Mais
de três décadas depois de sua morte, as homenagens ao centenário
de nascimento de Roland Barthes, completado neste dia 12 de novembro de
2015, confirmam sua importância valiosa e inquestionável como um dos
principais pensadores de nossa época e um dos nomes mais influentes
de sua geração. Barthes – o professor com “p” maiúsculo que
postulou uma “Ciência dos Signos” – sempre erudito, sedutor,
instigante e inquietante, surge nas mais de 6 mil páginas de sua
“Obra Completa” como um autor de difícil classificação e um
“sujeito impuro”, na definição dele mesmo. Na falta de um
rótulo melhor, ele ainda é, quase sempre, chamado de “crítico”
– mas talvez mereça ser nomeado, de forma mais fulgurante, como um
grande “escritor”: um escritor disfarçado de pensador.
O
escritor Roland Barthes demonstrou que não busca a diferença entre verdade e
aparência. Muito pelo contrário. Para ele, tudo no mundo é
aparência, tudo é linguagem e superfície: tudo é texto, inclusive a variedade dos aspectos não verbais, o pictórico, o fotográfico, os gestos, os afetos, passíveis de interpretações
plurais e complementares – como ele próprio argumentou, desde a
década de 1950, em suas abordagens de intérprete original dos códigos da
cultura de massa, das instituições literárias, das ideologias e
dos diversos sistemas de signos codificados na vida cotidiana.
“Se
é verdade que, por longo tempo, quis inscrever meu trabalho no campo
da ciência literária, lexicológica ou sociológica” – disse Barthes em sua magistral aula inaugural em 1977, no Collège de
France, depois transformada em livro – "devo reconhecer que produzi tão somente ensaios,
gênero incerto onde a escritura rivaliza com a análise". A
teoria, sutil e original, que emerge dos ensaios de Barthes, com a
permanência de sua presença e sua influência na atualidade, é
destacada nas entrevistas que fiz, a convite da revista “Em Tese”,
da UFMG, com três das professoras da universidade que têm
importância fundamental como precursoras dos estudos sobre ele:
Angela Senra, Eneida Maria de Souza e Vera Casa Nova (veja,
no final deste artigo, os links para a íntegra das entrevistas e
para o programa de TV da Rede Minas sobre o centenário
de Barthes).
Atualidades
de Roland Barthes: no
alto,
Barthes aos 35 anos,
em 1950, quando
trabalhou como
professor em Alexandria,
no Egito. Acima,
Barthes em casa, em seu
escritório de
trabalho, em Paris, fotografado em
dois momentos: em 1975, por Sophie
Bassouls;
em 1978, por Jerry Bauer. Também acima,um retrato do escritor em lápis sobre papel
feito por Alan Brooks em 2010 a partir
de uma fotografia de Barthes no escritório
feita por Julian Guindeau para a revista
L'Express na década de 1970 (abaixo).
Também abaixo, Barthes recebe a visita de
Umberto Eco em Paris: o mestre encontra
um dos seus discípulos, fotografados
por Macchi Polymnia em 1970
Subversivo,
sóbrio, elegante
A
primeira pergunta que apresento, nas três entrevistas, é sobre o
papel e o lugar de Roland Barthes na atualidade. Qual é a melhor
definição para Barthes? Escritor, professor, pensador, sociológico,
ensaísta, crítico da literatura, da linguagem, da moda, da mídia,
da arte, teórico da Semiótica, da Semiologia, da Cultura?
Existencialista, marxista, estruturalista, moderno, pós-moderno?
“É
por demais notória a importância de Roland Barthes para a crítica
literária e cultural”, explica Eneida Maria de Souza. “Sua
atuação em vários campos do saber, indo da crítica literária às
artes plásticas, não cessa de ser reatualizada pelos novos
estudiosos nas academias e em pesquisas desvinculadas dos saberes
institucionalizados. Com a publicação de textos inéditos, como
diários e aulas ministradas no Collège de France, temos uma leitura
renovada de seu legado.”
Para
Vera Casa Nova, não há definições que possam enquadrar a presença
e a importância de Roland Barthes. “Ele é plural por excelência.
Sua função foi e será o questionamento, a desconstrução dos
saberes e seus textos. Esse é o papel de Roland Barthes, ontem, hoje
e sempre, sem modismos teóricos. Com certeza ele não gostaria de
ser de alguma forma rotulado, pois com todas essa funções que você
enumerou, ele só poderia ser esse sujeito plural a que me referi
anteriormente. Cito ele mesmo – Eu sou eu mesmo meu próprio
símbolo. Eu sou a história que me acontece: uma roda livre na
linguagem... Je n’ai rien à quoi me comparer... inumeráveis são
as narrativas do mundo...”
"Barthes
é o intelectual subversivo, o professor formador de outros
intelectuais, situando os imaginários da relação didática",
completa Angela Senra. "Fui aluna de Barthes na Escola Prática
dos Altos Estudos, em Paris, em 1971 e 1972. Descobrimos, com
Barthes, um processo permanente de invenção. Assim como faz em seus
textos, o Barthes em sala de aula reinventava citações, chegava ao
inter-texto. Aos deslocamentos. Barthes é uma lição permanente:
ele é o intelectual e professor 'desconfiado'. Aquele que questiona
os mecanismos do poder, subverte as diferentes linguagens. E era um
homem sóbrio, elegante. Cortês. Polidez nas palavras, nos gestos.
Voz baixa. Tranquilidade na fala. Continuei e continuo lendo
Barthes".
O pensamento libertário
Eneida
Maria de Souza também recorda a elegância e o estilo incomparável
de Roland Barthes em sala de aula. “Assisti às aulas de Barthes
quando fui para Paris para o Doutorado, em 1978. A partir daí, o
contato com sua obra foi mais intenso, com as publicações de 'A
Câmara Clara', de artigos escritos no 'Nouvel Observateur' e na sua
atenção mais centrada nas disciplinas afins da literatura, como o
cinema e a fotografia. Assisti a várias aulas no Collège de France
ministradas por ele, as quais me fizeram conviver com sua maneira
magistral de proferir conferências. No segundo tempo do curso havia
sempre um convidado a falar, entre eles Gilles Deleuze, Octave
Manonni, entre outros. Era um espetáculo, assistido pelos estudantes
franceses e estrangeiros, entre eles quem passava por Paris por tempo
curto”.
Vera
Casa Nova, que teve os primeiros contatos com a obra de Barthes em
1968, em um curso ministrado pela professora Dirce Cortes Riedel no
Rio de Janeiro, na antiga UEG (hoje UERJ), destaca que Barthes
continua atual e importante para compreender as questões não só da
literatura, mas também da arte contemporânea e da comunicação de
massa. “O olhar de Barthes persegue os sentidos (e os não-sentidos)
em qualquer arte, sobretudo em suas abordagens críticas sobre a
comunicação de massa. No evento em comemoração ao centenário,
'Roland Barthes Plural', realizado em junho na Casa das Rosas, em São
Paulo, vi isso claramente. Quem lê Barthes ama-o e essa afetividade,
como ele queria que fosse nossa maior potência, deixa-nos
impregnados. Ao citar suas ideias e textos, os atualizamos”.
O
olhar atento de Roland Barthes sobre diferentes textos e linguagens
diversas, sua postura crítica, também são ressaltados por Angela
Senra, que aponta a importância das primeiras experiências sobre a
recepção de Barthes no Brasil, nas décadas de 1960 e 1970, durante
a ditadura militar. "Na década de 1960 e mesmo nos primeiros
anos de 1970, Barthes ainda 'não cabia' no Brasil. O ambiente
intelectual era bastante conservador. O golpe militar de 1964
intensificou a linha pétrea de pensamento. Havia alguns intelectuais
'à esquerda' mas, eles também, eram dogmáticos. Barthes foi
chegando devagar, com outros pensadores que participaram da
efervescência cultural francesa de 1968, 1970... Foucault, Deleuze,
Guattari, Lacan, Derrida, Blanchot. Barthes e todos esses
intelectuais deram importante contribuição para a cultura
brasileira moderna".
Fragmentos para uma Fotobiografia
Os
escritos e os ensinamentos de Roland Barthes percorrem um dos
caminhos mais originais da crítica contemporânea e da Teoria da
Cultura. Em sua trajetória biográfica e teórica, um dos textos que
considero mais importantes, por motivos diversos, talvez seja “A
Câmara Clara” (La Chambre Claire, 1980), o último livro que
publicou em vida. Em sua mistura incomparável de pesquisa acadêmica,
diário confessional e tese sobre a Semiótica da Fotografia, “A
Câmara Clara” representa, de uma só vez, um momento de síntese e
de ruptura – no que se refere às principais questões e conceitos
desenvolvidos pelo autor em busca de uma teoria sobre a linguagem
específica dos signos não-verbais.
Considerado
por muitos como o mais autobiográfico de todos os livros que Barthes
publicou – e, talvez, também o mais filosófico – “A Câmara
Clara” apresenta um discurso fragmentado, francamente subjetivo e
não linear, a meio-fio entre o ensaio e o romance. Relato afetivo,
pontuado de metalinguagem sobre a pesquisa e o método, mas longe de
estabelecer uma metodologia reconfortante, este último livro de
Barthes, mais do que todos os outros que ele publicou, merece por
certo o adjetivo “inquietante”.
São
as questões e conceitos elaborados por Barthes, especialmente em “A
Câmara Clara”, que fundamentam esta seleção de imagens
biográficas sobre sua trajetória, aqui reproduzida –– e
que também apresentei em uma conferência intitulada "Fragmentos
para uma Fotobiografia", na abertura da Jornada Barthes, na
UFMG, realizada em homenagem ao seu centenário de nascimento.
1.
Álbum de Família
Roland
Barthes aos 8 anos, em 1923, no colo de sua mãe, Henriette Barthes,
fotografados em frente à casa da família em Cherbourg-Octeville,
região Norte da França.
2.
Liceu Montaigne
Barthes
aos 15 anos, em 1930, quando era estudante do Liceu Montaigne, em
Paris. É no Liceu que Barthes descobre o gosto pelos dicionários e
pela etimologia.
3.
Sanatório de Saint-Hilaire-du-Touvet
Barthes
aos 27 anos, em 1942, quando esteve internado no sanatório
estudantil de Saint-Hilaire-du-Touvet para tratamento de tuberculose.
Foi na revista “Existences”, editada pelos alunos e professores
do sanatório, que Barthes publicou seus primeiros textos.
4.
Alexandria, Egito
Acima,
Barthes aos 35 anos, em 1950, durante a temporada em que trabalhou
como professor em Alexandria, no Egito, onde também concluiu as
pesquisas e rascunhos do que seria seu primeiro livro publicado, “O
Grau Zero da Escritura” (Le Degré Zéro de L'Écriture, 1953).
5.
Barthes por Cartier-Bresson
Abaixo,
Barthes fotografado por Henri Cartier-Bresson em sua casa, em Paris,
em 1963 – ano em que publica um de seus livros que geraram grandes
polêmicas, “Sobre Racine” (Sur Racine).
6.
Barthes no Marrocos
Barthes
fotografado no Marrocos, em 1969, quando passou uma temporada naquele
país como professor da Faculdade de Letras de Rabat. As anotações
de Barthes sobre a temporada no Marrocos dariam origem ao livro
“Incidentes” (Incidents, 1987).
7.
Na China com Kristeva
Barthes
com Julia Kristeva durante a viagem de uma delegação francesa à
China, em 1974. Da delegação, além de Barthes e Kristeva, também
participaram Philippe Sollers, Marcelin Pleynet e François Wahl. As
anotações de Barthes sobre a viagem foram publicadas no livro
“Cadernos da Viagem à China” (Carnet du Voyage em Chine, 2009).
8.
Um escritor ao piano
Barthes
tocando piano em casa, fotografado em 1975 por Sophie Bassouls. O pesquisador dos signos e dos textos literários e não-verbais praticava música desde a infância, tanto no piano como no canto. Barthes sabia ler partituras como um mestre e durante as décadas de 1930 e 1940 chegou a escrever partituras para piano, voz, flauta e violoncelo. Durante sua trajetória, publicou diversos artigos dedicados à análise musical. Schumann era seu compositor favorito.
9. Aula no Collège de France
Barthes fotografado na tarde do dia 7 de janeiro de 1977, durante sua aula inaugural para a cátedra de “Semiologia Literária” no Collège de France. A apresentação de Barthes, considerada magistral pelos alunos e pela banca de avaliação, posteriormente foi publicada no livro “Aula” (Leçon, 1978).
10.
A última fotografia
Barthes
em sua última fotografia, em 25 de fevereiro de 1980. Barthes enviou
os originais para a publicação de “A Câmara Clara” e seguiu a
caminho do apartamento de Philippe Serre, na rua des Blancs-Manteaux,
no Marais, em Paris, onde participaria de um almoço junto com outros
intelectuais e o futuro presidente da França, François Miterrand.
Depois do almoço, quando retornava para sua casa, Barthes foi
atropelado ao atravessar a rua des Écoles. Foi hospitalizado, mas
morreria de complicações decorrentes do acidente, exatamente um mês
depois, em 26 de março. Estava com 64 anos.
por
José Antônio Orlando.
Como
citar:
ORLANDO,
José Antônio. Atualidades de Barthes. In: Blog
Semióticas,
12 de novembro de 2015. Disponível no link
http://semioticas1.blogspot.com/2015/11/atualidades-de-barthes.html
(acessado em .../.../…).
Para acessar o Dossiê Barthes publicado na revista "Em Tese"
da UFMG, clique na imagem abaixo:
Assista o programa de TV produzido pela Rede Minas
em homenagem ao centenário de Roland Barthes:
Para comprar "Fragmentos de um discurso amoroso", clique aqui.