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20 de fevereiro de 2016

Umberto Eco e Mafalda







A condição mínima para uma interpretação é substituir um 
signo por outro signo que, sob certo ponto de vista, possa ser 
julgado equivalente – sejam eles pertencentes a um mesmo 
sistema semiótico ou a sistemas semióticos diferentes. 

– Umberto Eco, “O Código do Mundo”      
(Il Codice del Mondo, 1987).        

 

O italiano Umberto Eco (1932-2016), mestre da Semiótica e um dos principais pensadores e escritores de nossa época, morreu na noite de ontem em sua casa em Milão, aos 84 anos. Eu e seus milhares de leitores e admiradores, talvez milhões, espalhados pelos continentes do planeta, sofremos com a notícia, como se perdêssemos alguém muito próximo, um parente, um professor querido. Agora pela manhã recebo o pedido para escrever um artigo sobre ele para um jornal de Belo Horizonte, com a pauta destacando que o artigo deve centrar o comentário em algum aspecto mais popular sobre a obra e não sobre a morte do autor, porque será publicado na edição de amanhã junto com obituários das agências de notícias. Também respondi há pouco a uma entrevista por telefone, para o jornal "Correio Braziliense", porque por coincidência o mesmo repórter Rodrigo Craveiro havia me entrevistado em 2015 depois que o mestre Umberto Eco passou a me seguir no Twitter e escreveu em exatos 140 caracteres um elogio para este meu blog Semióticas. Do jornal de Brasília também veio a encomenda de um artigo sobre algum aspecto específico da obra complexa e enciclopédica do mestre.
     
Pelos obituários e reportagens que encontro na Internet nos sites e portais da imprensa internacional, muitos artigos destacam a trajetória de Eco como professor, como teórico dos mais celebrados nos diversos campos do saber e sua obra literária, os sete romances que publicou e que bateram recordes de vendas em diversos países e línguas. Um aspecto prosaico da extensa trajetória do mestre, contudo, não foi destacado nas reportagens que consultei, motivo pelo qual foi o meu tema escolhido para redigir este breve artigo sob encomenda: Eco também teve papel pioneiro ao destacar o valor e a importância da Mafalda, a garotinha contestadora inventada pelo cartunista argentino Joaquín Salvador Lavado Tejón, mais conhecido como Quino. Com o crescente sucesso de público da pequena Mafalda em seu país de origem, desde 1964, as tirinhas não demoraram a ser reunidas em livros que logo cruzaram as fronteiras da Argentina e passaram a ser conhecidos no Brasil e em outros países da América Latina e também de outros continentes. Na Europa, Mafalda desembarcou primeiro na Itália, por influência direta de Umberto Eco.





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Na Italía, os direitos de publicação da Mafalda foram comprados pela Casa Editrice Valentino Bompiani, que também editava os livros de Eco desde 1962, quando foi publicado seu primeiro grande sucesso editoral, “A Obra Aberta” – o quarto livro que publicou, depois de “O Problema Estético em Santo Tomás de Aquino” (“Il Problema Estetico in San Tommaso”, Torino: Edizioni di Filosofia, 1956), “Filosofia na Liberdade” (“Filosofia in Libertà”, Torino: Edizioni Taylor, 1958) e “Arte e Beleza na Estética Medieval” (“Sviluppo dell'Estetica Medievale”, Milano: Edizioni Marzorati, 1959). Importante dizer que estes livros da trajetória inicial de Eco tornaram-se obras de referência desde a primeira edição, assim como aconteceria com dezenas de livros que ele publicou nas décadas seguintes.

Eco permaneceu publicando seus livros pela Bompiani até 2015, quando foi lançado seu sétimo e último romance, “Número Zero” – uma crítica feroz ao mau jornalismo e à manipulação de notícias apresentada através de um jornal fictício criado para mentir, distorcer, caluniar e chantagear autoridades e pessoas comuns. Na editora Bompiani, Eco publicou cerca de 50 livros de ensaios e estudos teóricos que são considerados obras de referência, três livros de literatura infanto-juvenil e seus sete romances. Contudo, depois da publicação de “Número Zero”, a Bompiani foi comprada pelo grupo Mondadori, controlado pela família Berlusconi. Em protesto, Eco e outros grandes nomes da literatura italiana tomaram a decisão de romper com a Bompiani e criaram uma nova editora, a La Nave di Teseo, batizada em homenagem ao mítico rei de Atenas na Antiguidade.

O primeiro livro da nova editora será também a primeira publicação póstuma de Eco:
Pape Satàn Aleppe”, que pode ser traduzido como o Papa é adversário de Satanás com o subtítulo Crônicas de uma sociedade líquida será lançado nos próximos dias, na Itália, reunindo uma coletânea de artigos que Eco publicou na revista semanal italiana L'Espresso. O enigmático título do novo livro retoma as palavras que abrem o primeiro verso do Canto VII do Inferno, da Divina Comédia, de Dante Alighieri, poeta da Idade Média e forte referência para o autor de O Nome da Rosa”. Pape Satàn Aleppe” tem a maioria dos ensaios e crônicas no tema da política, questão que sempre esteve presente nos escritos de Eco. Um de seus ensaios mais conhecidos aborda o perigo do fascismo, O fascismo eterno”, publicado no Brasil no livro Cinco escritos morais”, lançado em 2002 pela Editora Record.  













Retratos do mestre Umberto Eco:
no alto, em sua casa em Milão, Itália, em
2013, fotografado por Andrea Frazzetta.
Acima, dois momentos com a trombeta que
aprendeu a tocar quando era menino, em
fotografias de 2015, por Oliver Zehner;
aos 22 anos, em 1954, quando defendeu
sua tese sobre Santo Tomás de Aquino
na Universidade de Turim; e na infância,
em Alexandria, Itália, sua cidade natal.

Abaixo, fotografado por Annie Leibovitz
na Universidade de Bologna, em 1980, na
época do lançamento de seu primeiro romance,
O Nome da Rosa; e em 1985, no antigo mosteiro
de Kloster Eberbach, na Alemanha, durante as
filmagens de "O Nome da Rosa", com os atores
F. Murray Abraham, Michael Lonsdale, Sean Connery
e o diretor Jean-Jacques Annaud.

Também abaixo, a capa do primeiro livro póstumo,
intitulado Pape Satàn Aleppe; uma versão traduzida
para o português do Brasil da ilustração produzida
pelo site espanhol Pictoline para as questões do
ensaio célebre de Eco O fascismo eterno; 
e Eco durante a última entrevista, em 19 de
dezembro de 2015, em sua casa, em Milão,
fotografado pelo jornalista português do
"Diário de Notícias", João Céu e Silva, e
pela fotojornalista italiana Giovanna Silva

 

















A primeira edição de Mafalda em livro, no continente europeu, foi publicada na Itália pela Bompiani em 1969 com uma tarja indicando que se tratava de “história em quadrinhos para adultos”. A edição também incluiu um texto de apresentação de Umberto Eco, “Mafalda ou a recusa”, que chamou imediatamente a atenção de pesquisadores acadêmicos para aquela personagem criada por Quino. Não demorou muito para Mafalda também conquistar França, Espanha, Portugal e outros países, ganhando a simpatia de leitores de todas as idades e dos intelectuais ligados aos movimentos sociais e aos partidos políticos de Esquerda. Detalhe da maior importância: nos Estados Unidos e na Inglaterra, terra natal dos Beatles, que Mafalda ama de paixão, ela continua ainda hoje inédita e desconhecida para o grande público.
 
Mafalda leu, provavelmente, o Che Guevara” – destaca Eco no breve ensaio publicado como apresentação às tirinhas reunidas no livro de 1969, “Mafalda, La Contestataria”, comparando Mafalda com o norte-americano Charlie Brown, criação de Charles Schulz (1922-2000), e com a geração de jovens contestadores que marcou a explosiva década de 1960. Mafalda voltaria à pauta de vários outros ensaios e artigos que Eco publicou em jornais, revistas e livros, como objeto direto de análise ou apenas como citação. Mas este primeiro ensaio que ele dedicou à personagem criada por Quino tem o mérito de ter sido uma carta de apresentação da garotinha zangada e inconformista para milhões de leitores – entre os quais eu também estou incluído.








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Estive uma única vez com o mestre Umberto Eco. Foi na década de 1990, durante uma rápida visita do professor da Universidade de Bologna ao Campus da UFMG, em Belo Horizonte. Deveria ter sido uma entrevista, conforme estava marcado previamente com o cerimonial, mas um atraso levou ao cancelamento de vários compromissos do mestre agendados para aquele dia. Restou apenas a alegria de um breve encontro e da conversa muito rápida e emocionada que tive com ele, interrompidos a cada minuto pela intérprete que o acompanhava e pelos assessores do cerimonial, enquanto caminhávamos de um prédio a outro, a caminho do auditório da reitoria, onde Eco apresentaria uma conferência.

Lembro que fiquei até altas horas, na noite anterior, fazendo e refazendo o roteiro para a entrevista, folheando livros e ensaiando repetidas vezes a pronúncia de algumas frases com meu italiano mínimo e instrumental. A decepção pelo imprevisto do cancelamento da entrevista foi logo substituída pela expectativa da conversa informal na curta caminhada, com o mestre cordial e bem-humorado elogiando a música e a literatura do Brasil – especialmente os clássicos da Bossa Nova e, por recomendação de seus amigos brasileiros de longa data Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari, os escritos de Oswald de Andrade, que naquela época ele estava descobrindo, “felicíssimo”, segundo comentou.

Ele também fez elogios ao português falado pelos brasileiros, em comparação ao de Portugal, e à força criativa da cultura popular que havia encontrado de norte a sul do Brasil, nas várias viagens que fez, a passeio, e nas cidades em que esteve para compromissos acadêmicos e palestras. Já estávamos no auditório da reitoria quando arrisquei uma última pergunta sobre as suas incursões nos rituais do Candomblé em Salvador, na Bahia, que o deixaram encantado nas visitas anteriores ao Brasil, mas não houve tempo para a resposta. Em homenagem a Umberto Eco, mestre dos mestres, transcrevo a seguir o ensaio que ele dedicou a Mafalda em 1969. Fiz a tradução a partir do original em italiano que foi publicado no livro “Mafalda, La Contestataria”. Eis, a seguir, a íntegra do ensaio de Eco sobre Mafalda. 
 

 


 

Mafalda ou a recusa



Mafalda não é apenas uma nova personagem dos quadrinhos: é a personagem dos anos 1960. Se para a definir se utilizou o adjetivo “contestadora” não foi para a alinhar a qualquer preço na moda do anti-conformismo. Mafalda é, de fato, zangada – e recusa o mundo tal como ele é.

Para compreender Mafalda é necessário estabelecer um paralelo com outro grande personagem: Charlie Brown. Ele é norte-americano, Mafalda é sul-americana (o seu autor, Quino, é argentino). Charlie Brown pertence a um país próspero, a uma sociedade opulenta na qual procura desesperadamente integrar-se mendigando solidariedade e felicidade. Mafalda pertence a um país cheio de contrastes sociais que, no entanto, quer fazer dela integrada e feliz, coisa que Mafalda recusa, afastando todas as tentativas. 











 
Charlie Brown vive no seu universo infantil de onde, rigorosamente, os adultos estão excluídos (apesar de as crianças aspirarem a comportar-se como adultos), enquanto Mafalda vive em contínua contradição com o mundo adulto, que não estima nem respeita, antes pelo contrário, ridiculariza e rejeita, reivindicando o seu direito a permanecer uma menina que não quer assumir o mesmo universo adulto dos pais. Charlie Brown leu, evidentemente, os “revisionistas” de Freud e busca uma harmonia perdida. Mafalda leu, provavelmente, o Che Guevara.

Na verdade, Mafalda tem ideias confusas sobre política, não consegue perceber o que se passa na Guerra do Vietnã, não sabe por que existem pobres, desconfia dos governos, desconfia dos chineses. Mas de uma coisa ela tem certeza: não está satisfeita.








Ao redor de Mafalda, há um pequeno grupo de personagens mais “unidimensionais”: Manolito, o menino plenamente integrado num capitalismo de bairro, que tem a certeza absoluta de que, no mundo, o valor essencial é o dinheiro; Filipe, o sonhador tranquilo; Susaninha, a doente de amor maternal, perdida nos seus sonhos pequeno-burgueses. E, depois, os pais de Mafalda, resignados, que aceitaram a rotina diária (com o recurso ao paliativo farmacêutico de algum medicamento) e, além disso, vencidos pelo tremendo destino que fez deles os guardiões da Contestadora...

O universo de Mafalda não é apenas o de uma América Latina urbana e evoluída; é também, de um modo geral e em muitos aspectos, um universo latino, e isso faz com que ela surja mais compreensível para nós do que muitos personagens dos quadrinhos norte-americanos. Enfim: Mafalda é, em todas as situações, “um herói do nosso tempo” – e isto não parece uma qualificação exagerada para a pequena personagem de papel e tinta que Quino propõe.








Ninguém nega que histórias em quadrinhos sejam (quando atingem um certo nível de qualidade) questionadoras de hábitos e de costumes – e Mafalda reflete as tendências de uma juventude inquieta que assumem, aqui, o aspecto de uma dissidência infantil, de um esquema psicológico de reação aos meios de comunicação de massa, de uma urticária moral provocada pela lógica dos blocos, de asma intelectual provocada pelo cogumelo atômico. Já que os nossos filhos se vão tornar – por escolha nossa – outras tantas Mafaldas, será prudente tratarmos Mafalda com o respeito que merece um personagem real. (Umberto Eco)



Traduzido e editado por José Antônio Orlando.



Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Umberto Eco e Mafalda. In: Blog Semióticas, 20 de fevereiro de 2016. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2016/02/umberto-eco-e-mafalda.html (acessado em .../.../…).
























Na biblioteca do Mestre dos Mestres: 
um passeio com Umberto Eco na biblioteca
de sua casa em Milão, Itália, em fotografias de
setembro de 2007 por Leonardo Cendamo






14 de novembro de 2014

Segredos de Mafalda






Nós podemos realizar coisas agradáveis, 
inteligentes, que façam refletir os adultos 
e também as crianças. É preciso respeitar 
as crianças. Os adultos falam com elas 
como se fossem todas retardadas... 

––  Quino, criador de Mafalda.    
 

Mafalda, muito esperta e questionadora, conquista a maioria à primeira vista: tem paixão pela primavera e pelos Beatles e horror a sopa, a moscas e a guerras. Com seu humor pitoresco e observações tão breves quanto surpreendentes sobre o mundo, as pessoas, as coisas do dia a dia, as notícias delirantes da imprensa e da TV, que permanecem atualíssimas, Mafalda surgiu para o grande público em 1964, mas permanece muito popular e fazendo as perguntas que os adultos não se atrevem a fazer em voz alta. O sucesso de Mafalda começou em sua terra natal, a Argentina, mas rapidamente ultrapassou as fronteiras e conquistou fãs e leitores de vários países.

Em mais de meio século de vida, Mafalda foi traduzida em várias línguas e publicada oficialmente em mais de 30 países – com um detalhe bastante revelador no fato de ainda permanecer inédita nos Estados Unidos. No Brasil, faz sucesso desde os anos 1970 e tem tanto prestígio que disputa, há mais de uma década, com ninguém menos que Machado de Assis e Carlos Drummond de Andrade, o título de recordista em citações nas questões apresentadas pelo ENEM, o Exame Nacional do Ensino Médio.

Na trajetória de Mafalda há, também, as lendas, as crises, as idas e vindas, os altos e baixos. Para começar, teve duas datas de nascimento: a princípio, ela foi criada em 1962, para compor um anúncio publicitário de eletrodomésticos, e seu nome tem a ver com as iniciais da marca do produto, com as tirinhas sendo publicadas a partir de 1964, mas até sobre a data verdadeira de seu aniversário pairam certas controvérsias que permanecem sem solução. 














Segredos de Mafalda: no alto,
Mafalda e Quino em fotografia de
setembro de 2014, em Buenos Aires,
fotografados por Natacha Pisarenko
na abertura da exposição El Mundo
Según Mafalda, em comemoração
aos 50 anos da personagem. Acima,
Quino em sessão de autógrafos em
Paris, 2004, e Mafalda com a família
e os amigos: a partir da esquerda,
Felipe, Manolito, Susanita, Liberdade,
Mamãe (Raquel), Papai (Pelicarpo),
Guilherme (seu irmão caçula, também
chamado de Guille ou Gui) e Miguelito.

Abaixo, dois dos primeiros cartuns da
Mafalda, no traço original, e amostras da
arte de Quino, muito além da Mafalda, sem
nenhuma palavra no álbum de 1980
com o título Qui est le Chef?





























O criador da Mafalda, o argentino Joaquín Salvador Lavado Tejón, mais conhecido como Quino, desenhou, em 15 de março de 1962, as primeiras charges e algumas tiras de histórias em quadrinhos sobre Mafalda para uma agência publicitária. A personagem deveria ser publicada em anúncios da empresa de eletrodomésticos Mansfield no jornal Clarín. Mas, por ironia do destino, a empresa acabou recusando os desenhos, o Clarín rompeu o contrato e Quino, contrariado, decidiu arquivar suas tiras.



Mafalda pelo mundo inteiro



Em 1964, a ideia das tiras e charges da "enfant terrible" é retomada por Quino, que consegue finalmente publicar sua criação em uma revista semanal da Argentina, a Primera Plana. A primeira vez da Mafalda impressa aconteceu em 29 de setembro daquele ano. A popularidade da personagem, no entanto, só passaria a crescer no ano seguinte, quando os desenhos chegaram às páginas do jornal diário El Mundo, na época um dos mais lidos do país. De novo, vem a ironia do destino nos caminhos de Mafalda: apesar do sucesso das tirinhas da personagem criada por Quino, o jornal foi à falência em dezembro de 1967. 










Segredos de Mafalda: acima,
a trajetória de evolução dos traços da
personagem desde 1964 e Mafalda e
Quino em maio de 2014, fotografados
para a agência EFE. Abaixo, o retrato de
Mafalda em tempos de autoritarismo
e ditadura militar em sua terra natal,
Argentina, com os cidadãos proibidos
em sua liberdade de falar, de ouvir,
de ver, e Mafalda no Brasil, nas capas
da revista Patota, publicada na década
de 1970 pela Editora Artenova, e nas
primeiras versões em livro, em 1982,
publicadas pela Global Editora





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Mafalda retornaria firme e forte seis meses depois, em outro jornal, o Siete Días Illustrados. Com o crescente sucesso de público da pequena Mafalda em seu país de origem, as tirinhas não demoraram a ser reunidas em livros. O primeiro deles, editado por Quino, teve uma marca impressionante: toda a tiragem de 5 mil exemplares foi vendida em Buenos Aires em apenas dois dias. Com o sucesso, a tirinha e os livros com coleções de tirinhas logo cruzaram as fronteiras da Argentina e passaram a ser conhecidos em outros países da América Latina e também na Europa, onde Mafalda teve popularidade imediata na Itália, França, Espanha, Grécia, Portugal e outros países com culturas distintas, como China e Coreia.

Na Europa, Mafalda desde o início foi publicada com a tarja indicando que se tratava de “história em quadrinhos para adultos” – e não demorou a conquistar a simpatia dos intelectuais ligados aos movimentos sociais e aos partidos de Esquerda. Um dos primeiros a saudar a personagem como heroína rebelde foi o italiano Umberto Eco, mestre da Semiótica, que dedicou à criação de Quino um célebre ensaio, publicado pela primeira vez em 1969, em que destacava: “Mafalda leu, provavelmente, o Che Guevara...”







Mafalda em terras brasileiras



No Brasil, Mafalda apareceu primeiro sem periodicidade, como presença ocasional em charges reproduzidas no final da década de 1960 nas páginas do lendário Pasquim. Em 1972, também no Pasquim, foi saudada por Ziraldo: “Mafalda é uma personagem criada na América Latina que logrou obter uma fama universal; acho incrível que uma menina da classe média da Argentina tenha podido ter sucesso na Finlândia”.

A estreia oficial, sob contrato, aconteceria por aqui somente em 1972, nas páginas de uma revista infantil chamada Patota, publicada pela Editora Artenova em 27 edições mensais, entre 1972 e 1975, em coletâneas que incluíam outros personagens de autores na maioria norte-americanos, entre eles o guerreiro viking trapalhão Hagar, o Horrível (criado por Dik Browne), a dupla Frank e Ernest (de Bob Thaves), Snoopy e a turma do Charlie Brown (de Charles Schulz), além da presença ocasional de personagens brasileiros como o psiquiatra Doutor Fraud, criado por Renato Canini. Nos anos seguintes, Mafalda apareceria ocasionalmente em outros jornais e revistas brasileiros, por conta da comercialização de séries limitadas de charges e tirinhas, também por intermédio da Editora Artenova.




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Em 1982, a presença de Mafalda no Brasil ganharia um capítulo importante: com os direitos de publicação transferidos da Artenova para a Global Editora, os cartuns originais de Quino passaram a contar com uma parceria especialíssima na tradução e adaptação por um dos grandes nomes do humor e do cartum brasileiro, Henrique de Souza Filho, o Henfil (1944-1988), célebre por seu trabalho de resistência à ditadura militar e de apoio aos movimentos sociais com a Graúna, os Fradinhos, a Mãe e outras criações geniais que marcaram época.

A aventura de Mafalda em tradução de Mouzar Benedito e edição final de Henfil foi publicada em cinco livretos pela Global Editora, em preto e branco, exceto na capa, com formato de brochura horizontal em dimensões de em 14cm por 21cm. Os livretos, que alcançaram uma surpreendente vendagem de 30 mil exemplares na primeira edição, tiveram cinco números consecutivos, de fevereiro a julho de 1982, com 76 páginas e duas tirinhas por página. Em 1988, a trajetória de Mafalda em terras brasileiras passaria por outra transferência de editora e de tradução, desta vez com versões para o português por Monica Stahel para a Martins Fontes. A nova editora reeditou, em formato de livretos, todos os cartuns, até 1991, quando toda a saga da personagem lendária de Quino foi finalmente reunida no livro de capa dura “Toda Mafalda”.









Segredos de Mafalda: acima,
Quino em Buenos Aires, em

visita à exposição El Mundo Según
Mafalda, e na prancheta de trabalho,
em autorretrato dos anos 1970.

Abaixo, 
uma seleção das tirinhas
da Mafalda
em versão nacional,
em tradução e adaptação de
Mouzar Benedito e de Henfil; e uma
sequência de Quino em Buenos 
Aires,
fotografado por
Dario Lopez-Mills em 2014
na praça batizada em homenagem a Mafalda,
na abertura da exposição que celebrava
os 50 anos de criação da personagem,
nomeada El Mundo Según Mafalda 





                 

  
 
As versões de Quino



Mafalda também foi uma pioneira na abordagem de temas que não estavam em histórias em quadrinhos, tais como a repressão policial, as revoltas estudantis e as ditaduras que se multiplicavam na América Latina a partir da década de 1960. Também foi pioneira na temática do pacifismo, das questões de gênero, do feminismo e da novidade da ecologia. As grandes questões que a pequena Mafalda apresenta permanecem como perguntas sem resposta nos dias de hoje, assim como deixavam sem resposta sua mãe, Raquel, e seu pai, cujo nome nunca foi dito em nenhuma tirinha.

E há também a turma da Mafalda, com seus amigos que aparecem na sala de aula ou em sua vizinhança, estabelecendo um contraponto de diversidade que ressalta a singularidade e os questionamentos da protagonista. Na turma, os mais presentes são Suzanita, que sonha em ser mãe e esposa e nada mais, desdenhando qualquer avanço social ou os sonhos de liberdade desenhados pelas ousadias de Mafalda; Felipe, o sonhador que não consegue entender a realidade que Mafalda apresenta; Manolito, que tem a índole descontrolada de tubarão capitalista que quer devorar tudo; e Miguelito, que representa a ingenuidade mais infantil. Os caçulas são Liberdade, que sempre desafia os limites das autoridades, e Guille, o irmão mais novo de Mafalda, que surge como um bebê e depois vai crescendo no desenvolvimento das tirinhas, imitando alguns questionamentos da irmã e confessando sua paixão por Brigitte Bardot.

Mesmo com todo sucesso na Argentina e em outros países, Quino, o criador, decidiu acabar com a publicação das histórias da Mafalda em 1973, depois de publicar mais de 2 mil tirinhas e cartuns de apenas um quadro. Desde então, Quino ainda voltaria a desenhar Mafalda algumas poucas vezes, principalmente para promover campanhas sobre os Direitos Humanos – como aconteceu em 1976, quando Quino aceitou o convite para fazer um pôster para a UNICEF ilustrando a Declaração Universal dos Direitos da Criança.

Filho de imigrantes espanhóis, Quino nasceu em Mendoza, Argentina, em 1932, e mantém uma rotina discreta em Madri, Espanha, onde mora há duas décadas. Sempre avesso à curiosidade dos fãs de Mafalda e aos convites para participar de programas de TV, Quino abriu uma exceção no começo deste ano, quando foi anunciado vencedor do prestigiado Prêmio Príncipe das Astúrias, na Espanha, e concedeu uma longa entrevista à agência de notícias EFE.
















Na entrevista, Quino afirmou que permanece marxista e pessimista em relação à política, lembrou as situações que levaram à criação e ao sucesso de Mafalda, reconheceu que, para ele, a célebre e insolente garotinha é um "mais um desenho" e se autodefiniu como um carpinteiro que projetou um "móvel lindo".

"Eu sou como um carpinteiro que fabrica um móvel, e Mafalda é um móvel que fez sucesso, lindo, mas para mim continua sendo um móvel, e faço isto por amor à madeira em que trabalho", minimizou Quino, explicando que há décadas sofre de um problema de visão que o faz viver em um "mundo um pouco desfocado". Para surpresa do entrevistador, Quino também declarou que Mafalda não foi sua "melhor aliada" para dizer "o que queria e quando queria".















O futuro de Mafalda



"Meu melhor aliado fui eu mesmo, porque deixei de dizer muitas coisas que gostaria e não se podia dizer. Desde que cheguei a Buenos Aires com minha pastinha (em 1954), me disseram que não podia fazer desenhos sobre militares, sobre a igreja, o divórcio, a moral. Então me acostumei a desenhar as coisas que me permitiam", lembrou. Quino também reconheceu que a primeira encomenda para criar Mafalda pedia algo no estilo de Charlie Brown e a turma de Peanuts, a mais famosa criação de Charles Schulz (1922–2000).

"Copiei as cenas de minha rotina e de minha casa, e as pessoas gostaram, porque poucos desenhistas faziam isso. Charlie Brown me agrada muito, mas me parece um horror que não haja adultos. Em meu trabalho, apelava para as notícias do dia a dia, e escrevia sobre o que saía nos jornais. O mundo era assim. Eu não decidi e disse 'vou a fazer uma menina contestadora'. Não. Simplesmente saiu assim".





















Quino também declarou na entrevista à agência EFE que está consciente sobre o sucesso de Mafalda, que continua sendo uma personagem muito popular e muito querida no mundo todo, por leitores de todas as idades. Contudo, na conclusão da entrevista ele faz questão de dizer que não tem nenhuma ilusão sobre o que poderá acontecer com Mafalda no futuro.

"Não acredito que Mafalda ultrapasse as fronteiras da História e se transforme em algo parecido com a música de Mozart”, destacou Quino. “Haverá no futuro outras temáticas muito mais importantes do que as coisas que Mafalda disse há tanto tempo. Além disso, aparecerão muitos outros suportes de mídia que ainda não se conhece, outras muitas personagens, talvez mais interessantes. Hoje, olhando para o passado, penso que ou o mundo não evoluiu ou então a Mafalda é que sempre foi muito evoluída".


por José Antônio Orlando.



Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Segredos de Mafalda. In: Blog Semióticas, 14 de novembro de 2014. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2014/11/segredos-de-mafalda_14.html (acessado em .../.../…).










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