O
rapaz que tinha o olhar desvairado perscrutou o
vagão. Não havia ninguém mais — a não ser eu, e
eu dormia profundamente…
––
João
do Rio, “Dentro da noite” (1910).
|
Foi
o mais famoso codinome inventado pelo carioca João Paulo Emílio
Cristóvão dos Santos Coelho Barreto (1881-1921) – que também
assinou textos com vários outros nomes, entre eles Claude, Caran
d'Ache, Joe, José Antônio José. Polêmico, corajoso, inovador,
original, morreu jovem, mas chegou a ser eleito para a Academia
Brasileira de Letras. De origem humilde, João do Rio marcou época
como repórter e cronista, mas também alcançou a condição de
mestre como tradutor e autor de teatro, com suas sátiras políticas
e sociais – e para muitos é o inventor de um certo jeito carioca
de ser.
Apontado
como o maior jornalista de seu tempo, também foi um dos mais
controversos personagens das primeiras décadas da República, motivo
pelo qual foi sempre caluniado e diminuído por alguns de seus pares
e pelos adversários políticos e desafetos. Pode-se dizer que, se
não fosse seu gênio criador, por pouco Paulo Barreto – aliás,
João do Rio – seria um daqueles personagens que ficariam
esquecidos no passado.
Relegado
durante muito tempo à condição de cronista menor, nos últimos
anos o cronista do Rio Antigo teve seu prestígio aumentado. Hoje
considerado o criador da crônica social moderna e precursor da
geração modernista, o escritor acaba de ganhar o que talvez seja
sua biografia definitiva: "João do Rio: Vida, Paixão e Obra"
(Editora Civilização Brasileira). Escrita pelo também jornalista e
pesquisador João Carlos Rodrigues, a biografia exalta as facetas
pioneiras do cronista e o contexto de grandes transformações
(sociais, políticas, urbanísticas) em que sua obra incomum foi
produzida.
"Ele
antecipa muito do jornalismo contemporâneo", explica Rodrigues,
em entrevista por telefone. O biógrafo de João do Rio foi produtor
de discos, roteirista e diretor de cinema e TV, além de editor da
prestigiada revista "Filme Cultura" na década de 1980.
Rodrigues também pode ser classificado como especialista na obra do
cronista do Rio Antigo. Entre os livros que publicou estão uma
antologia de crônicas do autor, "Histórias da Gente Alegre",
o "Catálogo Biográfico João do Rio" e "João do
Rio: Uma Biografia", para o qual obteve, em 1990, uma Bolsa
Vitae de Literatura.
Vida e obra reunidas
Outros
três livros de João Carlos Rodrigues têm a questão do negro em
primeiro plano: o ensaio historiográfico "O Negro Brasileiro e
o Cinema", o catálogo "África Negra" e um estudo
biográfico sobre um pioneiro esquecido da bossa nova, "Johnny
Alf: Duas ou Três Coisas que Você não Sabe". "Ao
contrário de outros autores, acredito que uma boa biografia, além
de não ter pudores sobre a vida pessoal do biografado, não pode
também prescindir da análise da sua obra", destaca Rodrigues.
O
biógrafo de João do Rio cita trabalhos elogiados em outros países
para comprovar sua tese de que vida e obra têm que vir reunidas para
consagrar o estudo. "Alguns dos melhores trabalhos biográficos
que conheço seguem essa diretriz. Foi assim com Oscar Wilde por
Richard Ellman, Jean Genet por Edmund White, William Burroughs por
Ted Morgan, Proust por George Painter, e ainda Noel Rosa por Carlos
Didier e João Máximo, ou Lima Barreto por Francisco Assis Barbosa",
completa.
Há
muitas outras referências. Por exemplo: qualquer semelhança entre
os escritores João do Rio (1881-1921) e o irlandês Oscar Wilde
(1854-1900) não seria mera coincidência, alerta João Carlos
Rodrigues, carioca de 1949. Como Wilde, João do Rio caminhava com a
polêmica: era inovador, talentoso, nasceu quase pobre e ascendeu
socialmente, conquistando a fama e também o ódio que ela desperta
naqueles que são menos talentosos.
Tido
como excêntrico por seus hábitos pouco comuns que seus inimigos
apontavam como bizarros, "flâneur" (aquele que perambula
pelas ruas da cidade por prazer e sem compromisso), "dândi"
elegante e de cara raspada, numa época em que era obrigatório aos
homens de bem ostentar barba cultivada e vastos bigodes, cavanhaques
e suíças, João do Rio, como Oscar Wilde na Grã-Bretanha
vitoriana, estava décadas à frente de seu tempo e isso gerava
muitos desafetos. Não por acaso, João do Rio foi tradutor de Wilde
no Brasil: é dele a versão em português mais conhecida da peça
"Salomé", que Wilde publicou em 1894.
"Como
jornalista, ele foi um renovador histórico da imprensa brasileira,
fundindo a reportagem e a crônica num novo gênero personalíssimo e
então pouco comum", explica Rodrigues, para quem João do Rio
foi, como cidadão e artista, o arquétipo incomparável de uma época
sinistra. "Mulato, gordo e homossexual, era também, segundo os
provincianos da República Velha, um exemplo típico do carioca com
todas as suas qualidades e defeitos”, aponta.
Imitadores menos talentosos
Segundo
Rodrigues, o Rio de Janeiro da Belle Époque, que trazemos no
inconsciente sem o termos vivenciado, é em grande parte uma
“invenção” de João do Rio". O biógrafo também destaca
que, desde o início do século passado, a verve e o estilo de João
do Rio têm sido exaustivamente repetidos, através de décadas e
décadas, por imitadores cada vez menos talentosos. "Se como
autor de ficção ele filia-se à estirpe dos malditos, como cronista
ele antecipa todos os grandes jornalistas que fizeram carreira na
Capital Federal e alguns dos mais destacados cronistas em nossos
dias", avalia.
O
novo livro de Rodrigues teve origem em "João do Rio: Uma
Biografia", publicado em 1996 pela Top Books. Porém, alerta o
biógrafo, não é uma mera nova edição revista. "Foi
totalmente reescrito em mais da metade, eliminando trechos
redundantes, incluídas novas informações, corrigidos erros
tipográficos ou de informação, eventualmente esclarecidos ou
modificados alguns pontos de vista", explica.
Rodrigues
diz que teve a preocupação de fazer o segundo livro mais acessível,
com o cuidado de não perder a densidade das informações. "Acredito
que esta nova versão ficou muito melhor que a primeira",
conclui. A originalidade dos escritos na imprensa e em trabalhos
literários rendeu a João do Rio, há 100 anos, uma vaga na Academia
Brasileira de Letras.
Mais
que um jornalista, João do Rio foi um pioneiro que inovou por volta
de 1900 ao revelar, em seus muitos contos, crônicas e reportagens,
um Brasil e um Rio de Janeiro pouco conhecidos para os próprios
cariocas e para os brasileiros letrados de sua época. Nos diversos
jornais em que trabalhou, granjeou enorme popularidade, aclamado e
reconhecido como celebridade nas ruas, nos salões da sociedade e nos
bares da vida boêmia dos primeiros tempos da República.
Conto, crônica, reportagem
Como
homem de letras, deixou obras de valor inquestionável. Como
teatrólogo, um de seus grandes sucessos foi sua peça "A Bela
Madame Vargas", representada pela primeira vez em 22 de outubro
de 1912, no Teatro Municipal. Deixou obra vasta, mas efêmera, que de
modo algum representa sua importância da cultura brasileira e nem
corresponde à imensa popularidade que desfrutou em vida.
Quando
morreu, era diretor do jornal diário "A Pátria", que
fundara em 1920. Seu trabalho como jornalista também teve grande
destaque nos jornais "Cidade do Rio", criado e comandado
por José do Patrocínio, "Gazeta de Notícias" e "O
País", além das revistas importantes "Ilustração
Brasileira", "Kosmos" e "Renascença", entre
outras publicações do começo do século 20.
João
do Rio foi pioneiro também no cuidado com seus textos efêmeros que
foram publicados em jornais e revistas: grande parte deles foi
reunida pelo próprio autor em livros, entre eles "As Religiões
do Rio" (1906), "Cinematographo: Crônicas Cariocas" e
"A Alma Encantadora das Ruas" (1918), talvez sua obra mais
conhecida.
"É
preciso destacar que ele foi brutalmente atacado física e moralmente
nas páginas dos principais jornais cariocas de seu tempo",
destaca João Carlos Rodrigues. Segundo o biógrafo, depois de sua
morte trágica por um suposto ataque cardíaco, em plena rua, no
centro do Rio de Janeiro, antes dos 40 anos, João do Rio foi
rapidamente esquecido. Mas em que período da história da literatura
se encaixa sua obra? Rodrigues considera que esta é uma questão da
maior complexidade.
“Alfredo Bosi diz que João do Rio está no pré-modernismo. Lúcia Miguel Pereira, sempre intransigente, acha que o lugar dele é entre os nomes do realismo. Permitam-me discordar”, argumenta João Carlos Rodrigues. “A primeira definição é muito vaga, e a segunda não se sustenta com a leitura de qualquer um dos contos de 'Dentro da Noite', por exemplo, com sua aura de morbidez e maldição”.
Wilde e Proust como companhia
Para
o biógrafo, a obra e a importância de João do Rio não tem
equivalentes entre os escritores brasileiros de seu tempo. “Acredito
que ele fique mais à vontade enquadrado no decadentismo que
floresceu na Europa de meados do século XIX até a década de 1930. A grande verdade é que João do Rio foi o principal precursor do modernismo no Brasil",
aponta Rodrigues, lembrando que a obra de João do Rio está na
companhia de ilustres representantes como "O Retrato de Dorian
Gray" (1891), de Oscar Wilde, ou mesmo "Em Busca do Tempo
Perdido" (1913), de Marcel Proust.
"Um
tema comum a estes autores é o estranhamento e a insatisfação,
expressos quer em crônicas de viagem ao Oriente ou ao baixo mundo
ali da esquina, quer em obras ficcionais passadas nesses mesmos
cenários, ou em jornadas ao interior de si mesmos, movidas pela
magia do sobrenatural, pelo absinto, pelo ópio, pelo éter ou pelo
haxixe. Há todo um clima erótico, de grande ambiguidade, misógino, e que frequentemente descamba em misticismo ou sadomasoquismo. Todos
esses ingredientes estão presentes e em destaque nos textos de João do Rio", explica
Rodrigues.
Se
na literatura a expressão de João do Rio rende comparações aos
gênios universais de Oscar Wilde e Marcel Proust, o biógrafo também ressalta que, na imprensa, sua
atuação não foi nada menos que memorável. Ao reunir no mesmo
texto elementos característicos ao mesmo tempo da reportagem e da
crônica, ele criou um novo gênero que esbanjava originalidade.
Os
textos de João do Rio, publicados nos principais jornais da então
Capital Federal, sempre causavam grande admiração dos leitores, o
que rendeu ao autor muitos fãs, mas também muitos inimigos, como o
gaúcho Pinheiro Machado, temido figurão da República Velha. Muito
provavelmente, Paulo Barreto usou diversos pseudônimos em suas
matérias para fugir das previsíveis perseguições.
Tradução do Rio Antigo
Na
seara da sátira política e social, o autor produziu um inédito e
corajoso retrato do Rio de Janeiro e dos cariocas nas duas primeiras
décadas do século 20, conforme atestam as diversas obras reunidas
por ele próprio no livro "A Alma Encantadora das Ruas".
Amante daquela que desde aquele tempo era a mais popular das festas
brasileiras, João do Rio também destaca o Carnaval nos textos deste
verdadeiro retrato do Rio Antigo. O livro foi um dos primeiros
trabalhos de pesquisa de que se tem notícia a chamar a atenção da
imprensa e da alta sociedade para os espetáculos de Momo que reuniam
multidões nas ruas.
O Brasil
de João do Rio: acima, o antigo
Theatro
São Pedro, na Praça Tiradentes,
centro
do Rio de Janeiro. No alto, vista da
|
"Esta
imperdível biografia escrita por João Carlos Rodrigues penetra e
retransmite esse incêndio interior. Retém o fascínio da Belle
Époque tardia que este país conheceu", elogia na apresentação
do livro João Antônio, jornalista e escritor de livros que também
misturam reportagem e ficção. "E dela se poderá extrair um
filme incomum pela riqueza da vida e das gentes que povoaram o mundo
do escritor. Seu ritmo, tão romanesco como cinematográfico,
recupera uma humanidade rica, diferente, inédita e intensamente
brasileira".
João do Rio, um pioneiro
que atingiu domínios da literatura e do jornalismo que seus
contemporâneos não alcançavam, é a mais completa
tradução no Rio Antigo para o “flâneur”, aquele personagem que
o pensador alemão Walter Benjamin (1892-1940) iria identificar em
Baudelaire e em outros poetas malditos na Paris do século 19. Travestido
de repórter, João do Rio percorre as primeiras grandes avenidas,
ruas, becos, ladeiras e vielas, do centro à periferia, à procura da
matéria-prima de que é composta sua obra. O pintor da vida moderna
– com anuncia o ensaio célebre de Baudelaire publicado em 1863 no jornal "Le Figaro", um dos trabalhos do poeta e pensador francês dedicados ao estudo da arte e da literatura frente
à curiosidade urbana de sua época – também caberia como uma luva
para definir o lugar de João do Rio.
“O Rio, como todas as cidades nestes tempos de irreverência, tem em cada rua um templo e em cada homem uma crença diversa”, relata Paulo Barreto sob seu pseudônimo mais célebre. “Eu olhava a turba colorida, a série de perfis exóticos, de caras espanholas e árabes, de olhos luminosos brilhando à luz dos lampadários. Havia gente morena, gente clara; mulheres vestidas à moda hebraica de túnica e alpercata, mostrando os pés, homens de chapéus enterrados na cabeça, caras femininas de lenço amarrado na testa e crianças lindas”. Ao leitor mais atento, a impressão dominante é que João do Rio pintava as cenas cariocas de hoje mesmo ou de ontem, talvez, e não há mais de um século.
O
“flâneur” tupiniquim
pintou como poucos a realidade carioca, como ele descreve em seus textos de impressionante atualidade, entre eles “As Religiões no
Rio”, coletânea de artigos e ensaios que publicou na
imprensa e depois reuniu em livro, em 1904, pela livraria Garnier, de
Paris, que também publicava os livros de Machado de Assis. Reeditada
pela primeira vez quase um século depois, pela Nova Aguilar, em
1976, a coletânea de João do Rio traz
em cabalísticos 27 escritos uma seleção de suas investigações e reflexões sobre feitiços, simpatias, espiritismo, judaísmo, satanismo, exorcismo e cultos diversos, de católicos e protestantes a evangélicos, religiões de origem africana, maronistas, positivistas e outros tantos.
A variedade de rituais é precedida por uma introdução escrita por ele mesmo em que os verbos “pintar” e “escrever” são tomados como sinônimo para observar e descrever as diversas formas de espiritualidade e o estranho fenômeno daqueles mercadores da fé que propagam falsidades e mentiras para, desavergonhadamente, dominar corações e mentes das vítimas de bom coração – em nome, quase sempre, de um Deus cruel, vingativo, e na verdade muitas vezes, para os próprios mercadores, inexistente.
A variedade de rituais é precedida por uma introdução escrita por ele mesmo em que os verbos “pintar” e “escrever” são tomados como sinônimo para observar e descrever as diversas formas de espiritualidade e o estranho fenômeno daqueles mercadores da fé que propagam falsidades e mentiras para, desavergonhadamente, dominar corações e mentes das vítimas de bom coração – em nome, quase sempre, de um Deus cruel, vingativo, e na verdade muitas vezes, para os próprios mercadores, inexistente.
“O Rio, como todas as cidades nestes tempos de irreverência, tem em cada rua um templo e em cada homem uma crença diversa”, relata Paulo Barreto sob seu pseudônimo mais célebre. “Eu olhava a turba colorida, a série de perfis exóticos, de caras espanholas e árabes, de olhos luminosos brilhando à luz dos lampadários. Havia gente morena, gente clara; mulheres vestidas à moda hebraica de túnica e alpercata, mostrando os pés, homens de chapéus enterrados na cabeça, caras femininas de lenço amarrado na testa e crianças lindas”. Ao leitor mais atento, a impressão dominante é que João do Rio pintava as cenas cariocas de hoje mesmo ou de ontem, talvez, e não há mais de um século.
por José
Antônio Orlando.
Como
citar:
ORLANDO,
José Antônio. O Brasil de João do Rio. In: Blog
Semióticas,
1° de março de 2012. Disponível no link
http://semioticas1.blogspot.com/2012/03/joao-do-rio.html
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Brasil
de João do Rio: entrada do Rio de Janeiro,
vendo-se
o cais Pharoux e suas adjacências, em
fotografia
de Marc Ferrez do final do século 19