Belas artes são aquelas em que a mão, a cabeça e o coração andam
juntos. |
Uma revolução das técnicas de composição e de impressão gráfica aconteceu no final do século 19, dando origem a uma nova forma de arte que ficaria conhecida como arte do pôster ou do cartaz. Mais de 130 anos depois, um acervo original com cerca de 500 peças raríssimas e preservadas na íntegra, que fazem parte da Coleção Leonard A. Lauder, foi reunido pelo Metropolitan Museum de Nova York para a exposição “The Art of Literary Poster” (A arte do pôster literário). O acervo permanecia inédito desde o começo do século 20 e agora, com a exposição, também está publicado em um catálogo de capa dura, com 248 páginas e todas as imagens com reprodução colorida em alta definição. No recorte temático estão cartazes em litografia e outras técnicas de gravura, impressos em policromia, no suporte papel, produzidos na última década do século 19 e nos primeiros anos do século 20, para anunciar lançamentos e novas edições de revistas, jornais, folhetins e livros. Em muitos deles, as figuras mostram pessoas lendo.
Impresso para ter vida efêmera, colado em paredes e muros dos centros urbanos, o cartaz vem de uma longa história em vários países. Uma abordagem teórica e historiográfica sobre a trajetória do cartaz no final do século 19 foi apresentada por Marcus Verhagen, historiador e professor da Universidade da Califórnia, no ensaio “Aquela arte volúvel e degenerada” (publicado no livro “O cinema e a invenção da vida moderna”, pela Cosac & Naify, em 2001). Inicialmente o cartaz era considerado apenas um recorte de papel impresso sem valor agregado, produzido às pressas sem maiores preocupações estéticas – “uma ferramenta comercial tosca, um anúncio em preto-e-branco com uma imagem altamente esquemática ou sem nenhuma imagem”, como ressalta Verhagen. A partir das últimas décadas do Oitocentos, no entanto, com a incorporação da impressão em cores e de novas técnicas, os cartazes criados para anúncios publicitários tiveram um salto de qualidade, conquistando o interesse de colecionadores e, muitas vezes, o entusiasmo dos críticos de arte.
A moda em Art Nouveau
Esta nova era transformou o cartaz publicitário em uma nova mídia em ascensão que ganhava destaque nas ruas. O cartaz também passava a ser identificado como um dos elementos principais de um novo estilo que ficaria conhecido pelo nome em francês Art Nouveau – o estilo da arte decorativa que teve seu centro irradiador em Paris, no fim do século 19. Rapidamente, o potencial de consumo que surgia com a nova moda espalhou-se por cidades da Europa e de outros continentes. Em Londres, o novo estilo tem seu equivalente com o movimento Arts and Crafts Exhibition Society, que teve o pintor e ilustrador de livros Walter Crane como primeiro líder e presidente.
A Arts and Crafts Exhibition Society montou a sua primeira exposição anual em 1888, mostrando exemplos de trabalhos que ajudassem a elevar o estatuto social e intelectual do artesanato, incluindo cerâmica, têxteis, metalurgia e mobiliário. Muitos dos artistas e artesãos que se envolveram com o movimento não só em Londres, mas também em Birmingham, Manchester, Edimburgo, Glasgow e outras grandes cidades do Reino Unido, foram influenciados pelo trabalho de um designer de sucesso na época, William Morris. Destacado também como ativista social e escritor, o próprio Morris reconhecia sua inspiração nas ideias do principal crítico de arte da Era Vitoriana, John Ruskin, elaborando novos padrões técnicos de artes gráficas e, assim como acontecia na França e outros países, novos modelos muito populares na arquitetura e como estilo intermediário entre a indústria e a arte, adotados na produção de máquinas, móveis, roupas, objetos funcionais e tudo o mais que o termo “design” passou a englobar e traduzir, provocando transformações radicais ou substituindo, gradativamente, as tradicionais oficinas de artes e ofícios.
Naquela época, o estilo Art Nouveau e a arte do cartaz se multiplicavam com velocidade, junto com o surgimento da eletricidade nos centros urbanos e a chegada dos automóveis que substituíam as antigas carroças, carruagens e bondes puxados a cavalo. O novo estilo era celebrado como a última moda, passando a contar com novos adeptos e novos consumidores. Evoluindo junto com as linhas de produção em massa da indústria mercantil e com a indústria do entretenimento, os cartazes se multiplicavam anunciando os espetáculos de ópera, de teatro, de vaudeville, os shows musicais em casas noturnas e a novidade do cinema. O projeto em comum aos artistas que adotavam o novo estilo combinava a tradição das belas artes com o artesanato em marchetaria e a produção de mercadorias utilitárias para consumo doméstico, alcançando também o mundo das artes, a pintura, a escultura e todas as técnicas de desenho e gravura.
Pioneiros do estilo
Art Nouveau também passou a ser o estilo adotado por nomes célebres da história da arte, cada um interpretando à sua maneira as novas técnicas decorativas, tais como o austríaco Gustav Klimt, o checo Alfons Mucha ou o espanhol Antoni Gaudí, entre outros. Verhagen destaca que, nas artes gráficas, o salto de qualidade na produção do cartaz teve um pioneiro que influenciou todos os outros e todo o estilo – o francês Jules Chéret, nomeado em 1890 pelo escritor Edmond de Goncourt como “o inventor da arte do cartaz”. Uma celebridade em sua época, Chéret passou a exercer forte influência sobre artistas como Toulouse-Lautrec e outros nomes do primeiro time das vanguardas europeias. Segundo Verhagen, o nome Chéret, na Paris de fim de século, passou a ser sinônimo para o cartaz mais elaborado, e a popularidade também alcançou a “chérette”, a dançarina estilizada com ares de ninfa sempre presente em seus desenhos e cartazes. Em um dos mais conhecidos, criado em 1889, a “chérette” em trajes e poses provocantes anunciava a inauguração do Moulin Rouge, a casa de espetáculos licensiosa que marcou época em Paris.
O pioneiro do estilo Art Nouveau
no Brasil, Eliseu Visconti, também reconheceu a influência de
Chéret durante sua temporada de estudos em Paris, entre 1894 e 1897.
Historiadores como Frederico Morais (em “Aspectos da Arte
Brasileira”, editado em 1980 pela Funarte) apontam a importância
de Visconti não só como pintor e desenhista, mas também como
pioneiro do design industrial e da arte do cartaz. Um dos trabalhos
de importância histórica de Visconti, a capa do primeiro número da
“Revue du Brésil”, editada em Paris em novembro de 1896, é
considerado um marco que introduz o estilo Art Nouveau no Brasil. Em
“Biblioteca Nacional – A história de uma coleção” (Editora
Salamandra, 1996), Paulo Herkenhoff também destaca Visconti como
precursor da arte modernista e como pai do desenho industrial
brasileiro – com seus padrões para papéis de parede e objetos
utilitários, além da criação de capas e ilustrações de livros e
revistas, de selos, da decoração do Teatro Municipal de Rio de
Janeiro e da Biblioteca Nacional, e de seus cartazes, os primeiros a
terem valor artístico reconhecido no Brasil.
A novidade do cartaz literário
A
exposição que resgata o “boom”
do cartaz em Art Nouveau, apresentada
no Metropolitan de Nova York,
tem curadoria e apresentação
a cargo de quatro especialistas, que
também assinam a edição do catálogo e
os ensaios teóricos e historiográficos:
Alisson
Rudnick, Shannon
Vittoria
e
Rachel
Mustalish, diretoras
dos
departamentos
de Papeis, Desenhos
e Gravuras do museu, e
Jennifer Greenhil, professora de História da Arte na Universidade de
Arkansas. Diante do acervo
selecionado, o que mais ganha destaque para o olhar do
observador do século 21 é certamente o contraste entre a
sofisticação estética e a aparente simplicidade das figuras, além
do apuro estético na integração de texto e imagens para a
composição dos cartazes – cada um deles surgindo mais próximos
de uma obra de arte do que de um anúncio publicitário.
Mesmo
sendo, em sua época, peças apenas
funcionais
para
divulgação e publicidade, cada
um dos cartazes em estilo Art Nouveau pode ser considerado uma obra
de valor específico, com detalhes que revelam tanto questões
culturais do tempo em que foram produzidos, como avanços nas
técnicas
das artes gráficas ou da linguagem
que
representa e traduz informações cifradas sobre códigos de
comportamento. O cartaz criado
por Edward Penfield que anuncia a edição de fevereiro de 1897 da
revista Harper's,
escolhido para anúncio principal da exposição no Metropolitan e
também reproduzido na capa do catálogo, representa um caso emblemático para o recorte do acervo.
No cartaz de Penfield, quatro
figuras elegantes da burguesia, três
mulheres e um homem, todos
eles com seus chapéus da moda, viajam
de bonde e estão
lendo a
revista. Ao fundo, ao lado dos quatro personagens das elites, um representante da classe trabalhadora: o cobrador do bonde, que
também está mergulhado na leitura. Penfield criou cartazes sempre instigantes para cada nova edição da Harper's durante mais de sete anos. Em outro anúncio, criado em
1996 por Joseph J. Gould Jr. para a edição de julho da revista
Lippincott's,
estão
ousadias
gráficas e de costumes: a jovem elegante, vestida a rigor, está em
sua bicicleta e tem a revista nas mãos. Como inovação gráfica, o chapéu
amarelo da jovem cobre algumas letras do nome da revista, mas
sem
impedir a leitura.
Arte e documento histórico
Há uma grande diversidade de nomes identificados como criadores dos cartazes, no acervo reunido pelo museu, com destaque em número de obras para os norte-americanos Edward Penfield, Joseph Christian Leyendecker, Louis John Rhead e William Henry Bradley, além da surpreendente presença de mulheres no grupo de artistas, entre elas Florence Lundborg, Ethel Reed e Bertha Margaret Boyé, que era uma professora e militante política muito conhecida na época, e que venceu em 1911 o primeiro concurso de cartazes para o Movimento Sufragista de San Francisco, Califórnia, em defesa da legalização do direito do voto para mulheres. No cartaz, que faz parte do acervo, uma figura feminina com uma túnica amarela, lembrando o arquétipo de uma sacerdotisa, abre os braços para mostrar uma faixa onde se lê “Votes for Women” (Voto para mulheres). Atrás dela, o sol que está na linha do horizonte forma uma auréola sobre sua cabeça, como se indicasse simultaneamente um símbolo de beatitude e santidade e o alvorecer de novas oportunidades.
Mais de um século depois da criação da maioria das peças reunidas no acervo, ainda é possível identificar e reconhecer o impacto duradouro que os cartazes em estilo Art Nouveau continuam a exercer sobre as linguagens da ilustração, sobre o design gráfico e até sobre a forma e o conteúdo dos anúncios publicitários da atualidade. O acervo também confirma a importância do cartaz como documento histórico – um documento que registra e preserva informações preciosas, ocupando um lugar especial na interseção entre literatura, imprensa, design gráfico, sociologia, questões políticas, culturais e comportamentais da época em que foram produzidos. No ensaio que abre a apresentação das imagens do catálogo, a curadora Alisson Rudnick ressalta que, em cada um dos cartazes selecionados, está representado algo novo: são anúncios publicitários produzidos para terem duração efêmera, mas, estranhamente, mudaram de função com o passar do tempo e agora têm seu valor preservado e reconhecido como autênticas obras de arte.
por José Antônio Orlando.
Como citar:
ORLANDO, José Antônio. A invasão do Gibi. In: Blog Semióticas, 25 de junho de 2024. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2024/06/arte-do-cartaz-em-1900.html (acessado em .../.../…).
Para uma visita virtual à exposição do Metropolitan Museum, clique aqui.
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Cheguei até aqui pelo mais completo acaso, porque eu estava procurando imagens de cartazes da Belle Époque e encontrei um link para este Blog Semióticas. O que encontrei foi esta maravilha de postagem e de blog que é sensacional em tudo. Só esta postagem já vale por uma aula completa.
ResponderExcluirVou ter que voltar muitas vezes para reler e para visitar tantas postagens que, tenho certeza, também são de altíssimo nível.
Muito obrigada por compartilhar beleza e sabedoria. Ganhou mais uma fã de carteirinha.
Alessandra Monegal
Sensacional!
ResponderExcluirMuito obrigado por compartilhar estas histórias e imagens lindas que inspiram a gente e elevam o espírito. Eu não conhecia nenhuma destas imagens, acho que já tinha visto em algum lugar apenas o cartaz de Toulouse-Lautrec, mas amei a descoberta. Parabéns de novo por tudo neste blog Semióticas e por sua generosidade em compartilhar beleza e sabedoria.
Luis Antonio Nascimento
Maravilha de blog e de postagem.
ResponderExcluirMuito obrigada por compartilhar.
Mariana Dias Campos
Eu já conhecia o estilo gráfico destes cartazes, mas não sabia da importância histórica do surgimento deles nem desta explosão de Art Nouveau que parece tão atual. Toda esta história, contada por você, ganhou um tom literário que parece uma aula das melhores que já assisti. Muito obrigado por compartilhar.
ResponderExcluirEste blog Semióticas é um espetáculo.
Wagner Albuquerque