Os
homens só se compreendem uns aos outros
na
medida em que os animam as mesmas paixões.
–– Sthendal
(1783-1842). |
Gaspard-Félix
Tournachon (1820–1910) trabalhava em uma profissão que, antes
dele, ainda não tinha sido inventada: era desenhista, caricaturista e
ilustrador de jornais e revistas em tempo integral. Durante o inverno
de 1854, aproveitando a popularidade que seu trabalho começava a
adquirir em Paris, por conta de duas publicações que ele havia
criado – a “Revue Comique” e o “Petit Journal pour Rire” –
Tournachon deu um passo arriscado: decidiu abrir seu primeiro estúdio especializado em produzir fotografias. A
fotografia era ainda uma grande novidade, inventada havia pouco mais de uma
década, ainda restrita a poucos, pelas dificuldades técnicas e pelo
alto custo do equipamento. Mas Tournachon tinha um
projeto ambicioso para seu estúdio parisiense: registrar e publicar
um Panthéon ilustrado reunindo uma coleção de retratos fotográficos das grandes
personalidades de seu tempo. O projeto foi adiante.
Em 1854 ele abriu em Paris os salões luxuosos do Panthéon Nadar, preparados para receber em um estúdio com equipamento para produzir fotografias, à luz natural das janelas altas, muitas vezes refletida em espelhos e grandes painéis móveis. Depois do estúdio fotográfico,
Gaspard-Félix Tournachon ficaria mais conhecido por seu nome
artístico que primeiro foi um pseudônimo – Nadar – e seu trabalho como fotógrafo passaria à
história, em lugar de destaque, entre os primeiros e maiores artistas no registro de imagens com lentes e câmeras.
Félix Nadar, como passaria a assinar seus trabalhos quando se instalou no luxuoso ateliê da Rue des Capucines, que tinha decoração luxuosa, amplas vitrines e salas de espera com fotografias emolduradas, não tornou-se somente o mais célebre retratista da história da fotografia, mas também um dos primeiros a registrar flagrantes das ruas de Paris, fotografias de imagens aéreas (feitas durante voos de balão) e fotografias dos esgotos subterrâneos e das catacumbas, além de realizar muitas outras experiências que ficariam associadas à prática profissional da fotografia, como o recurso à iluminação artificial e diversas manipulações técnicas em sua sala de revelação, por ele batizada de "laboratório". O Panthéon Nadar de Fotografias, por uma sugestão de Adrien,
irmão de Gaspard-Felix, teria início com uma série, realizada no
estúdio fotográfico da Rue des Capucines, retratando um personagem que vinha direto da
Baixa Idade Média.
A ideia original de Adrien, colocada em prática pelo
irmão, era apresentar o salão fotográfico de Nadar à alta
sociedade e a artistas e intelectuais através de fotos estampadas em
cartões de visita. Adrien tinha assistido várias vezes a um espetáculo de variedades que foi sucesso durante muitos anos no Théatre des Funambules, apresentado pelo ator e mímico Jean-Gaspar Deburau, também conhecido por seu nome artístico Baptiste, e por seu filho
Charles Deburau, que resgatava esquetes e personagens da Comedia
dell'Arte. Impressionado com o espetáculo, Adrien sugeriu que Nadar
fizesse um retrato de Pierrô (ou Pierrot, em francês, em variação para Pedrolino, o diminuitivo de Pedro em italiano). Nadar
aprovou e Charles Deburau foi contratado em 1854, dando início à série
destinada a promover o salão e também inaugurar o Panthéon Nadar de
retratos fotográficos. Mas a “ajuda” do irmão acabaria custando
muito caro a Nadar, como seria constatado a seguir.
Um
ano depois do lançamento, os cartões de visita de Nadar
com as fotografias do Pierrô eram sucesso em Paris, os negócios do salão fotográfico
prosperavam e o Pantheón Nadar colecionava os primeiros retratos de
grandes celebridades de seu tempo – incluindo políticos, atores, escritores, pintores, músicos, artistas em geral e homens de ciências. Charles Baudelaire,
Gustav Flaubert, Eugène Delacroix, Sarah Bernhardt, Stéphane
Mallarmé, Jules Verne, Alexandre Dumas, Claude Monet, Delacroix, Liszt, Rossini e muitos outros, entre eles o imperador do Brasil, Dom Pedro II, foram fotografados por Nadar, que rapidamente diversificou os negócios e a partir de 1860 também passou a fornecer nos bastidores, a seus melhores clientes, os nobres e distintos cavalheiros da época, a novidade de um
fetiche dos mais lucrativos: cartões com
fotografias de cenas eróticas e de nudez, uma variação dos "cartões de visita fotográficos" patenteados em 1854 por outro pioneiro da fotografia, André-Adolphe-Eugène Disdéri (1809-1894).
Foi quando um problema dos mais imprevistos surpreendeu Nadar: seu irmão Adrien inscreveu, sem que ele soubesse, a série de fotografias sobre Pierrô na Exposição Universal de 1855. A série acabou recebendo o grande prêmio da exposição, mas o premiado foi Adrien e não Nadar. Foi o início de um processo tumultuado
que marcou época, com muitas idas e vindas e reviravoltas na Justiça, até que Nadar conseguiu finalmente ganhar a causa em 1857. Adrien, que chegou a abrir em 1856 um estúdio concorrente com o nome do irmão, seria proibido de usar o nome Nadar. Um escândalo. Mas um escândalo que ajudou a promover o trabalho de Nadar e a popularizar cada vez mais seus negócios com a fotografia.
Commedia dell'Arte
Pierrô, Arlequim e Colombina vêm de antes do século 16, com
origem em Veneza e outras cidades de países da Europa banhados pelo
Mediterrâneo. As origens se perdem no tempo, mas o registro documental mais remoto desta história vem do
ano de 1513, nas cidades da Itália, quando os três personagens ganharam destaque em esquetes de
criação coletiva de grupos de teatro populares, apresentados pelas
ruas e praças públicas. Com o passar do tempo se tornaria um estilo, conhecido como
Commedia dell'Arte, também identificada por algumas fontes como Commedia all'Improviso ou Commedia a Soggetto (comédia por assunto), com seus tipos fixos e improvisos de humor
escrachado, burlesco, com os comediantes interagindo livremente com a plateia, em oposição à Commedia Erudita, mais recatada e
apresentada em latim, já naquela época uma língua inacessível à
maioria.
Há séculos, Pierrô e sua trupe levavam gargalhadas às multidões reunidas nas praças e nos circos populares, enquanto as tramas da Commedia Erudita, com pompa e circunstância, eram encenadas nos palcos de teatro e palácios para as seletas plateias da nobreza e da aristocracia. Não é por acaso que na origem, na Baixa Idade Média, Pierrô, Colombina e Arlequim fossem serviçais envolvidos em sátiras e quiproquós de humor sobre a vida dos patrões. Colombina era invariavelmente empregada de alguma dama da Corte, enquanto Arlequim era o empregado esperto, ágil e malandro, que movimentava as ações e a intriga do espetáculo, e Pierrô encarnava o simplório, o bobo que fazia a plateia rir com suas brincadeiras atrapalhadas.
Pierrô, ingênuo e sonhador, vítima preferida das
piadas do cínico e astuto Arlequim e de todos os outros personagens em cena, descobre que está
perdidamente apaixonado por Colombina, a moça muito bela e simples, muito
prendada, que sabe cantar e dançar, inteligente e sempre irônica, mas assim como Pierrô, Colombina também ingênua e sonhadora. O drama
começa quando Pierrô decide se declarar à sua musa Colombina, mas
logo vem a decepção porque ela também está apaixonada: pelo
espertalhão Arlequim. Na tradição do folclore francês, Pierrô é o protagonista da canção "Au Clair de la Lune".
O russo Mikhail Bakhtin (1895-1975), expoente da Semiótica, das Ciências Sociais e da Teoria da Literatura, em seus estudos sobre a cultura
popular e o realismo grotesco na Idade Média e no Renascimento, situa as tramas de Pierrô e demais personagens
da Commedia dell'Arte na origem de uma cultura ancestral e universal de humor
popular. Em "A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais" (Editora Hucitec, 2008), Bakhtin destaca que provavelmente tudo teve origem na presença determinante do elemento cômico em festas e apresentações em praça pública, em oposição ao tom sério e oficial dos rituais e das cerimônias da Igreja e do Estado, na antiga Grécia, na Turquia e nos reinos da
Ásia Menor na Antiguidade, passando depois à Roma de César e aos mais distantes povoados nos feudos na Idade Média.
O drama de Pierrô sobreviveu e permaneceu em variações de sucessos populares nos vilarejos da Itália e em outros países da Europa durante séculos, em pantomimas itinerantes com atores ou em teatro de marionetes, mas estava mais próximo da tradição folclórica
quando foi resgatado, estilizado e levado aos palcos de Paris em montagens produzidas e encenadas por Baptiste, na verdade Jean-Gaspar Deburau (1796-1846), artista que se tornaria referência na história da mímica, da pantomima e das artes cênicas, pai do também ator Charles Deburau, que aparece como Pierrô nas fotografias do estúdio de Nadar.
Da Europa para o carnaval tropical
O espetáculo dos Deburau, pai e filho, terminou por
firmar algumas tradições na caracterização dos personagens saídos
da Comedia dell'Arte: Pierrô com roupas largas e brancas, porque é
feita de sacos de farinha, rosto pintado de branco e marcações em
preto destacando olhos e boca. A Colombina (do italiano "colombina", "pombinha") ressurge cantando e dançando com forte
maquiagem nos olhos, nas bochechas e na boca vermelha, com roupa em
preto e branco, pivô da intriga amorosa que tem de um lado o Arlequim, apresentado como um espertalhão preguiçoso, bufão e
piadista, com roupa feita de losangos coloridos e fundo preto, feliz
e sorridente, em contraponto ao tímido e apaixonado Pierrô, que traz uma lágrima
desenhada abaixo dos olhos e raramente sorri.
Dos palcos de Paris para os quatro cantos do planeta:
depois do sucesso do espetáculo dos Deburau e dos cartões de visita
do estúdio fotográfico de Nadar, fantasias de Pierrô, assim como de Arlequim e Colombina, voltaram à moda nas festas populares e nos
bailes de carnaval em Paris e outras capitais no século 19. Em pouco tempo, cruzaram o Atlântico e chegaram no final do século aos salões da Corte Imperial no Rio de Janeiro. A partir daí, nas primeiras décadas do século 20, fantasias de Pierrô, Colombina e Arlequim começam a marcar presença nos desfiles populares pelas ruas e nos bailes carnavalescos da alta
sociedade, como destacam Eneida de Moraes no clássico "História do Carnaval Carioca" (Editora Civilização Brasileira, 1958) e estudos mais recentes publicados por Hiram Araújo ("Carnaval: seis milênios de história", Editora Gryphus, 2003) e por Felipe Ferreira em "Inventando carnavais: o surgimento do carnaval carioca no século 19 e outras questões carnavalescas" (Editora UFRJ, 2005).
Depois de desembarcar em terras brasileiras no final do
Oitocentos, Pierrô, Colombina e Arlequim não demoram a
encontrar o mundo do samba e das marchinhas do Carnaval. Entre composições de Chiquinha Gonzaga, Heitor Villa-Lobos, Ernesto Nazareth e outros que marcaram época e ganharam o imaginário popular brasileiro com personagens da Commedia dell'Arte, também está o grande sucesso do carnaval de
1936, ainda hoje celebrado pelos foliões no Reinado de Momo: “Pierrot Apaixonado”, uma marchinha de Noel Rosa, composição em parceria com Heitor dos
Prazeres.
Da remota Antiguidade para os festejos populares da
Baixa Idade Média e daí aos palcos parisienses do Théatre des Funambules no século 19,
até encontrar registro definitivo nas lentes e câmeras do Panthéon ilustrado de Félix Nadar. O triângulo amoroso mais conhecido da Commedia dell'Arte também constrói pela figura de Pierrô um
daqueles paradoxos da tradição e dos rituais que a cultura
representa: um personagem tão nostálgico e tão melancólico, solitário, sendo transformado em símbolo para celebrar, há tanto tempo, no mundo
inteiro, a festa e a alegria do Carnaval.
por José Antônio Orlando.
ORLANDO, José Antônio. Nadar com o Pierrô. In: Blog Semióticas, 9 de fevereiro de 2013. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2013/02/nadar-com-o-pierro.html (acessado em .../.../...).
Como
citar:
ORLANDO, José Antônio. Nadar com o Pierrô. In: Blog Semióticas, 9 de fevereiro de 2013. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2013/02/nadar-com-o-pierro.html (acessado em .../.../...).
Para visitar a série Pierrot, de Nadar, no Musée d'Orsay, clique aqui.
Para comprar o livro Uma História do Samba, clique aqui.
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'Pierrô Apaixonado'
Um Pierrô apaixonado
Que vivia só cantando
Por causa de uma Colombina
Acabou chorando, acabou chorando...
A Colombina entrou num butiquim
Bebeu, bebeu, saiu assim, assim
Dizendo: Pierrô, cacete, vai
Tomar sorvete com o Arlequim...
Um grande amor tem sempre um triste fim
Com o Pierrô aconteceu assim
Levando esse grande chute
Foi tomar vermute com amendoim...
Um Pierrô apaixonado
Que vivia só cantando
Por causa de uma Colombina
Acabou chorando, acabou chorando...
Que vivia só cantando
Por causa de uma Colombina
Acabou chorando, acabou chorando...
A Colombina entrou num butiquim
Bebeu, bebeu, saiu assim, assim
Dizendo: Pierrô, cacete, vai
Tomar sorvete com o Arlequim...
Um grande amor tem sempre um triste fim
Com o Pierrô aconteceu assim
Levando esse grande chute
Foi tomar vermute com amendoim...
Um Pierrô apaixonado
Que vivia só cantando
Por causa de uma Colombina
Acabou chorando, acabou chorando...
(Pierrô Apaixonado, composição de 1935
de Noel Rosa e Heitor dos
Prazeres)