A condição mínima para
uma interpretação é substituir um
signo por outro signo
que, sob certo ponto de vista, possa ser
julgado
equivalente – sejam eles pertencentes a um mesmo
sistema
semiótico ou a sistemas semióticos diferentes.
– Umberto Eco, “O Código
do Mundo”
(Il Codice del Mondo, 1987).
O
italiano Umberto Eco (1932-2016), mestre da Semiótica e um dos
principais pensadores e escritores de nossa época, morreu na noite de ontem em sua casa em Milão, aos 84 anos. Eu e seus milhares de leitores e admiradores, talvez milhões, espalhados pelos continentes do planeta, sofremos com a notícia, como se perdêssemos alguém muito próximo, um parente, um professor querido. Agora pela manhã recebo o pedido para escrever um artigo sobre ele para um jornal de Belo Horizonte, com a pauta destacando que o artigo deve centrar o comentário em algum aspecto mais popular sobre a obra e não sobre a morte do autor, porque será publicado na edição de amanhã junto com obituários das agências de notícias. Também respondi há pouco a uma entrevista por telefone, para o jornal "Correio Braziliense", porque por coincidência o mesmo repórter Rodrigo Craveiro havia me entrevistado em 2015 depois que o mestre Umberto Eco passou a me seguir no Twitter e escreveu em exatos 140 caracteres um elogio para este meu blog Semióticas. Do jornal de Brasília também veio a encomenda de um artigo sobre algum aspecto específico da obra complexa e enciclopédica do mestre.
Pelos obituários e reportagens que encontro na Internet nos sites e portais da imprensa internacional, muitos artigos destacam a trajetória de Eco como professor, como teórico dos mais celebrados nos diversos campos do saber e sua obra literária, os sete romances que publicou e que bateram recordes de vendas em diversos países e línguas. Um aspecto prosaico da extensa trajetória do mestre, contudo, não foi destacado nas reportagens que consultei, motivo pelo qual foi o meu tema escolhido para redigir este breve artigo sob encomenda: Eco também teve papel pioneiro ao destacar o valor e a importância da Mafalda, a garotinha contestadora inventada pelo cartunista argentino Joaquín Salvador Lavado Tejón, mais conhecido como Quino. Com o crescente sucesso de público da pequena Mafalda em seu país de origem, desde 1964, as tirinhas não demoraram a ser reunidas em livros que logo cruzaram as fronteiras da Argentina e passaram a ser conhecidos no Brasil e em outros países da América Latina e também de outros continentes. Na Europa, Mafalda desembarcou primeiro na Itália, por influência direta de Umberto Eco.
Pelos obituários e reportagens que encontro na Internet nos sites e portais da imprensa internacional, muitos artigos destacam a trajetória de Eco como professor, como teórico dos mais celebrados nos diversos campos do saber e sua obra literária, os sete romances que publicou e que bateram recordes de vendas em diversos países e línguas. Um aspecto prosaico da extensa trajetória do mestre, contudo, não foi destacado nas reportagens que consultei, motivo pelo qual foi o meu tema escolhido para redigir este breve artigo sob encomenda: Eco também teve papel pioneiro ao destacar o valor e a importância da Mafalda, a garotinha contestadora inventada pelo cartunista argentino Joaquín Salvador Lavado Tejón, mais conhecido como Quino. Com o crescente sucesso de público da pequena Mafalda em seu país de origem, desde 1964, as tirinhas não demoraram a ser reunidas em livros que logo cruzaram as fronteiras da Argentina e passaram a ser conhecidos no Brasil e em outros países da América Latina e também de outros continentes. Na Europa, Mafalda desembarcou primeiro na Itália, por influência direta de Umberto Eco.
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Na
Italía, os direitos de publicação da Mafalda foram comprados
pela Casa Editrice Valentino Bompiani, que também editava os livros
de Eco desde 1962, quando foi publicado seu primeiro grande sucesso
editoral, “A Obra Aberta” – o quarto livro que publicou, depois
de “O Problema Estético em Santo Tomás de Aquino” (“Il
Problema Estetico in San Tommaso”, Torino: Edizioni di Filosofia,
1956), “Filosofia na Liberdade” (“Filosofia in Libertà”,
Torino: Edizioni Taylor, 1958) e “Arte e Beleza na Estética
Medieval” (“Sviluppo dell'Estetica Medievale”, Milano: Edizioni
Marzorati, 1959). Importante dizer que estes livros da trajetória inicial de Eco tornaram-se obras de referência desde a primeira edição, assim como aconteceria com dezenas de livros que ele publicou nas décadas seguintes.
Eco permaneceu publicando seus livros pela Bompiani até 2015, quando foi lançado seu sétimo e último romance, “Número Zero” – uma crítica feroz ao mau jornalismo e à manipulação de notícias apresentada através de um jornal fictício criado para mentir, distorcer, caluniar e chantagear autoridades e pessoas comuns. Na editora Bompiani, Eco publicou cerca de 50 livros de ensaios e estudos teóricos que são considerados obras de referência, três livros de literatura infanto-juvenil e seus sete romances. Contudo, depois da publicação de “Número Zero”, a Bompiani foi comprada pelo grupo Mondadori, controlado pela família Berlusconi. Em protesto, Eco e outros grandes nomes da literatura italiana tomaram a decisão de romper com a Bompiani e criaram uma nova editora, a La Nave di Teseo, batizada em homenagem ao mítico rei de Atenas na Antiguidade.
O primeiro livro da nova editora será também a primeira publicação póstuma de Eco: “Pape Satàn Aleppe”, que pode ser traduzido como “o Papa é adversário de Satanás” – com o subtítulo “Crônicas de uma sociedade líquida” – será lançado nos próximos dias, na Itália, reunindo uma coletânea de artigos que Eco publicou na revista semanal italiana “L'Espresso”. O enigmático título do novo livro retoma as palavras que abrem o primeiro verso do Canto VII do Inferno, da “Divina Comédia”, de Dante Alighieri, poeta da Idade Média e forte referência para o autor de “O Nome da Rosa”. “Pape Satàn Aleppe” tem a maioria dos ensaios e crônicas no tema da política, questão que sempre esteve presente nos escritos de Eco. Um de seus ensaios mais conhecidos aborda o perigo do fascismo, “O fascismo eterno”, publicado no Brasil no livro “Cinco escritos morais”, lançado em 2002 pela Editora Record.
Eco permaneceu publicando seus livros pela Bompiani até 2015, quando foi lançado seu sétimo e último romance, “Número Zero” – uma crítica feroz ao mau jornalismo e à manipulação de notícias apresentada através de um jornal fictício criado para mentir, distorcer, caluniar e chantagear autoridades e pessoas comuns. Na editora Bompiani, Eco publicou cerca de 50 livros de ensaios e estudos teóricos que são considerados obras de referência, três livros de literatura infanto-juvenil e seus sete romances. Contudo, depois da publicação de “Número Zero”, a Bompiani foi comprada pelo grupo Mondadori, controlado pela família Berlusconi. Em protesto, Eco e outros grandes nomes da literatura italiana tomaram a decisão de romper com a Bompiani e criaram uma nova editora, a La Nave di Teseo, batizada em homenagem ao mítico rei de Atenas na Antiguidade.
O primeiro livro da nova editora será também a primeira publicação póstuma de Eco: “Pape Satàn Aleppe”, que pode ser traduzido como “o Papa é adversário de Satanás” – com o subtítulo “Crônicas de uma sociedade líquida” – será lançado nos próximos dias, na Itália, reunindo uma coletânea de artigos que Eco publicou na revista semanal italiana “L'Espresso”. O enigmático título do novo livro retoma as palavras que abrem o primeiro verso do Canto VII do Inferno, da “Divina Comédia”, de Dante Alighieri, poeta da Idade Média e forte referência para o autor de “O Nome da Rosa”. “Pape Satàn Aleppe” tem a maioria dos ensaios e crônicas no tema da política, questão que sempre esteve presente nos escritos de Eco. Um de seus ensaios mais conhecidos aborda o perigo do fascismo, “O fascismo eterno”, publicado no Brasil no livro “Cinco escritos morais”, lançado em 2002 pela Editora Record.
A
primeira edição de Mafalda em livro, no continente europeu, foi
publicada na Itália pela Bompiani em 1969 com uma tarja indicando que se
tratava de “história em quadrinhos para adultos”. A edição
também incluiu um texto de apresentação de Umberto Eco, “Mafalda
ou a recusa”, que chamou imediatamente a atenção de pesquisadores
acadêmicos para aquela personagem criada por Quino. Não demorou muito
para Mafalda também conquistar França, Espanha, Portugal e outros
países, ganhando a simpatia de leitores de todas as idades e dos
intelectuais ligados aos movimentos
sociais e aos partidos políticos de Esquerda. Detalhe da maior importância:
nos Estados Unidos e na Inglaterra, terra natal dos Beatles, que Mafalda ama de paixão, ela continua ainda hoje inédita e
desconhecida para o grande público.
“Mafalda leu, provavelmente, o Che Guevara” –
destaca Eco no breve ensaio publicado como apresentação às
tirinhas reunidas no livro de 1969, “Mafalda, La Contestataria”,
comparando Mafalda com o norte-americano Charlie Brown, criação de
Charles Schulz (1922-2000), e com a geração de jovens contestadores
que marcou a explosiva década de 1960. Mafalda voltaria à pauta de
vários outros ensaios e artigos que Eco publicou em jornais, revistas e
livros, como objeto direto de análise ou apenas como citação. Mas este primeiro ensaio que ele dedicou à personagem criada por Quino tem o
mérito de ter sido uma carta de apresentação da garotinha zangada
e inconformista para milhões de leitores – entre os quais eu também estou
incluído.
Estive
uma única vez com o mestre Umberto Eco. Foi na década de 1990,
durante uma rápida visita do professor da Universidade de Bologna ao Campus
da UFMG, em Belo Horizonte. Deveria ter sido uma entrevista, conforme estava marcado previamente com o cerimonial, mas um atraso levou ao
cancelamento de vários compromissos do mestre agendados para aquele dia. Restou apenas a
alegria de um breve encontro e da conversa muito rápida e emocionada que
tive com ele, interrompidos a cada minuto pela intérprete que o
acompanhava e pelos assessores do cerimonial, enquanto caminhávamos
de um prédio a outro, a caminho do auditório da reitoria, onde Eco
apresentaria uma conferência.
Lembro
que fiquei até altas horas, na noite anterior, fazendo e refazendo o
roteiro para a entrevista, folheando livros e ensaiando repetidas
vezes a pronúncia de algumas frases com meu italiano mínimo e
instrumental. A decepção pelo imprevisto do cancelamento da entrevista foi logo
substituída pela expectativa da conversa informal na curta
caminhada, com o mestre cordial e bem-humorado elogiando a música e
a literatura do Brasil – especialmente os clássicos da Bossa Nova
e, por recomendação de seus amigos brasileiros de longa data Haroldo de Campos, Augusto de Campos e
Décio Pignatari, os escritos de Oswald de Andrade, que naquela época
ele estava descobrindo, “felicíssimo”, segundo comentou.
Ele
também fez elogios ao português falado pelos brasileiros, em comparação ao de Portugal, e à força criativa da cultura popular que havia encontrado
de norte a sul do Brasil, nas várias viagens que fez, a passeio, e
nas cidades em que esteve para compromissos acadêmicos e palestras.
Já estávamos no auditório da reitoria quando arrisquei uma última
pergunta sobre as suas incursões nos rituais do Candomblé em Salvador, na Bahia, que
o deixaram encantado nas visitas anteriores ao Brasil, mas não houve
tempo para a resposta. Em homenagem a Umberto Eco, mestre dos
mestres, transcrevo a seguir o ensaio
que ele dedicou a Mafalda em 1969. Fiz a tradução a partir do
original em italiano que foi publicado no livro “Mafalda, La
Contestataria”. Eis, a seguir, a íntegra do ensaio de Eco sobre Mafalda.
Mafalda
ou a recusa
Mafalda
não é apenas uma nova personagem dos quadrinhos: é a personagem
dos anos 1960. Se para a definir se utilizou o adjetivo
“contestadora” não foi para a alinhar a qualquer preço na moda
do anti-conformismo. Mafalda é, de fato, zangada – e recusa o mundo
tal como ele é.
Para compreender Mafalda é necessário estabelecer um paralelo com outro grande personagem: Charlie Brown. Ele é norte-americano, Mafalda é sul-americana (o seu autor, Quino, é argentino). Charlie Brown pertence a um país próspero, a uma sociedade opulenta na qual procura desesperadamente integrar-se mendigando solidariedade e felicidade. Mafalda pertence a um país cheio de contrastes sociais que, no entanto, quer fazer dela integrada e feliz, coisa que Mafalda recusa, afastando todas as tentativas.
Para compreender Mafalda é necessário estabelecer um paralelo com outro grande personagem: Charlie Brown. Ele é norte-americano, Mafalda é sul-americana (o seu autor, Quino, é argentino). Charlie Brown pertence a um país próspero, a uma sociedade opulenta na qual procura desesperadamente integrar-se mendigando solidariedade e felicidade. Mafalda pertence a um país cheio de contrastes sociais que, no entanto, quer fazer dela integrada e feliz, coisa que Mafalda recusa, afastando todas as tentativas.
Charlie
Brown vive no seu universo infantil de onde, rigorosamente, os
adultos estão excluídos (apesar de as crianças aspirarem a
comportar-se como adultos), enquanto Mafalda vive em contínua
contradição com o mundo adulto, que não estima nem respeita, antes
pelo contrário, ridiculariza e rejeita, reivindicando o seu direito
a permanecer uma menina que não quer assumir o mesmo universo adulto
dos pais. Charlie Brown leu, evidentemente, os “revisionistas”
de Freud e busca uma harmonia perdida. Mafalda leu, provavelmente, o
Che Guevara.
Na verdade, Mafalda tem ideias confusas sobre política, não consegue perceber o que se passa na Guerra do Vietnã, não sabe por que existem pobres, desconfia dos governos, desconfia dos chineses. Mas de uma coisa ela tem certeza: não está satisfeita.
Ao redor
de Mafalda, há um pequeno grupo de personagens mais
“unidimensionais”: Manolito, o menino plenamente integrado num
capitalismo de bairro, que tem a certeza absoluta de que, no mundo, o
valor essencial é o dinheiro; Filipe, o sonhador tranquilo;
Susaninha, a doente de amor maternal, perdida nos seus sonhos
pequeno-burgueses. E, depois, os pais de Mafalda, resignados, que
aceitaram a rotina diária (com o recurso ao paliativo farmacêutico
de algum medicamento) e, além disso, vencidos pelo tremendo destino
que fez deles os guardiões da Contestadora...
O universo de Mafalda não é apenas o de uma América Latina urbana e evoluída; é também, de um modo geral e em muitos aspectos, um universo latino, e isso faz com que ela surja mais compreensível para nós do que muitos personagens dos quadrinhos norte-americanos. Enfim: Mafalda é, em todas as situações, “um herói do nosso tempo” – e isto não parece uma qualificação exagerada para a pequena personagem de papel e tinta que Quino propõe.
O universo de Mafalda não é apenas o de uma América Latina urbana e evoluída; é também, de um modo geral e em muitos aspectos, um universo latino, e isso faz com que ela surja mais compreensível para nós do que muitos personagens dos quadrinhos norte-americanos. Enfim: Mafalda é, em todas as situações, “um herói do nosso tempo” – e isto não parece uma qualificação exagerada para a pequena personagem de papel e tinta que Quino propõe.
Ninguém nega que histórias
em quadrinhos sejam (quando atingem um certo nível de qualidade)
questionadoras de hábitos e de costumes – e Mafalda reflete as
tendências de uma juventude inquieta que assumem, aqui, o aspecto de
uma dissidência infantil, de um esquema psicológico de reação aos
meios de comunicação de massa, de uma urticária moral provocada
pela lógica dos blocos, de asma intelectual provocada pelo cogumelo
atômico. Já que os nossos filhos se vão tornar – por escolha
nossa – outras tantas Mafaldas, será prudente tratarmos Mafalda
com o respeito que merece um personagem real. (Umberto Eco)
Traduzido e
editado por José Antônio Orlando.
Como
citar:
ORLANDO,
José Antônio. Umberto Eco e Mafalda. In: Blog
Semióticas,
20 de fevereiro de 2016. Disponível no link
http://semioticas1.blogspot.com/2016/02/umberto-eco-e-mafalda.html
(acessado
em
.../.../…).
Veja
também Semióticas: Segredos de Mafalda
Na biblioteca do Mestre dos Mestres:
um passeio com Umberto
Eco na biblioteca
de sua casa em Milão, Itália, em fotografias de setembro de 2007 por Leonardo Cendamo |