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1 de fevereiro de 2022

Arte negra nas Américas






A história da escravidão africana na América é um abismo

brutal de degradação e miséria que não se pode sondar....

–– Joaquim Nabuco (1849-1910).  
   


Resumindo: é um evento que não tem a pretensão de constituir um inventário completo sobre a abrangência do assunto nem de propor uma história da arte revisada com foco na obra de afro-americanos. Mas é uma novidade em sintonia com os novos tempos. Trata-se de uma exposição inédita apresentada na Universidade Pepperdine em Malibu, na Califórnia, reunindo obras e documentos que narram conquistas e contribuições de artistas afro-americanos nos últimos seis séculos – tanto nos Estados Unidos como em alguns países de América Latina. A exposição “The Cultivators: Highlights from the Kinsey African American Art & History Collection” (Os cultivadores: destaques da coleção de arte e história afro-americana de Kinsey), com curadoria de Khalil Kinsey e Larry Earl, está aberta no espaço mais nobre da universidade, o Frederick R. Weisman Museum of Art, e prossegue até 27 de março, quando terá agenda itinerante por instituições nos Estados Unidos e outros países.

Na interseção da arte e da história, a exposição cobre a vida, a produção cultural e as realizações de um grupo representativo de afro-americanos desde o século 16 até os tempos recentes, incluindo obras e ações relacionadas à Proclamação da Emancipação dos cidadãos mantidos em escravidão, assinada em 1862 pelo presidente Abraham Lincoln (a escravidão tornou-se ilegal nos Estados Unidos através da aprovação da 13ª Emenda Constitucional em 1865); às mobilizações contra o racismo e contra o linchamento de negros no decorrer do século 20; às mobilizações pela igualdade com o Movimento dos Direitos Civis na década de 1960; e aos recentíssimos eventos do Black Lives Matter (Vidas negras importam) iniciados nos Estados Unidos desde 2013 com multidões em protestos contra a violência direcionada às pessoas negras. Em uma iniciativa que permanecia inédita no circuito de museus e galerias de arte, a exposição na Universidade Pepperdine celebra somente artistas afro-americanos, oferecendo uma contra-narrativa crucial ao colocá-los no centro, e não nas margens, da história norte-americana.












Arte negra nas Américas: no alto, Untitled, pintura
em óleo sobre tela de 1951 de Hughie Lee-Smith.
Acima, fotografia de Earnest Whiters de 1968 faz
um registro histórico da marcha em homenagem ao
pastor batista Martin Luther King Jr., liderança política
e ativista dos Direitos Civis que foi assassinado em abril
de 1968 em Memphis, Tennessee. Também acima,
"Primeiro voto", aquarela em policromia de
Gayle Hubbard na primeira página do jornal
"Harper's Weekly", de Nova York, na edição histórica
de 16 de novembro de 1867, que registrou a primeira
eleição nos EUA com pessoas negras na condição
de eleitores; e uma fotografia de Bernard Kinsey
em seu escritório de trabalho.

Abaixo, a família Kinsey: Bernard, Shirley e o filho do
casal, Khalil, atual curador e diretor da Fundação Kinsey;
e The Cultivators, pintura em óleo sobre tela de 2000
de Samuel Dunson que faz homenagem ao trabalho
dos Kinsey e que dá título à exposição aberta na
Universidade Pepperdine. Todas as imagens desta
postagem fazem parte do catálogo da exposição









A história da arte negra na América do Norte, assim como em toda a América Latina, e também em outros continentes, surge como uma história de resistência contra a violência, contra a opressão e contra o sofrimento das populações capturadas e negociadas no continente africano e levadas à força para o trabalho escravo do outro lado do oceano Atlântico. No informe sobre a exposição, a curadoria destaca a expressão “mito da ausência”, usada pelo historiador Lerone Bennett Jr. (1928-2018), que se dedicou a pesquisas sobre as relações raciais nos Estados Unidos, para se referir aos capítulos da história que tiveram afro-americanos como protagonistas e que foram por muito tempo ignorados.

A expressão "mito da ausência" é aplicada cada vez com mais frequência nos estudos acadêmicos, na educação e nas ciências sociais, como referência ao mascaramento do preconceito racial, pois tal mascaramento também configura uma prática racista de exclusão pelo "apagamento". O mito da ausência tornou invisível a trajetória de muitas gerações de artistas – que permaneceram anônimos em sua época e surgem agora, anos depois, ou décadas e séculos, em muitos casos, com obras que provocam impacto e impressionam. Pode-se reconhecer que foram silenciados, perdidos, roubados, humilhados, ignorados, deixados para trás, mas não esquecidos. Entre os artistas selecionados estão, entre outros, Ernie Barnes, John Biggers, Bisa Butler, Elizabeth Catlett, Robert Duncanson, Sam Gilliam, Jacob Lawrence, Norman Lewis, Augusta Savage, Laura Wheeler Waring, Lois Mailou Jones, Henry Ossawa Tanner, Alma Thomas, Hughie Lee-Smith, Romare Bearden e Charles White.











Arte negra nas Américas: no alto, Mulher vestindo
lenço laranja
, pintura 
em óleo sobre tela de 1940
de Laura Wheeler Waring. Acima, Duas mulheres
africanas
, desenho em técnica mista sobre pergaminho de
1942 de autoria de Eldzier Corter. Abaixo, Gamin Gamin,
escultura em bronze de 1930 de Augusta Savage;
e um retrato do escritor James Baldwin desenhado
por Romare Bearden em Paris, por volta de 1950,
quando Bearden foi um dos primeiros negros dos
Estados Unidos a frequentar como aluno os ateliers
de mestres como Brancusi, Giacometti e Matisse










Arte e resistência


A maioria dos artistas reunidos no acervo em exposição têm, pela primeira vez, destaque por sua produção artística, e poucos estão registrados nos livros didáticos de história e nos compêndios de história da arte. Vale lembrar que somente na década de 1980 um primeiro negro conquistou pleno reconhecimento nas artes plásticas nos Estados Unidos – ele foi Jean-Michel Basquiat (1960-1988), nascido em Nova York com ascendência porto-riquenha por parte de mãe e haitiana por parte de pai. Quatro décadas depois da revelação que foi Basquiat, o acervo de peças originais agora reunido, com pinturas, gravuras, desenhos, esculturas, estamparias e obras em suportes variados de madeira, papel, tecido e pedrarias, é celebrado e contextualizado por meio de documentos históricos, cartas e manuscritos garimpados em diversas instituições, livros raros e fotografias que contam a história das lutas, da resistência e da perseverança afro-americanas.

A extensa e variada seleção de obras de arte negra, na verdade, é uma monumental coleção particular: a coleção de arte da família Kinsey, iniciada na década de 1960, e que só agora ganha sua primeira grande retrospectiva. Todo o acervo também está reunido em um catálogo ilustrado da coleção e da exposição na Universidade Pepperdine. Quando o empresário Bernard Kinsey e Shirley Kinsey se casaram em 1967, depois de se conhecerem como estudantes na Universidade da Flórida, o casal estabeleceu a meta de visitar 100 países diferentes durante sua vida juntos. Enquanto viajavam e exploravam outros países e culturas, começaram a colecionar arte, documentos e artefatos de história da América como lembranças preciosas das experiências de viagem. À medida que a coleção crescia, eles perceberam que havia tantos aspectos sobre sua própria herança cultural que nem eles nem outros pesquisadores conheciam e que as peças reunidas tinham um grande valor não apenas como raridades, mas também como uma expressão legítima da presença e da importância dos afro-americanos na arte e na cultura.











Arte negra nas Américas: acima, Charleston,
South Carolina, aquarela
 datada de 1936 de
Ellis Wilson; e Brincadeira de criança,
aquarela com data de 1950 de Aaron Douglass.

Abaixo, Mt. Tacoma from Lake Washington,
pintura em óleo sobre tela com data de 1885 de
Grafton Tyler Brown; e uma gravura publicada
em 1863 pelo Harper's Weekly com o título
"Os efeitos da proclamação: negros libertos
entrando em nossa jurisdição em
Newbern, North Carolina"


 
 


           


            



Conquistas históricas


A paixão do casal Kinsey pela história, pela cultura e pelos até então desconhecidos artistas negros das Américas os levaria a criar a Bernard and Shirley Kinsey Foundation for Arts and Education, com foco em iniciativas para o desenvolvimento da história e da cultura afro-americana, incluindo arquivos, programas de pesquisa, bolsas de estudo, edição de livros, eventos e apoio a várias instituições, entre elas a Rosa Parks Foundation. A valiosa e incomparável coleção de arte e história afro-americana do casal Kinsey, agora gerenciada por seu filho Khalil Kinsey, curador da fundação e da exposição, celebra as conquistas e contribuições dos negros americanos desde antes da formação dos Estados Unidos até os tempos atuais.

Se você quer mudar uma pessoa”, anuncia uma frase do patriarca Bernard Kinsey destacada no informe sobre a exposição, “a primeira coisa que você deve fazer é mudar sua consciência de si mesma, começa com sua consciência. A Coleção Kinsey se esforça para dar voz, nome e personalidade aos nossos ancestrais, permitindo que o espectador entenda os desafios, obstáculos, triunfos e sacrifícios extraordinários dos afro-americanos.” Khalil Kinsey acrescenta: “Esta é uma história de família, ilustrando o que uma família fez para contar sua história. Mas também é sobre a América. Porque a maioria das pessoas só conhece metade da história.”







Arte negra nas Américas: acima, gravura em
litografia de 1863 retrata um regimento voluntário

de soldados negros em Camp William Penn, na
Pensilvânia, em treinamento para combater as
tropas de confederados dos estados escravagistas
do sul dos Estados Unidos, durante a Guerra Civil
ou Guerra de Secessão. Abaixo, litografia de 1872
registra os integrantes da primeira bancada de políticos
de ascendência afro-americana no Congresso dos
Estados Unidos, todos eles nascidos na escravidão.
Também abaixo, Hiram Rhoades Revels, o primeiro
cidadão negro a ser eleito para o Senado dos EUA,
em fotografia de 1870 feita por Mathew Brady;
e uma família de mulheres afro-americanas em
um daguerreótipo anônimo datado de 1855




      


 





Quebrando estereótipos


Além dos artistas que surgem com suas obras-primas na condição de obras inéditas para a maioria dos estudiosos e do público, contribuindo para dissipar mitos e quebrar preconceitos e estereótipos, há também na exposição documentos que registram momentos emblemáticos da história. Os destaques incluem documentos bizarros para os padrões atuais, como notas de venda, anúncios, cartas e certidões em manuscritos para o comércio de escravos. Há também raridades que são marcos da história da literatura e da imprensa, como livros e revistas originais com letras coloridas à mão da época da Guerra Civil; exemplares poucos conhecidos da arte, da música e da literatura do Harlem Renaissance, quando o bairro ao norte de Manhattan teve seu apogeu para a cultura negra (do começo do século 20 até o final da década de 1930); e itens que destacam personalidades e momentos-chave no Movimento dos Direitos Civis, a partir da década de 1960, incluindo panfletos originais, documentos e muitas fotografias que permaneciam inéditas.













     
   


Arte negra nas Américas: no alto, Quatro vacas
no campo, pintura em óleo sobre tela de 1893 de
Edward Mitchell Bannister. Acima, uma Paisagem
em pintura em óleo sobre tela de 1865 de
Robert S. Duncanson; e Porto, pintura de 1940 de
Allan Randall Freelon. Abaixo, litografia em base de
madeira de 1953 de Charles White com o título de
Cantor popular (Folk singer). Também abaixo,
Faces do meu povo, xilogravura de 1990 de
Marlon Burrows, seguida de Mãos do campo,
pintura em óleo de 1988 de Johnathan Green;
e Corredor na praia, pintura em tinta acrílica
de 1997 de Ernie Barnes






Além da beleza comovente de pinturas, gravuras, esculturas e desenhos de autores que estavam, em sua maioria, há muito tempo no anonimato, entre as raridades da coleção Kinsey, apresentadas no extenso acervo em exposição, também estão cartas e manuscritos pela primeira vez divulgados de lideranças políticas e personalidades como Martin Luther King Jr., James Baldwin, Malcolm X e Alex Haley, entre outros. Há ainda os registros cartoriais mais antigos de que se tem notícia sobre a presença e a atuação de afro-americanos nos Estados Unidos, incluindo uma certidão de batismo de uma criança negra e uma certidão de casamento civil de um casal negro, ambas do século 18.

Entre as raridades sobre literatura estão documentos em suas versões originais, com destaque para um exemplar recentemente descoberto da primeira edição de 1773 de poemas de Phillis Wheatley, primeira pessoa afro-americana a ter um livro publicado; e a primeira edição de 1853, completa e encadernada, de “12 Anos de Escravidão”, do autor Solomon Northrup, livro que em 2013 foi transformado no filme de mesmo título. Northrup, nascido livre em Nova York, em 1808, vivia com sua esposa e filhos quando foi sequestrado e acorrentado em 1841 por mercadores de escravos e vendido para fazendeiros da Louisiana, onde ficou cativo para trabalhos forçados em fazendas de cultivo de algodão e cana de açúcar. Em 1853, quando finalmente foi libertado, Solomon Northrup retornou para a família em Nova York e publicou seu relato dramático em livro.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Arte negra nas Américas. In: Blog Semióticas, 1º de fevereiro de 2022. Disponível em https://semioticas1.blogspot.com/2022/02/arte-negra-nas-americas.html (acessado em .../.../…).


Para uma visita virtual à exposição na Universidade Pepperdine,  clique aqui.








23 de dezembro de 2019

A noite do Natal de Banksy




Natal nos traz de volta às ilusões da infância, recorda 
aos mais velhos os prazeres da juventude e transporta 
os viajantes de volta à lareira e à tranquilidade do lar. 

–– Charles Dickens, The Pickwick Papers (1836). 


O artista mais polêmico, mais político, mais surpreendente e mais misterioso de nossa época, do qual ninguém sabe realmente a verdadeira identidade, no melhor estilo lendário dos super-heróis que mantêm a identidade em segredo para salvar o mundo, registrou em dose dupla, em latitudes bem distantes no mapa do Hemisfério Norte, suas mensagens polêmicas e políticas para o Natal de 2019. As novas obras com a assinatura provocadora de Banksy surgiram às vésperas do Natal na cidade de Birmingham, na Inglaterra, e na cidade palestina de Belém (Bethlehem), na Cisjordânia – terra natal do mítico Rei Davi nos relatos da Bíblia Sagrada e também, segundo a tradição do Cristianismo, o verdadeiro local do nascimento de Jesus Cristo.

A autenticação das novas obras de Banksy com mensagens sobre o Natal foi feita pelo próprio artista na Internet, em seu site oficial e na conta que ele mantém no Instagram. A obra que surgiu em Birmingham é uma declaração poderosa do artista e militante político de esquerda sobre os relatórios oficiais que confirmam o aumento da pobreza e da falta de moradia no Reino Unido: Banksy grafitou em um muro, ao lado de um banco público onde com frequência dormem moradores de rua, a imagem de duas renas de Papai Noel, figuras típicas dos enfeites mais apreciados nas festas natalinas. Na cidade palestina de Belém, o artista montou a instalação de um pequeno presépio tradicional, com as figuras de Maria, José, o menino Jesus recém-nascido na manjedoura do estábulo e alguns animais, próximo a um muro perfurado por tiros da artilharia pesada dos soldados do Estado de Israel.




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A noite do Natal de Banksy: no alto, as renas
de Papai Noel grafitadas junto a um banco
de rua na cidade de Birmingham, Inglaterra.
Acima, as renas fotografadas à luz do dia e
a multidão que se formou ao saber da notícia
do novo trabalho do misterioso grafiteiro.
Abaixo, o vídeo postado por Banksy em
sua página oficial no Instagram para
confirmar a autoria de sua nova obra


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Mantendo sua condição décadas como um dos grandes mistérios do mundo da arte, Banksy também publicou em sua página no Instagram um pequeno vídeo sobre a nova obra na Vyse Street, uma área de joalherias e lojas de grifes luxuosas em Birmingham. Em poucos minutos, o enquadramento em câmera fixa mostra no grafite as duas renas prestes a voar arrastando o banco que substitui o trenó do Papai Noel. Na trilha-sonora, a canção “I'll Be Home for Christmas” (Eu estarei em casa no Natal) – um clássico nostálgico que todo final de ano retorna em filmes, programas de TV e anúncios de publicidade, desde que foi lançada em 1943, por Bing Crosby, para homenagear os soldados que passariam o Natal nas trincheiras da Segunda Guerra Mundial, e que foi regravada, entre muitos outros, por Ella Fitzgerald, Nat King Cole, Frank Sinatra, Elvis Presley e The Carpenters. No vídeo de Banksy, um morador de rua, identificado na legenda como “Ryan”, se prepara para passar a noite deitado no banco, na calçada da rua, sob as estrelas, enquanto passam pessoas e carros. “Deus abençoe Birmingham”, diz a legenda.



A cicatriz de Belém



Na cidade palestina de Belém ocupada por tropas militares do Estado de Israel, a mensagem de Banksy para o Natal de 2019 não é nem menos polêmica nem menos política que as duas renas mágicas de Papai Noel arrastando, no lugar do trenó, o banco de rua usado como cama pelos sem-teto de Birmingham. O pequeno presépio, batizado pelo artista como “Scar of Bethlehem” (A cicatriz de Belém), foi instalado na rua, em frente ao muro construído por Israel para impedir o acesso do povo palestino, bem na entrada do The Walled-Off Hotel (Hotel cercado) – uma peça de resistência que o próprio Banksy inaugurou em 2017 com o slogan provocador de “o pior hotel do mundo” e que mistura, aos aposentos para hospedagem de turistas, as funções como museu para abrigar seu acervo de arte de contestação e como manifesto político e ideológico em protesto pela violência dos israelenses contra os palestinos na região.







A noite do Natal de Banksy: no alto e acima,
o presépio instalado na rua, em Belém, na
Cisjordânia, em frente ao muro construído pelo
Estado de Israel contra o povo da Palestina.

Abaixo, detalhe das figuras do presépio
e a pintura de 2005 em que Banksy retrata o
muro de Israel como uma barreira que impede a
entrada de José e Maria na cidade de Belém







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No presépio de Banksy, as figuras tradicionais da sagrada família estão posicionadas diante de um pedaço do muro que foi perfurado por um tiro, disparado por artilharia de guerra, cujo formato em quatro pontas acima de José, de Maria e do menino Jesus, rodeados por uma vaca e um burro, faz lembrar a estrela de Natal. No pedaço do muro atrás do presépio é possível ler em grafites meio apagados as palavras rabiscadas em inglês e francês: amor e paz. O árabe Wissam Salsaa, um dos funcionários contratados por Banksy para administrar o Hotel Walled-Off, declarou às agências de notícias que a instalação do presépio na rua, pelo artista e militante político, simboliza uma “cicatriz da vergonha” pela violência que o muro representa e, também, um protesto contra todos que apoiam a ocupação ilegal dos territórios palestinos pelas tropas militares e pelos assentamentos de colonos financiados pelo Estado de Israel.

O muro começou a ser construído por Israel na Cisjordânia em 2002, como barreira contra o povo da Palestina, com extensas fileiras de blocos de concreto maciço de mais de oito metros de altura. Em 2004, o Tribunal Internacional de Justiça de Haia, principal órgão judiciário da ONU, declarou que a construção do muro era ilegal e determinou que ele deveria ser removido, mas o Estado de Israel não cumpriu a determinação do parecer e continuou com a construção da barreira e com novas ocupações forçadas em territórios palestinos na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. Símbolo das ocupações, a barreira de concreto construída por Israel tem sido uma fonte de inspiração para a arte subversiva de Banksy, que fez várias pinturas no muro e criou um novo modelo de resistência com sua mistura de arte e política, amplificando para o mundo a voz de protesto dos palestinos e transformando o espaço, que representa violência e segregação racial, em uma atração turística.








A noite do Natal de Banksy: no alto,
a pomba branca da paz, que no território
palestino ocupado pelas tropas militares do
Estado de Israel usa colete à prova de balas.

Acima e abaixo, a fachada do The Walled-Off Hotel
instalado por Banksy na fronteira da Cisjordânia,
em frente ao muro de Israel. Também abaixo,
detalhes do hotel e do muro; o saguão do
hotel; uma hóspede em um dos quartos;
e a janela do quarto com luneta e vista
para o "muro da vergonha"



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Criações subversivas



Com o passar dos anos a popularidade e a surpreendente criatividade de Banksy só vêm aumentando, com grafites e murais de arte e política pintados por ele clandestinamente em Bristol, na Inglaterra, que se supõe ser sua terra natal, em Londres e em outras cidades de vários países pelo mundo afora – o que faz muitos questionarem se as obras personalíssimas de Banksy são criações subversivas de um só artista ou resultado de um trabalho coletivo que mobiliza apoiadores e co-autores espalhados em outras latitudes, distantes das fronteiras da Inglaterra. Além da cena do presépio e do Hotel Walled-Off instalados na Cisjordânia, no muro de Israel contra os palestinos estão diversos trabalhos de Banksy pintados por ele sob disfarce nos últimos anos, alguns destacados entre suas obras mais populares. Lá estão, entre outros, a menina de vestido rosa revistando o soldado israelense fortemente armado e de mãos para cima, assim como a imagem de uma escada que convida o observador a subir e pular o muro ou o ativista em preto e branco com máscara prestes a atirar, no gesto de protesto, um buquê de flores coloridas.

Outras imagens de Banksy no “muro da vergonha” incluem a garotinha levada ao céu por balões coloridos, uma janela que rompe o concreto e abre para uma pacífica paisagem de montanhas – e também a pomba branca que traz no bico um ramo de oliveira, símbolo da paz desde o Antigo Testamento da Bíblia. No grafite de Banksy, porém, a pomba branca da paz, nos territórios palestinos ocupados pelas tropas de Israel, veste um colete à prova de balas e tem o coração marcado à distância na mira de uma arma. Outra obra muito conhecida de Banksy que aborda uma cena tradicional de Natal é uma pintura feita por ele em 2005 mostrando a passagem bíblica da Natividade descrita nos evangelhos: na versão de Banksy, José e Maria, antes do nascimento do menino Jesus, são impedidos de chegar a Belém pela barreira do muro construído na Cisjordânia pelos israelenses.









A noite do Natal de Banksy: no alto,
a gravura Garota com balão e a cena
espetacular da destruição da obra
durante o leilão na Sotheby's de Londres.

Acima, a tela com chimpanzés no lugar dos
parlamentares do Reino Unido, que bateu
recorde em leilão recente também na
Sotheby's. Abaixo, detalhes da tela
com a atuação dos chimpanzés









Além das obras com mensagens para o Natal em Birmingham e na Cisjordânia, Banksy tem sido notícia com grande destaque internacional em diversas ocasiões nos últimos meses. Em outubro de 2018, houve a destruição espetacular de sua obra em um disputado leilão na Sotheby’s, em Londres. Após ser vendida pelo preço recorde de um milhão de libras (mais de R$ 6 milhões), a gravura “Garota com balão” foi destruída por um triturador de papel que estava escondido na moldura e foi misteriosamente acionado por controle remoto, diante do espanto da equipe de leilões e da plateia com imprensa e compradores. A obra havia sido grafitada em um mural em Londres, em 2002, mas foi destruída por vândalos, o que levou Banksy a fazer cópias em papel, sendo uma delas a que foi triturada no leilão da Sotheby’s.



Cotações em alta e crise global



Também na Sotheby’s, um ano depois da destruição espetacular de “Garota com balão”, Banksy bateu um novo recorde: em 3 de outubro de 2019, sua irônica e monumental pintura em óleo sobre tela, chamada de “Devolved Parliament” (Parlamento devolvido ou parlamento “involuído”), que mostra chimpanzés no lugar de deputados no Parlamento Britânico, atingiu um valor muito acima das expectativas e foi vendida a um comprador anônimo por 12 milhões de dólares, equivalente a 9,8 milhões de libras ou mais de R$ 50 milhões. O quadro, medindo 4,46 metros por 2,67 metros – a maior tela conhecida do artista – foi pintado em 2009 e havia sido doado por Banksy para uma exposição no Museu de Bristol. Os recordes de preços elevaram ainda mais as cotações para obras do artista e outros leilões já estão anunciados para os próximos meses, à revelia de Banksy, colocando à venda obras que foram retiradas de espaços públicos e das ruas contra sua vontade.







A noite do Natal de Banksy: no alto
e acima, a obra apresentada por Banksy
no Natal de 2018 em um terreno baldio
em Port Talbot, no País de Gales.

Abaixo, a criança migrante pede socorro
grafitada nas ruínas do canal na
cidade de Veneza, na Itália





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Banksy também ganhou destaque no Natal de 2018 com um mural sobre o tema da pobreza e dos moradores de rua, além de marcar presença em 2019 durante um dos principais eventos mundiais do mundo das artes, a Bienal de Veneza, na Itália, que aconteceu em maio. Às vésperas do Natal do ano passado, um outro surpreendente mural de Banksy surgiu em Port Talbot, cidade ao sul do País de Gales, no Reino Unido. A obra, pintada em paredes de um terreno baldio, mostrava uma criança com os braços abertos apreciando as cinzas de uma fogueira que caíam como neve. A imagem da fogueira, queimando em uma caixa, lembra o fogo aceso pelos sem-teto nas ruas e por pessoas que tentam evitar o frio em abrigos para imigrantes.

Em Veneza, Banksy marcou presença com uma obra grafitada em um dos canais por onde trafegam as gôndolas tradicionais e com uma performance não autorizada em uma praça da cidade durante a Bienal. A obra grafitada surgiu no canal do distrito de Dorsoduro, chamando atenção para o drama mundial dos refugiados – um tema cada vez mais frequente na arte de Banksy. O mural mostra uma criança migrante grafitada em uma antiga construção em ruínas que fica submersa quando sobem as marés. A criança, com expressão de tristeza no rosto, veste um colete salva-vidas e segura com o braço erguido um sinaleiro que está aceso com chama e fumaça na cor rosa-choque, do tipo usado pelas embarcações nos mares e nos rios para indicar à distância algum perigo ou acidente e para pedir por socorro.







A noite do Natal de Banksy: no alto
e acima, a performance na praça durante
Bienal de Veneza e vídeo publicado
por Banksy no Instagram para registrar
sua autoria e a reação da plateia.

Abaixo, a fachada principal e uma
das vitrines da loja criada por Banksy
em uma esquina de Londres




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Identidade secreta e direitos autorais



Também em Veneza, Banksy instalou sem autorização na praça principal uma barraca exibindo uma montagem com uma série de pinturas a óleo. Vistas no conjunto, as obras emolduradas formavam a figura de um enorme e luxuoso navio de cruzeiros em um largo canal, cercado por pequenos barcos de gôndolas. Pelo Instagram, Banksy confirmou sua autoria para a imagem grafitada e para a instalação na praça. Ele também postou um vídeo de um minuto mostrando sua enigmática instalação e a pequena multidão que se formou ao redor, com pessoas questionando a mensagem política da montagem, até a chegada da polícia local para pedir que a exposição fosse desmontada. “Apesar de ser o maior e mais prestigiado evento de arte do mundo”, escreveu ele com ironia no Instagram, “por algum motivo, nunca fui convidado”. Ele não confirmou, mas é possível que o protagonista do vídeo, que usa chapéu e não mostra o rosto, seja o próprio Banksy.

As questões sobre a verdadeira identidade e sobre direitos autorais são também as notícias mais recentes sobre Banksy. Em outubro, ele mais uma vez surpreendeu a todos a abriu uma loja em Londres, em Croydon, um espaço na esquina com amplas vitrines que antes abrigavam uma tradicional loja de tapetes. Para não fugir à regra das atitudes incomuns do artista, não se trata de uma loja convencional, porque nada pode ser comprado ali e as portas não serão abertas ao público. Trata-se de uma estratégia para garantir direitos legais e registrar a marca “Banksy”, já que uma editora de cartões e agendas da Inglaterra iniciou a comercialização sem autorização de produtos que trazem impresso o nome Banksy. Por orientação de advogados, o próprio Banksy vai comercializar réplicas de suas obras e artigos que trazem seu nome para garantir seus direitos como marca registrada. A loja em Croydon, chamada Gross Domestic Products (Produto interno bruto), na verdade é uma vitrine, já que as vendas serão feitas exclusivamente pela Internet.







A noite do Natal de Banksy: no alto,
e também acima e abaixo, uma amostra
das imagens inéditas de Banksy em ação,
bem de perto, fotografado por seu antigo
parceiro Steve Lazarides e apresentadas
como divulgação para o livro autobiográfico
recém-lançado pelo próprio Lazarides,
"Banksy Captured". No final da página,
Banksy posando para a foto de Lazarides
e um registro do grafite original de 2002
Garota com balão 
em uma rua de Londres 





Há também um livro de memórias e de fotografias que está sendo lançado neste final de ano por Steve Lazarides, fotógrafo, artista plástico, curador de galerias, antigo colaborador de Banksy e, tal como ele, também nascido na cidade de Bristol. O livro ilustrado de Lazarides, chamado “Banksy Captured”, traz em 256 páginas muitas fotografias que registram o próprio Banksy em ação, visto bem de perto, mas devidamente de costas, ou com o rosto encoberto por sombras, por um chapéu ou pelo capuz de um moletom, além de uma ou outra tarja impressa para evitar a identificação, em relatos de aventuras anárquicas e fascinantes sobre a criação de algumas obras e sobre os 11 anos da parceria iniciada na década de 1990. Detalhe importante: Banksy e Lazarides romperam relações e não se falam há anos, nem por e-mail.

Mesmo com as revelações anunciadas pelo novo livro, Banksy e seus tantos mistérios continuam a gerar dúvidas e especulações. Em nossa era de extrema vigilância de câmeras e de infinitos aparatos de segurança, de reconhecimento facial automático e de milhões de dispositivos eletrônicos conectados às mídias sociais, é impressionante como Banksy consegue há décadas manter sua identidade em anonimato. Como ele faz isso? Steve Lazarides responde na primeira página de seu livro. “Banksy é muito bom em escolher as pessoas em quem ele confia. O círculo interno é muito leal, ninguém nunca se voltou contra ele”, escreve o antigo parceiro. Diante da complexidade criativa de sua arte que questiona e reflete uma compaixão genuína pelas causas sociais, o que nos resta senão desejar que toda lealdade sobreviva para garantir sorte e vida longa ao talentoso Banksy?



por José Antônio Orlando.



Como citar:


ORLANDO, José Antônio. A noite do Natal de Banksy. In: Blog Semióticas, 23 de dezembro de 2019. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2019/12/a-noite-do-natal-de-banksy.html (acessado em .../.../...).














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