Quero
dizer que Noel Rosa estava tão vivo para mim que nem parecia que eu chegava ao Rio um ano depois da morte dele. Eu cheguei ao Rio em 1938 e Noel morreu em
1937. Eu sentia Noel vivo no Rio. No
rádio, era a mesma coisa.
–– Dorival
Caymmi (1914-2008). |
Poucos meses depois da morte do mestre do samba Noel Rosa (1910-1937), nasceu Martinho
José Ferreira, em fevereiro de 1938. Divulgada em primeira
mão pelo rádio, a morte prematura por tuberculose, no auge do
sucesso do compositor, letrista, violinista e cantor, provocou uma
comoção popular. Nascido e criado no bairro carioca de Vila Isabel,
Noel, o poeta da Vila, teve uma breve e vertiginosa trajetória de
apenas sete anos de carreira artística e morreu aos cabalísticos
27 anos, em decorrência de complicações de tuberculose. Mas foi tempo suficiente para que suas composições
revolucionassem a música e a cultura brasileira. Noel deixou cerca
de 300 canções em que captou, como poucos, a poesia, o lirismo, o
humor e as cenas prosaicas de sua época e de seu bairro de louvação.
Gravado
por grandes nomes de sucessivas gerações da música brasileira
desde a estreia de sua primeira composição, "Minha Viola",
de 1929, no seu centenário de nascimento o compositor genial recebeu celebrações de homenagens e tributos – e uma das homenagens veio de outro mestre de Vila Isabel, aquele que nasceu poucos meses depois da morte de Noel. Em
"Poeta da Cidade" (Biscoito Fino), Martinho José Ferreira,
consagrado há mais de meio século no Brasil inteiro como Martinho da Vila, reúne um time de bambas
para interpretar uma seleção de sucessos e de raridades de Noel Rosa.
"Noel foi
um compositor genial com capacidade rara para unir texto e melodia",
aponta Martinho, em entrevista por telefone, do Rio de Janeiro. "Com
Noel, ritmo e rima se misturam com uma originalidade ainda hoje
impressionante. Mas gosto muito também de destacar que Noel era uma
espécie de relações públicas e de embaixador da boa vizinhança
entre as rodas de boêmia e de samba de vários bairros cariocas".
"É preciso destacar na sua matéria que Noel foi um pioneiro", alerta Martinho. Interrompi para lembrar também da importância de Carmen Miranda, que participou do processo de popularização do samba e dos compositores negros dos morros cariocas ainda no começo da década de 1930, quando estava em vigor a bizarra lei baixada pelo presidente Epitácio Pessoa em 1920, que proibia os negros de fazerem parte da seleção brasileira de futebol e de transitarem pelos lugares frequentados pela elite.
"É preciso destacar na sua matéria que Noel foi um pioneiro", alerta Martinho. Interrompi para lembrar também da importância de Carmen Miranda, que participou do processo de popularização do samba e dos compositores negros dos morros cariocas ainda no começo da década de 1930, quando estava em vigor a bizarra lei baixada pelo presidente Epitácio Pessoa em 1920, que proibia os negros de fazerem parte da seleção brasileira de futebol e de transitarem pelos lugares frequentados pela elite.
"Mas é isso
mesmo, muito bem lembrado. Noel teve esse destaque, junto com Carmen
Miranda. Pelo que sabemos, eles quebraram muitos preconceitos. Foram
os primeiros a desafiar a elite carioca ao subir para as favelas e
abraçar parcerias com os ilustres desconhecidos que eram os
compositores negros das comunidades. Ele e Carmen, respeitosamente, levaram a classe
média e o rádio a descobrirem o samba e os compositores dos morros
cariocas", completa.
Martinho canta Noel
"Poeta
da Cidade", o CD, que tem por subtítulo "Martinho Canta
Noel", marca a estreia de Martinho da Vila na gravadora Biscoito
Fino e retoma a parceria do cantor e compositor com Rildo Hora, que
foi produtor de vários clássicos de sua extensa discografia. Exatos
oito anos depois da última parceria, Rildo Hora retornou à equipe
de trabalho de Martinho para assinar a produção e a direção do
projeto, que tem direção geral de Kati Almeida Braga, direção
artística de Olívia Hime e gerência de produção de Martinho
Antônio, filho de Martinho, que depois de integrar a banda do pai
passou à produção e atualmente faz parte da equipe técnica da
gravadora.
"O
projeto nasceu a partir de um convite de uma universidade particular
do Rio, que queria preparar uma publicação com convidados de várias
áreas da cultura apresentando estudos sobre Noel Rosa e sua obra
musical. O disco seria um bônus, que viria encartado na publicação.
Acontece que o livro atrasou e o CD acabou sendo incorporado como
projeto independente da Biscoito Fino, foi finalizado e agora chega
às lojas", explica Martinho, entremeando a entrevista com
trechos cantarolados de antigas canções de Noel que hoje não estão
entre as mais conhecidas e que na época foram grande sucesso no
rádio e no carnaval.
Diante
do extenso repertório de mais de 300 canções do compositor de "Com
que roupa?", celebradas e relidas há décadas como clássicos
imbatíveis da música popular, Martinho e equipe partiram de um
recorte original: gravar para o CD aquelas músicas feitas somente
por Noel e deixar de fora algumas daquelas que são as mais populares
e que foram compostas por ele e seus parceiros habituais.
"É
uma proposta de certa forma radical, porque deixou de fora grandes
medalhões que são as composições muito conhecidas pelo público,
que Noel fez em parcerias ilustres com Vadico, João de Barro e
Heitor dos Prazeres, entre muitos outros", reconhece Martinho –
enquanto canta ao telefone trechos de tantas e tantas belas canções
que foram excluídas do projeto, como "Conversa de Botequim",
"Feitio de Oração" e "Pastorinhas", parcerias
de Noel com os citados Vadico, João de Barro e Heitor dos Prazeres.
O
critério de seleção acabou incluindo pérolas raras, que não
costumam estar nas coletâneas produzidas sobre a obra do mestre,
como "Minha Viola", agora gravada por Martinho e
Mart'nália. Na avaliação de Martinho, pesquisador atento e
autor de livros sempre elogiados, Noel Rosa é um dos poucos mestres
da cultura brasileira que tem seu valor sempre reconhecido e
atualizado há várias gerações.
"De
todos os pioneiros da música brasileira no início do século 20,
Noel é um dos poucos que estão presentes até hoje no imaginário
das pessoas comuns, que sabem cantar os versos de várias de suas
canções na ponta da língua", destaca Martinho. Carioca da
gema, morador de Vila Isabel e pai de oito filhos, ele conta com
orgulho que cinco dos filhos estão com ele sempre no palco.
Três
filhos do sambista marcam presença em "Poeta da Cidade":
Martinho Filho, que assina a gerência de produção pela Biscoito
Fino; Mart'nália, que divide com o pai os vocais em "Minha
Viola" e em "Rapaz Folgado"; e Maíra Freitas, que
defende "Último Desejo" e também participa com a
concepção de arranjos e ao piano.
"A
família vai seguindo seu caminho, alguns no palco, outros somente na
plateia", brinca Martinho. Em "Poeta da Cidade", ele
interpreta sozinho, com a classe, a malemolência e o fraseado
característicos três canções menos conhecidas de Noel ("E
Não Brinca Não", "Seja Breve", "Cidade Mulher")
e a célebre "Filosofia", que abre o CD em grande estilo e
é a única exceção entre as 14 selecionadas, já que foi composta
por Noel em parceria com André Filho.
Noel em parceria
"Na
verdade", explica Martinho, "esta beleza que é
'Filosofia' foi incluída por engano, mas acabou permanecendo
até a edição final. Já tínhamos gravado 'Filosofia' quando
alguém alertou que era composição de Noel em parceria. Então,
decidimos bancar a exceção". Além das irmãs Mart'nália e
Maíra, um time de jovens cantoras tem participação especialíssima,
dividindo as interpretações com Martinho: Analimar Ventapane
("Coisas Nossas" e "Quando o Samba Acabou"),
Patrícia Hora, filha de Rildo ("Três Apitos"), Ana Costa
("Século do Progresso" e "Eu Vou Pra Vila") e
Aline Calixto, para quem Martinho não poupa nenhum elogio.
"Todas as
participações foram especiais, dos arranjos e regência do Rildo
Hora a cada um dos músicos e cantoras envolvidos. Mas a Aline foi
encantadora. Foi ele, o Rildo Hora, quem me alertou sobre ela, quando ela lançou
o primeiro CD. Gostei quando ela aceitou o convite e fiquei
impressionado com a técnica que ela demonstrou, sem contar aquele
timbre de voz que faz lembrar de imediato a saudosa Clara Nunes", explica Martinho, reconhecendo e destacando o talento de Aline Calixto.
No CD "Poeta da Cidade", Aline
Calixto está presente em duas faixas, nas duas cantando quase à
capela, acelerando e desacelerando com perícia o andamento das
canções, com Martinho fazendo vocais no refrão. Ela defende "Fita
Amarela" e "O X do Problema", entre acordes de cavaco,
pandeiro, surdo, tamborim, sax tenor, flauta e clarinete. "Todos
foram espetaculares, mas a Aline marcou presença com classe e provou
que tem tudo a ver com o universo dos sambas de Noel", completa
Martinho.
Fita Amarela
(Noel Rosa)
Quando eu
morrer, não quero choro nem vela
Quero uma fita amarela gravada com o nome dela
Se existe alma, se há outra encarnação
Eu queria que a mulata sapateasse no meu caixão
Quero uma fita amarela gravada com o nome dela
Se existe alma, se há outra encarnação
Eu queria que a mulata sapateasse no meu caixão
Não quero
flores nem coroa com espinho
Só quero choro de flauta, violão e cavaquinho
Estou contente, consolado por saber
Que as morenas tão formosas a terra um dia vai comer.
Só quero choro de flauta, violão e cavaquinho
Estou contente, consolado por saber
Que as morenas tão formosas a terra um dia vai comer.
Não tenho
herdeiros, não possuo um só vintém
Eu vivi devendo a todos mas não paguei a ninguém
Meus inimigos que hoje falam mal de mim
Vão dizer que nunca viram uma pessoa tão boa assim.
Eu vivi devendo a todos mas não paguei a ninguém
Meus inimigos que hoje falam mal de mim
Vão dizer que nunca viram uma pessoa tão boa assim.
O 'x' do Problema
(Noel Rosa)
Nasci no
Estácio
E fui educada na roda de bamba
Eu fui diplomada na escola de samba
Sou independente, conforme se vê
E fui educada na roda de bamba
Eu fui diplomada na escola de samba
Sou independente, conforme se vê
Nasci no
Estácio
O samba é a corda e eu sou a caçamba
E não acredito que haja muamba
Que possa fazer eu gostar de você
O samba é a corda e eu sou a caçamba
E não acredito que haja muamba
Que possa fazer eu gostar de você
Eu sou
diretora da escola do Estácio de Sá
E felicidade maior neste mundo não há
Já fui convidada para ser estrela do nosso cinema
Ser estrela é bem fácil
Sair do Estácio é que é o 'x' do problema
E felicidade maior neste mundo não há
Já fui convidada para ser estrela do nosso cinema
Ser estrela é bem fácil
Sair do Estácio é que é o 'x' do problema
Você tem
vontade
Que eu abandone o largo de Estácio
Pra ser a rainha de um grande palácio
E dar um banquete uma vez por semana
Que eu abandone o largo de Estácio
Pra ser a rainha de um grande palácio
E dar um banquete uma vez por semana
Nasci no Estácio
Não posso mudar minha massa de sangue
Você pode ver que palmeira do mangue
Não vive na areia de Copacabana
Seleção
de bambas posa para a posteridade em
fotografia de
1943: a partir da esquerda, Cascata,
Donga, Ataulfo Alves, Pixinguinha,
João da Baiana,
Ismael Silva e Alfredinho do Flautim. Ao fundo, a
primeira formação do time das pastoras de Ataulfo
Abaixo, cena de Pixinguinha e a Velha Guarda
do Samba, um documentário filmado por
Thomas Farkas durante show de
Pixinguinha e outros músicos em 1954 no
Parque do Ibirapuera, em São Paulo, em
comemoração ao 4° centenário da cidade
Pixinguinha e outros músicos em 1954 no
Parque do Ibirapuera, em São Paulo, em
comemoração ao 4° centenário da cidade
Samba de sambar
Enquanto
"Poeta da Cidade" surge como um dos melhores tributos a
honrar o Noel Centenário, o pesquisador musical e fotógrafo
Humberto Franceschi define seu "Samba de Sambar do Estácio -
1928 a 1931" como um problema sério. "Foi um trabalho que
consumiu 20 anos de pesquisa e que comprova a má vontade e a falta
de interesse de muitos com as origens da música brasileira",
destaca Franceschi, pelo telefone. Ele diz que conhece cada calçada
do Rio de Janeiro. Nasceu há 80 anos, em Botafogo. No novo livro,
acrescenta mais um capítulo de referência indispensável que
resgata os primórdios da cultura brasileira.
Considerado
uma autoridade nacional no campo da tecnologia do som e da história
da música brasileira, Humberto Franceschi já havia publicado, entre
outros, "Registros Sonoros por Meios Mecânicos no Brasil"
(Studio HMF, 1984) e "A Casa Edson e Seu Tempo" (Sarapuí,
Biscoito Fino, 2002), livro sobre a primeira gravadora a atuar no
Brasil e que concentrou a maior parte dos registros musicais entre
1902 e 1950.
Também
apontado pelos especialistas como o maior colecionador de antigos suportes musicais no Brasil,
Franceschi doou recentemente ao Arquivo Nacional um acervo valioso de
cerca de 3 mil discos que foram gravados entre 1906-1954 (“Era de
Ouro da Música Brasileira”) e produzidos à base de goma-laca, pelas
gravadoras RCA, Victor, RCA-Victor, Columbia, Parlophon, Odeon,
Copacabana, Sinter, Continental, Decca, Son d’Or (Uruguai), Elite
Special, Star, RCE, Philips, Chantecler, Todamerica e outras.
Primeira grandeza
"Tive
a sorte de conviver durante décadas com pessoas da primeira grandeza
da música, Ismael Silva, Cartola, Orestes Barbosa, Nelson
Cavaquinho...", recorda Franceschi, acrescentando que seu livro
aborda um período essencial e pouco estudado da história da música
popular que se faz no Brasil. "Samba de Sambar no Estácio"
descreve o momento em que o samba se transformou nas mãos de Ismael
Silva e outros baluartes nem sempre lembrados com as honrarias que
merecem, como Edgar, Rubem, Brancura, Bide, Nilton Bastos, Getúlio
Marinho, Heitor dos Prazeres e todos os pioneiros na composição de
um samba com identidade própria, diferente dos sambas-maxixes
populares naquela época. "Ismael Silva é pouco
homenageado, porém talvez seja o mais importante compositor
popular do Brasil, no mesmo plano de Noel Rosa", destaca
Franceschi.
Humberto
Franceschi, com apuro técnico e paixão pelo tema a que se dedica,
apresenta no livro e na entrevista os personagens e as histórias que
percorreram o Largo do Estácio na primeira metade do século
passado. Alguns personagens entraram para a história, outros fizeram
número à maioria anônima que durante décadas definiu as
intrincadas relações do samba com o candomblé, o futebol e a
prostituição.
É
a partir de depoimentos dos remanescentes do Deixa Falar, bloco que
deu origem ao "samba da sambar", na definição de Ismael
Silva, que Franceschi narra histórias saborosas como a da baiana Tia
Ciata, avó do compositor e instrumentista Bucy Moreira, que, com um
pó de ervas, teria curado a perna do então presidente Wenceslau
Braz. Ou sobre o time de futebol do Estácio, o Império, que tinha
em sua sede a maior gafieira da cidade.
Origens do samba
Pesquisador musical e também fotógrafo, Humberto Moraes Franceschi nasceu em 1930 em uma família que sempre esteve envolvida com a música brasileira. Tendo convivido com grandes nomes da música popular, como Ismael Silva e Cartola, Franceschi reuniu um dos maiores acervos com as primeiras gravações do samba carioca, hoje parcialmente disponível no site do Instituto Moreira Salles.
Em
"Samba de Sambar do Estácio", o pesquisador revela em
minúcias o amplo painel do surgimento do samba batucado no final da
década de 1920, no bairro do Estácio, no Rio de Janeiro. E brinda
os leitores com um deleite que é um DVD multimídia encartado no
livro. O pesquisador reúne na edição do DVD as 100 músicas (como
"Mulher de Malandro", de Heitor dos Prazeres, e
"Homenagem", de Carlos Cachaça com Cartola), as 54 imagens
(entre fotografias e gravuras) e os 21 depoimentos (como os de
Athanazia e Bucy Moreira) citados na publicação.
O
DVD também traz um mapa do Rio de Janeiro datado de 1935. O roteiro
proposto no mapa, enriquecido por fotografias, sugere um passeio que segue do Largo de São Domingos ao Largo Estácio de Sá, no Bairro do Estácio, cruzando o Campo de
Santana, a praça Onze e a zona do Mangue, incluindo pontos comerciais e locais que fizeram história. O trabalho foi produzido e
organizado por Franceschi e por Carlos Didier, em conjunto com uma equipe de profissionais do Instituto Moreira Salles.
“Estou
muito feliz com a repercussão e a importância que este trabalho tem
para o futuro”, completa Franceschi, revelando outros projetos de pesquisa que já está encaminhando e que deverão ser publicados em breve. Mas ele pede para que os temas não sejam anunciados na entrevista, para evitar que sejam copiados por outros. Diz que posso revelar apenas que são projetos relacionados à memória da música popular no Brasil, com destaque para a história do samba, que segundo ele é um dos principais patrimônios da cultura brasileira. “O samba é assim mesmo. Enfrentou de tudo, preconceito, palpite
infeliz, desacerto, misturas, perseguição. O samba agoniza, como diz aquele
clássico. Mas não morre...”
por José
Antônio Orlando.
Como
citar:
ORLANDO,
José Antônio. Tem
samba.
In: Blog
Semióticas,
31
de agosto
de
2011.
Disponível no link
http://semioticas1.blogspot.com/2011/08/tem-sambafoto-dos-bambas-cascata-donga.html
(acessado em .../.../...).
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