Seu
forte sotaque caipira misturado a expressões e
linguajares dos imigrantes italianos produziu uma prosódia
personalíssima e muito familiar ao imaginário popular: histórias
tristes de perdas, carência afetiva, abandono, traição, despejo,
pobreza e desassossego. Compaixão e amargura, contudo, ganham um
indisfarçável tom de pândega e de ritmo irresistível nas
irreverentes canções de João Rubinato, cantor, compositor, ator e
comediante de primeira, vaidoso da juventude às últimas vezes em
que foi fotografado, sempre posando de terno, gomalina no cabelo,
chapéu de lado, gravata borboleta e caixa de fósforos nas mãos.
Sétimo
filho do casal Fernando e Emma, que migraram da Itália para São
Paulo, João Rubinato deixaria sua marca na cultura brasileira sob um
codinome que ele próprio inventou – Adoniran Barbosa (1910-1982).
Sua trajetória é feita de mudanças: nasce na cidade de Valinhos,
mas em seguida vai com a família para Jundiaí. Aos 14 anos, troca a
escola pelo trabalho e segue outra mudança da família, agora para
Santo André, na Grande São Paulo. Aos 22 anos vai para a capital,
onde trabalha como vendedor de tecidos. Em seguida, toma gosto pela
música e pelas participações em programas de calouros no rádio.
É
nessa época que o filho caçula, chamado de Joanin pela família,
também muda de nome: Adoniran era o nome de seu melhor amigo e
Barbosa foi uma homenagem ao cantor Luís Barbosa, seu ídolo. O
primeiro destaque aconteceu em 1934, quando conquistou com “Dona
Boa”, feita em parceria com J. Aimberê, o primeiro lugar no
concurso carnavalesco da prefeitura de São Paulo. Anos depois é
convidado para trabalhar como ator cômico, locutor e discotecário
na Rádio Record, mas o primeiro sucesso só viria em 1955, com
“Saudosa Maloca”, duas décadas após aquele primeiro prêmio.
Lembranças de Adoniran Barbosa:
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Rubinato e os Demônios da Garoa
O
conjunto Demônios da Garoa, que fez a primeira gravação de
“Saudosa Maloca”, passaria desde então a ser inseparável dos
grandes êxitos de Adoniran, com arranjos vocais cheios de
onomatopeias e breques com dramatizações que ironizam o sotaque
italianado de bairros paulistanos como Brás e Barra Funda. Outros
intérpretes que imortalizaram canções de Adoniran mantiveram essa
marca do compositor em suas parcerias com os Demônios da Garoa –
entre eles Elis Regina, que gravou em 1980 a antológica “Tiro ao
Álvaro”, uma das últimas composições de João Rubinato.
Foi
nessa época, dois anos antes de morrer, que Adoniran recebeu uma
bela e comovente homenagem produzida por Fernando Faro. Para marcar
os 70 anos do compositor, o próprio Adoniran retornou aos estúdios
para gravar um disco de parcerias inéditas, cantando ao lado de
grandes nomes da música brasileira suas mais famosas composições,
incluindo, entre outras, “Tiro ao Álvaro” (com Elis Regina),
“Bom Dia Tristeza” (com Roberto Ribeiro), “Viaduto Santa
Ifigênia” (com Carlinhos Vergueiro), “Aguenta a Mão, João”
(com Djavan), “Vila Esperança” (com MPB4), “Iracema” (com
Clara Nunes), “Despejo na Favela” (com Gonzaguinha) e “Torresmo
à Milanesa” (com Clementina de Jesus e Carlinhos Vergueiro).
No
encarte daquele disco, que foi relançado em CD pela EMI com o título
“Adoniran Barbosa e Convidados”, Fernando Faro escreve sobre
Adoniran e seu hobby de fabricar brinquedos. É um comentário breve,
poético, que também pode ser lido como uma interpretação sobre
suas canções mais conhecidas. “Buscando fundo na memória,
ouvindo de vez em quando os amigos, e percorrendo ruas e bares, ele
vai refazendo pedaço a pedaço, sem muita ordem, utilizando o metal,
a madeira, os fios, e também a palavra e o samba, a humana e muito
doce paisagem dessa cidade – uma cidade que muda a cada minuto, e
se deforma e se reforma, e se transfigura. É São Paulo que ele
constrói. Ou reconstrói".
Três
décadas sem Adoniran
Oito
anos antes do disco, considerado um dos melhores na discografia de
Adoniran, Fernando Faro também gravou com ele um programa memorável
da série “MPB Especial” na TV Cultura. O programa, com uma hora
de duração e em preto e branco, que apresenta Adoniran cantando e
falando de momentos marcantes da carreira, foi lançado em DVD
pela Biscoito Fino na série dedicada aos nomes que passaram na
verdade por outro programa, o “Ensaio”, também apresentado e
dirigido por Fernando Faro na TV Cultura.
Entre
outras histórias, algumas melancólicas, outras hilariantes,
exatamente como nas melhores canções de Adoniran, o compositor
reconhece, no programa de Fernando Faro, que andava triste e
esquecido quando uma campanha publicitária da cerveja Antarctica
comprou os direitos para usar um dos seus antigos bordões – “nós
viemos aqui pra beber ou pra conversar?” Adoniran recorda que foi
“vapt-vupt”: o bordão caiu no gosto popular, trouxe de volta à
mídia o compositor de “Saudosa Maloca” e ainda alavancou as
vendas da cervejaria.
Além
do programa na TV Cultura, outro registro memorável com Adoniran foi
o especial de Elis Regina que a TV Bandeirantes exibiu em 1978, com
direção de Roberto de Oliveira e Sueli Valente. Elis visita
Rita Lee numa discoteca e depois mostra imagens das novelas e dos
principais filmes da trajetória de Adoniran como ator (entre eles “O
Cangaceiro”, de 1953, “Candinho”, de 1954, e “A Carrocinha”,
de 1955), antes de sair passeando e cantando com o próprio Adoniran
nos cenários que inspiraram suas mais conhecidas canções.
Autor
de clássicos imbatíveis que as pessoas comuns têm na ponta da
língua, como “Trem das Onze” e outras dezenas de grandes
sucessos que permanecem há mais de meio século na memória
nacional, Adoniran, que morreu há 30 anos, em 23 de setembro de
1982, tem recebido tímidos tributos desde então. Como a maior parte
de sua discografia permanece fora de catálogo, um CD com gravações
inéditas de seu repertório por novatos e veteranos da MPB em 2010,
ano de seu centenário, foi a homenagem mais destacada em décadas
para o artista que melhor retratou as histórias e os personagens
paulistanos.
Tributos e estudos biográficos
Vida
e obra do compositor, que nos últimos anos de vida passava os dias
fabricando brinquedos artesanais e tinha orgulho de ser corintiano
doente, também foram lembradas em três estudos biográficos:
“Adoniran – Uma Biografia” (Editora Globo, 2010), de Celso de
Campos Jr.; o livro em formato de agenda permanente “Adoniran
Barbosa” (Editora Anotações com Arte, 2010), de Fred Rossi; e
“Pascalingundum! – Os eternos Demônios da Garoa” (Editora do
Autor, 2009), de Assis Ângelo, uma biografia do conjunto que está
na estrada há mais de 60 anos, mas que também destaca Adoniran em
primeiro plano.
Dos
três, o livro de Celso de Campos Jr. tem o maior fôlego: resgata
minúcias da trajetória de Adoniran através de mais de 80
entrevistas e extensa pesquisa em arquivos públicos, em bancos de
dados de jornais e no vasto acervo pessoal do Museu Adoniran Barbosa,
esquecido nos subterrâneos da antiga sede do Banco de São Paulo.
Para resgatar a trajetória do compositor, cantor, ator, artista de
circo, poeta, o biógrafo parte da lenda de São Paulo como “túmulo
do samba” para situar Adoniran como síntese da fala popular da
cidade – o que fez com que ele alcançasse a proeza de criar versos
que são ainda hoje reconhecidos por todos.
“Selecionar
o repertório de Adoniran não é difícil, porque ele tem uma
coleção de canções que todo mundo gosta e canta junto de
memória”, apontou o produtor Thiago Marques Luiz em entrevista que
fiz com ele por telefone, na época do lançamento do CD. Assim como
fez no final de 2009 com as canções do mineiro Ataulfo Alves,
Thiago também realizou um eclético tributo ao centenário
compositor paulista. “Adoniran 100 Anos”, lançado pela gravadora
Lua Music, reúne uma bela coletânea de gravações inéditas.
Além
do valor da homenagem, que atualiza os grandes sucessos do
compositor, o tributo a Adoniran colocou lado a lado novos nomes –
como Verônica Ferriani, Márcia Castro, Mateus Sartori – e
veteranos de gêneros variados da música brasileira, do samba de
Jair Rodrigues, Leci Brandão, Eduardo Gudin, Cristina Buarque e
Thobias da Vai-Vai ao pop-rock de Zélia Duncan, Arnaldo Antunes,
Edgar Scandurra, e daí à vanguarda paulistana (Cida Moreira, Vânia
Bastos, Tetê Espíndola, Virginia Rosa, Passoca, Laert Sarrumor) e a
medalhões da MPB como Demônios da Garoa, Cauby Peixoto, Célia,
Wanderléa, Maria Alcina e Dominguinhos.
Justiça ao talento
Entre
os grandes sucessos e pérolas pouco conhecidas de Adoniran, o
tributo da Lua Music faz justiça ao talento do compositor e
impressiona tanto pela qualidade das interpretações, quanto pela
variedade de artistas envolvidos. “Nossa prioridade foi convidar
grandes cantores que nunca tinham gravado o repertório de Adoniran”,
explica Thiago. Cada artista, ele conta, teve total liberdade para a
interpretação e os arranjos. Algumas das releituras são radicais,
outras se mantêm apenas respeitosas.
Entre
as mais surpreendentes, Arnaldo Antunes e Edgard Scandurra
desconstroem a cadência festiva de “Trem das Onze”, transformada
em experimento para guitarra, voz e percussão (por Guilherme
Kastrup). Tetê Spíndola e Markinhos Moura também retornam em
grande estilo. Ela, no registro habitual de agudos, na sempre
comovente “Iracema”. Ele, com um tom quase feminino em “Despejo
na Favela”, que faz lembrar à primeira audição a extensão vocal
de Elis Regina.
Mart’nália
(com “As Mariposas”), Zélia Duncan (“Tiro ao Álvaro”) e
Maria Alcina (“Um Samba no Bixiga” e “Plac Ti Plac”) também
brilham, assim como Wanderléa e Thomas Roth, reunidos na releitura
de “Samba do Arnesto”. “O Adoniran é sim o mais paulista dos
compositores e também um dos maiores da música brasileira em todos
os tempos”, destaca Thomas Roth, cantor, compositor, dono da Lua
Music e popular no Brasil inteiro por conta da presença nas bancadas
de jurados dos programas de TV “Ídolos” (2006 e 2007), “Astros”
(2008 e 2009) e atualmente no ar no “Qual É o Seu Talento?” do
SBT.
“O
lugar e a importância de Adoniran vão além do samba e muito além
de São Paulo. Ele foi incomparável pelo talento, pela originalidade
e pela capacidade de transformar em canções de sucesso frases e
expressões de tipos característicos da vida paulistana. Ele foi o
primeiro e o melhor a fazer construções eminentemente populares, em
uma época em que o academicismo e a língua culta prevaleciam e
davam o tom. Adoniran é único e permanece, rigorosamente, no
primeiro time da MPB”, completa Roth.
Não
se pode negar, afinal, que Adoniran é uma figura dessas que têm
lugar cativo no imaginário popular. “Série única, edição
esgotada”, como define com propriedade Fernando Faro. Na fronteira
entre o fraseado caipira e o sotaque italianado, falando em
“lâmpida”, “progréssio”, tiro ao “álvaro”, fez sambas
que no humor e no balanço não lembram em nada os clássicos dos
bambas do Rio ou da Bahia. As belas canções de Adoniran se mantêm
como as mais completas traduções dos cenários e dos tipos mais
entranhados da Paulicéia, mesmo para quem não mora em São Paulo ou
não conhece o Viaduto Santa Ifigênia, a Avenida São João e o
Jaçanã.
por José
Antônio Orlando.
Como
citar:
ORLANDO,
José Antônio. Tiro
ao Álvaro.
In: Blog
Semióticas,
20
de junho
de
2012.
Disponível no link
http://semioticas1.blogspot.com/2012/06/tiro-ao-alvaro.html (acessado
em .../.../...).
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Trecho do livro 'Adoniran - Uma Biografia'
Mas,
para azar da família, o que João Rubinato almejava estava próximo
demais da sua rota de trabalho. Como o jovem não era de resistir a
tentações, as estações de rádio paulistanas, que despontavam
como a coqueluche da época, ganharam um assíduo frequentador. As
ondas sonoras desviavam o vendedor da labuta e o carregavam para as
sedes das emissoras Cruzeiro do Sul, no largo da Misericórdia,
Record, na praça da República, e Rádio São Paulo,
recém-inaugurada na rua 7 de Abril. Além de acompanhar os
programas, o rapaz procurava acomodar-se nos bares e botecos onde os
funcionários das estações recarregavam as baterias. Entre uma
branquinha e outra, acabaria conhecendo figuras já consagradas no
meio radiofônico local, como o locutor Nicolau Tuma, os maestros Gaó
e José Nicolini e os cantores Januário de Oliveira e Raul Torres.
Em
pleno horário de expediente, usava sua lábia não para empurrar
mercadorias aos comerciantes, mas para convencer os cartazes do rádio
de que também ele poderia fazer e acontecer diante de um microfone.
Não demorou para que o admirador de Noel Rosa e Carlos Gardel, dono
de uma voz que poderia ser classificada entre o regular e o sofrível
– mais para o sofrível –, se enturmasse com os artistas. De
tanto insistir, recebeu em 1934 o convite para participar do programa
Calouros do Rádio, pioneira criação do produtor Celso Guimarães
para a Rádio Cruzeiro do Sul. João estava radiante: era a
oportunidade que pedira a Deus. Cheio de prosa, foi escolher o terno,
a gravata e comprar um pote extra de gomalina para ajeitar os
cabelos. Tinha de ficar na estica para aquele sábado.
Extraído
do primeiro capítulo
de Adoniran
– Uma Biografia,
de
Celso de Campos Jr. Abaixo, Adoniran
na
plataforma da Estação Jaçanã em 1965
e no Viaduto do Chá, em 1980,
em fotografia de Pedro Martinelli