu relato encontra o médico atormentado pela decisão de deixar Viena e às vésperas da fuga, a bordo do Orient Express. No mesmo ritmo, Cohen passa em revista os preparativos para a fuga e os
percalços da maturidade, o legado teórico, as inovações no campo
científico, as questões do inconsciente que se articulam como linguagem, as reviravoltas introduzidas pelo conceito de “pulsão
de morte”, o agravamento das diferenças fundamentais com seus
discípulos, especialmente Jung, ou o estabelecimento pela comunidade
científica internacional do novo modelo para o aparelho psíquico,
que Freud desenvolvera ainda no começo do século, compreendendo o
ego, o id, o superego.
No
capítulo final, Cohen cita uma frase de Freud que poderia constar
como epitáfio, ou quem sabe como epígrafe, num dos muitos livros
que Freud publicou, ou num dos tantos livros sobre ele, sua exegese,
seus conceitos e teorias, assim como em qualquer das dezenas de
biografias que têm o mestre como protagonista. Uma frase que reflete
muito das convicções, dos ensinamentos e do temperamento de um
pensador genial: Só os estados de conflito e turbulência podem
aprofundar nosso conhecimento.
por
José Antônio Orlando.
Como citar:
ORLANDO, José Antônio. Freud explica. In: Blog Semióticas, 12 de dezembro de 2012. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2012/12/freud-explica.html (acessado em .../.../…).
Livros citados:
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Como citar:
ORLANDO, José Antônio. Freud explica. In: Blog Semióticas, 12 de dezembro de 2012. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2012/12/freud-explica.html (acessado em .../.../…).
Livros citados:
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