Música é o silêncio que existe entre as notas, como disse algum filósofo. A linguagem musical me basta.
– Tom Jobim (1927-1994). |
Tem
algo de estranho e de extremamente familiar em “A Música segundo
Tom Jobim”. Não é um documentário no sentido tradicional, com
entrevistas, narração em off, texto na tela. Na verdade, não há
nenhum texto, nenhuma entrevista, nenhuma narração. Parece mais um
show, ou antes um concerto: somente a beleza das canções de Tom com
ele mesmo e com dezenas de grandes intérpretes do Brasil e de outros
países. Um detalhe que faz toda a diferença para embalar as
melhores lembranças dos admiradores de Tom e da boa música: os
créditos identificando canções, intérpretes, datas e outras
referências só aparecem no final do filme...
Encontrei
o diretor Nelson Pereira dos Santos após a sessão especial para
convidados em Belo Horizonte, no Diamond Mall. Foi uma breve
entrevista, que por sorte continuou na manhã seguinte, pelo
telefone, com o cineasta a caminho do aeroporto. Começo a conversa
comentando sobre a estranheza do formato do documentário e pergunto
qual foi o modelo, se há outro filme que segue esta mesma estrutura
narrativa.
“Não
verdade não há outro filme assim. Acho que inventamos um novo
modelo que não havia sido realizado antes”, ele diz, bem-humorado
e feliz com a recepção emocionada da plateia de convidados que
incluía imprensa, músicos e a família de Tom – sua irmã Helena,
que mora há alguns anos em Belo Horizonte, e os netos, entre eles
Dora Jobim, que dividiu com Nelson a direção do filme. “Mas não
foi uma invenção premeditada”, alerta o cineasta, realizador de “Rio, 40 Graus” (1955), “Vidas Secas” (1963), “Como Era Gostoso o Meu
Francês” (1971), “Memórias do Cárcere” (1984) e outros clássicos de primeira linha do
cinema no Brasil.
“Durante
nossas tentativas de encontrar uma linguagem original para apresentar
este filme, nos trabalhos de produção e no processo de edição,
este novo formato foi se impondo", explica o diretor. "Chegamos
a produzir uma narração em off, depois descartamos e começamos a
gravar depoimentos do Chico Buarque, que seriam uma forma de
apresentar cada uma das cerca de 40 canções selecionadas. Mas
também descartamos quando percebemos que cada canção falava por si
só e tudo ficou mais espontâneo".
Nelson
Pereira dos Santos recorda que foram muitas tentativas antes de
encontrar o caminho para que o documentário apresentasse sua
linguagem original. "Tentamos várias opções para a narração.
Todas foram descartadas porque soavam repetitivas. Até que veio o
formato definitivo, sem nenhuma narração e nenhuma legenda, com maior espaço para a
música e as imagens em fusões e sobreposições. Funciona até como um aspecto lúdico, porque o público pode tentar descobrir quem canta, qual é a canção. Como você viu, somente ao final do filme temos a lista de créditos que identifica cada imagem de arquivo”, explica o
diretor, que também anuncia para o próximo ano um outro
documentário sobre Tom Jobim, agora no formato tradicional.
Nelson
destaca que o segundo filme, na verdade, ficou pronto antes deste “A
Música Segundo Tom Jobim”. “O título do outro filme sobre Tom Jobim é 'A
Luz do Tom' e ele foi feito primeiro. É um projeto meu e do Marcos
Altberg e tem como foco três mulheres da maior importância na vida
e na música do Tom. O outro documentário reúne os depoimentos das
três, cada uma em seu espaço. São elas a Helena Jobim, irmã do
Tom e autora de uma biografia sobre ele, mais a Thereza de Otero
Hermanny, primeira namorada do Tom, primeira esposa e mãe do Paulo
Jobim. E também a última esposa, a Ana Lontra Jobim, que acompanhou
o Tom nos discos e nas turnês com a Banda Nova. Este segundo projeto
vai estrear no início do próximo ano, assim que conseguirmos lugar
na agenda dos blockbusters que dominam a programação dos cinemas
brasileiros”.
Pergunto
por qual motivo “A Música Segundo Tom Jobim” foi lançado
antes, se foi feito depois de “A Luz do Tom”. Nelson explica que
preferiu lançar o filme musical primeiro. “O musical tem mais
apelo de público, porque todo mundo no mundo inteiro conhece as
músicas do Tom e não tem como não se encantar. Este primeiro
documentário, com as canções maravilhosas do Tom, vai funcionar também como uma espécie de campanha de divulgação
para o segundo filme”, ele diz.
Pergunto
também sobre a ausência mais sensível neste “A Música Segundo
Tom Jobim”: João Gilberto, o principal nome da Bossa Nova e para
muitos o intérprete mais importante de todos para as canções de
Tom. “Isso foi um problema. Mas, na verdade, João Gilberto
aparece logo nas primeiras cenas do filme, quando apresentamos os
primeiros passos da Bossa Nova. João aparece em segundo plano,
tocando violão enquanto Elizeth Cardoso canta. Também aparece na
imagem da capa do disco 'Chega de Saudade' e em uma fotografia de um
texto do próprio Tom sobre ele".
Segundo
Nelson, o impedimento de uso das imagens de João Gilberto foi devido
a uma questão de direitos autorais. "Todo o material disponível
com imagens do João Gilberto interpretando canções do Tom Jobim
está comprometido com outro filme, também um documentário, que o
próprio João está produzindo e que também deve ser lançado em
breve. Queria muito ter incluído as imagens do João Gilberto
cantando algum dos clássicos que fizeram a história da Bossa Nova,
mas infelizmente não foi possível”, confessa o cineasta.
Depois
da justificativa do diretor sobre João Gilberto, pergunto sobre a
outra ausência também marcante do documentário: a falta de Astrud
Gilberto. Por que não há nenhuma sequência no filme com a interpretação suave e marcante de Astrud, a primeira
esposa de João Gilberto e primeira intérprete das canções de Tom
Jobim nas versões em inglês, no mercado internacional, ainda no começo da
década de 1960?
“Ah, Astrud, Astrud... Foi outro grande problema, porque há muito pouco material
disponível com imagens dela cantando e a negociação dos direitos
autorais acabou não acontecendo a tempo. Não foi possível, ao
contrário de todos os outros que aparecem no filme, com as
negociações dos direitos que foram muito mais tranquilas, incluindo
Elis Regina e todos os brasileiros e aqueles grandes nomes do jazz e
da música internacional, de Frank Sinatra a Ella Fitzgerald, Sarah
Vaughn, Errol Garner, Oscar Petterson, Judy Garland, Henri Salvador,
Sammy Davis Jr. e todos os outros", explica. Segundo Nelson,
todos os herdeiros cederam os direitos das imagens, sem fazer nenhuma
grande exigência.
Para
concluir a entrevista, pergunto qual é o filme brasileiro preferido
na agenda do cineasta. "Muitos", foi a resposta, entre
sorrisos, depois de uma pequena pausa. Também pergunto sobre sua preferida entre todas as
canções que têm a marca de Tom Jobim. Ele esboça uma gargalhada,
faz uma breve pausa e diz que são todas. “Todas são lindas, cada
uma mais que a outra. Mas na verdade o que acontece comigo acho que
acontece com todo mundo, pois cada dia tenho uma preferida. Ou
melhor, depende do dia, depende da hora, depende do estado de
espírito. Mas são todas lindas. Não há motivo para escolher apenas uma delas”.
Sobre
seus próximos projetos no cinema, depois de ter dedicado os últimos
anos ao mergulho em profundidade na música e na Bossa Nova, através
dos dois documentários sobre Tom Jobim, Nelson diz que já está
trabalhando há algum tempo em um roteiro sobre outro brasileiro por certo
fundamental: seu próximo filme será dedicado ao imperador Dom Pedro
2°.
“Para
este próximo projeto estamos ainda naquela fase tortuosa da captação
de recursos", explica o diretor. "Mas está certo que será
um filme sobre Dom Pedro 2°. O que pretendo é que também seja um
filme diferente, que possa investir em questões de linguagem e
acrescentar algo à memória que o brasileiro tem sobre nosso último
imperador. O que já decidi é que será um filme que vai misturar o formato de documentário com a recriação de uma ou outra cena com atores, reconstituindo
alguns aspectos daquela época, na segunda metade do século 19".
"Posso
dizer que este próximo trabalho será um filme com muito de ficção,
mas baseado no trabalho de um historiador importante, o mineiro José
Murilo de Carvalho, que em 2007 publicou uma biografia maravilhosa
do imperador", explica o diretor. "É um projeto para os
próximos meses ou para o próximo ano, porque por enquanto ainda
estou com as atenções voltadas para o Tom Jobim e para o lançamento
aqui e no exterior dos dois documentários. Quero acompanhar os
filmes e a recepção que eles vão alcançar”, completa.
Depois
da entrevista, ainda em estado de graça pela beleza do filme e das
canções e pela sabedoria do cinema de Nelson Pereira dos Santos,
fico pensando nas imagens e na música que, a partir do Rio de
Janeiro, Tom Jobim compôs para o mundo. Uma frase muito conhecida do próprio Tom, que
encerra o documentário – na verdade, a única frase, escrita ou
falada, que o filme apresenta – é emblemática: “A linguagem
musical me basta”.
Frase exemplar, precisa, resumo do existido, poética e extremamente
familiar, que traduz à perfeição um documentário inspirado e inspirador, “inventado” a
partir dos encadeamentos da seleção de canções do maestro da Bossa Nova. O filme e a
frase final me fazem lembrar de outras frases célebres de Tom Jobim, quase sempre irônicas e zombeteiras,
bem no espírito que o compositor fazia transparecer nas entrevistas
que os programas de TV sempre reprisam. Escolho apenas duas, para concluir.
A primeira é aquela de quando lhe perguntaram o que ele tinha a dizer sobre o fato de “Garota de Ipanema” ser a segunda canção mais gravada do mundo, só perdendo para “Yesterday”, dos Beatles, e Tom respondeu: “Ah, aí não vale. Eles eram quatro e já compunham direto em inglês”. A segunda tem maior complexidade, e eleva a ironia a uma interface mais amarga, em parentesco talvez com algo de trágico ou de profundamente melancólico, quando se observa uma linha do tempo da trajetória acidentada do Brasil e dos brasileiros: Tom declarou, certa vez, que “o Brasil, definitivamente, não é para principiantes”.
A primeira é aquela de quando lhe perguntaram o que ele tinha a dizer sobre o fato de “Garota de Ipanema” ser a segunda canção mais gravada do mundo, só perdendo para “Yesterday”, dos Beatles, e Tom respondeu: “Ah, aí não vale. Eles eram quatro e já compunham direto em inglês”. A segunda tem maior complexidade, e eleva a ironia a uma interface mais amarga, em parentesco talvez com algo de trágico ou de profundamente melancólico, quando se observa uma linha do tempo da trajetória acidentada do Brasil e dos brasileiros: Tom declarou, certa vez, que “o Brasil, definitivamente, não é para principiantes”.
por
José Antônio Orlando.
Como
citar:
ORLANDO,
José Antônio. O mundo segundo Tom Jobim. In: Blog
Semióticas,
20 de janeiro de 2012. Disponível no link
http://semioticas1.blogspot.com/2012/01/musica-segundo-tom-jobim.html
(acessado em .../.../…).
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