A palavra “levante” tem muitos significados além do ato ou efeito
de erguer ou levantar. Os dicionários registram dúzias de
sinônimos, todos com o mesmo sentido rebelde de desobediência,
desordem, irreverência, indisciplina, insubordinação, insurreição, contestação,
rebelião, revolta, motim, protesto, manifestação, reivindicação, sublevação, subversão,
transgressão, teimosia, tumulto, resistência, revolução. Levantes, no
plural, com todas as variantes que a palavra representa, é o tema da
exposição internacional que chegou ao Brasil e está
aberta ao público no Sesc Pinheiros, em São Paulo, até 28 de janeiro de 2018, seguindo depois uma agenda itinerante que inclui temporadas no México e depois no Canadá e outros países.
Inaugurada
no espaço Jeu de Palme em Paris, França, onde ficou em cartaz de
outubro de 2016 a janeiro de 2017, sob curadoria do filósofo e
historiador francês Georges Didi-Huberman, e com o título original
de “Soulèvements”, a exposição teve temporadas nas cidades de
Barcelona, na Espanha, e Buenos Aires, na Argentina, antes de chegar
a São Paulo. A proposta original, através da exibição de cerca de 200 obras dos últimos dois séculos, de diversos países, entre instalações,
fotografias, pinturas, desenhos, gravuras, vídeos, filmes e
documentos diversos, é, nas palavras do curador, apresentar múltiplas maneiras de transformar a quietude em movimento, a submissão
em revolta, a renúncia em alegria expansiva.
A
cada nova cidade que a exposição visita, desde Barcelona e Buenos
Aires, a curadoria tem a iniciativa inédita em eventos semelhantes
de inserir novas obras diretamente ligadas ao contexto local. No caso
brasileiro, Didi-Huberman providenciou como complemento uma série de
conteúdos relacionados à escravidão, à negritude e à pobreza –
temas representados em obras que ele selecionou de nomes como
Sebastião Salgado, Hélio Oiticica e Oswald de Andrade. Não se
trata, contudo, de apresentar uma antologia de imagens de protestos
populares, conforme esclarece o curador em entrevistas e no catálogo
da exposição, editado com o acervo das obras e com ensaios escritos
especialmente para o evento por pensadores de destaque, entre eles a norte-americana Judith
Butler e os franceses Nicole Brenez e Jacques Rancière.
Uma
constelação de imagens
O
objetivo de “Levantes”, explicou Didi-Huberman em uma entrevista
em junho de 2017 ao jornal “Página 12” da Argentina, é
apresentar não uma antologia cronológica de imagens, mas uma
constelação em que as imagens se relacionam em cinco blocos ou
eixos: “elementos”, “gestos”, “palavras”, “conflitos”,
“desejos”. “As imagens reunidas, a princípio”, destaca o
curador, “funcionam por meio dos gestos. O fato é que quando se
está alienado e se protesta contra essa alienação, o protesto toma
uma forma corporal: é o braço que se levanta, o corpo que se
movimenta, a boca que se abre, entre palavras e cantos, tudo isso é
corporal. O corpo humano é a coisa mais antiga que possuímos, o
corpo humano é mais antigo que um fóssil, que uma obra de arte
grega; o corpo humano é muito antigo, é nossa antiguidade.”
Levantes por Didi-Huberman: no alto, duas gravuras de Francisco de Goya datadas do início do século 19, El cargador e No harás nada con clamor. Acima, a comemoração dos marinheiros no motim a bordo do Encouraçado Potemkin, filme de 1925 de Serguei Eisenstein. Abaixo, crianças brincando em Barcelona, na época da Guerra Civil Espanhola, em fotografia de 1936 de Agustí Centelles |
A
investigação que a curadoria de Didi-Huberman propõe ao visitante
da exposição, ou
mesmo ao leitor que observa as imagens do catálogo, segue
o percalço dos gestos – dos trabalhadores braçais individualizados
em desenhos e aquarelas do espanhol Francisco de Goya (1746-1828) às
associações de revolta coletiva em cenas dos filmes do russo
Serguei Eisenstein (1898-1948) e
daí às representações contemporâneas da contracultura e das
contestações mais diversas da atualidade.
Em cada gesto, diferentes formas de representações dos levantes de
rebeldia, sejam elas de apenas um indivíduo ou de multidões
engajadas em transformações sociais, políticas, religiosas,
éticas,
estéticas. Na maioria das representações, não por acaso, o
protesto contra a opressão surge na imagem de
um
mesmo gesto
que
se repete aqui e ali com algumas variações:
os braços erguidos em direção ao céu.
No
catálogo da exposição, Didi-Huberman também ressalta
esta coincidência do mesmo
gesto.
“Levantar-se é resistir, erguer o punho ou o braço é resistir”,
destaca. “Antes mesmo de começar e levar adiante uma ação
voluntária e compartilhada, o levantar se faz por um simples gesto
que, de repente, vem revirar
a prostração que até então nos mantinha submissos (por covardia,
cinismo ou desespero). Levantar-se é jogar longe o fardo que pesava
sobre nossos ombros e entravava o movimento. É quebrar certo
presente – mesmo que a marteladas, como queriam Friedrich Nietzsche
e Antonin Artaud – e erguer os braços ao futuro que se abre é um
sinal de esperança e de resistência. É um gesto e
uma emoção (…). No gesto do levante, cada corpo protesta por meio
de todos os seus membros, cada boca se abre e exclama o não da
recusa e o sim do desejo.”
. |
Gestos contra tempos sombrios
A
atualidade dos gestos de resistência e de rebelião contra os tempos
sombrios do
discurso do ódio e das ações violentas, de grupos de direita e extrema direita, move
a constelação de imagens, textos
e objetos selecionados por Didi-Huberman para
convidar
a reflexões sobre as manifestações populares por meio da arte.
Porque,
afinal, não há levantes e
resistência sem arte, sem música, hinos, palavras de ordem, sem imagens que ficarão na
memória.
O próprio curador alerta, na apresentação à exposição, que um levante pode acabar em lágrimas de decepções, em lágrimas de mães chorando sobre os filhos mortos, mas ele também adverte que essas lágrimas não são de esgotamento: elas ainda podem ser força de ação e paixão, de teimosia e rebeldia –– “como nas marchas de resistência das mães e avós de Buenos Aires (…), seja na floresta do Chiapas, na fronteira greco-macedônica, em qualquer parte da China, no Egito, em Gaza ou na selva das redes da internet, pensadas como uma Vox Populi. Sempre haverá uma criança que pule o muro.”
Movimentos políticos ou objetos de arte? A potência física e visual dos corpos que resistem contra as formas de opressão está sempre na fronteira dos sentidos que podemos encontrar, conforme destacou Didi-Huberman na conferência “Imagens e Sons como Forma de Luta”, que marcou a abertura da exposição “Levantes” em São Paulo. Segundo o curador, “as imagens pertencem a todo mundo. Não há autoctonia, nem propriedade no universo das imagens. Como todos os objetos culturais, as imagens são feitas para migrar, a exemplo do selo que é feito para atravessar uma fronteira. Porém, o legado dos levantes depende de nós, da nossa capacidade de transmitir o sentido dessas imagens.”
O próprio curador alerta, na apresentação à exposição, que um levante pode acabar em lágrimas de decepções, em lágrimas de mães chorando sobre os filhos mortos, mas ele também adverte que essas lágrimas não são de esgotamento: elas ainda podem ser força de ação e paixão, de teimosia e rebeldia –– “como nas marchas de resistência das mães e avós de Buenos Aires (…), seja na floresta do Chiapas, na fronteira greco-macedônica, em qualquer parte da China, no Egito, em Gaza ou na selva das redes da internet, pensadas como uma Vox Populi. Sempre haverá uma criança que pule o muro.”
Movimentos políticos ou objetos de arte? A potência física e visual dos corpos que resistem contra as formas de opressão está sempre na fronteira dos sentidos que podemos encontrar, conforme destacou Didi-Huberman na conferência “Imagens e Sons como Forma de Luta”, que marcou a abertura da exposição “Levantes” em São Paulo. Segundo o curador, “as imagens pertencem a todo mundo. Não há autoctonia, nem propriedade no universo das imagens. Como todos os objetos culturais, as imagens são feitas para migrar, a exemplo do selo que é feito para atravessar uma fronteira. Porém, o legado dos levantes depende de nós, da nossa capacidade de transmitir o sentido dessas imagens.”
Na
trajetória de Didi-Huberman, que nas últimas duas décadas está presente
com seus livros e ensaios como teórico da arte e da cultura em destaque e como
referência importante em diversas áreas da pesquisa acadêmica, a
exposição “Levantes” marca um novo capítulo no percurso de
curadoria que ele iniciou em 2010 com a mostra intitulada “Atlas –– Como levar o mundo às costas?”,
inaugurada no Museu Reina Sofía, em Madri. “Atlas”, a exposição,
foi motivada pelos estudos de Didi-Huberman sobre o historiador
alemão Aby Warburg (1866-1929), conhecido pela criação
de
pranchas de montagens iconográficas, nomeadas por
ele de
“Atlas Mnemosyne”, um projeto concebido entre 1924 e 1929 e que ficou inacabado na meta de relacionar uma
grande variedade de imagens
de épocas e de geografias
distintas.
Diálogo
entre passado e presente
O
observador atento poderá perceber que a figura mitológica do Atlas,
o titã gigantesco imaginado
na Grécia da Antiguidade que
ergue os braços para sustentar o peso do globo terrestre, permanece como referência incontornável para
a
exposição “Levantes”. As
diferenças são sutis: enquanto em “Atlas” o trabalho de
curadoria encontrava analogias visuais entre representações
diversas, exibindo lado a lado gravuras, vídeos e fotografias
aleatórias que estabeleciam um certo diálogo conceitual, em
“Levantes” são as constelações de variações sobre gestos de
punhos e braços que fazem emergir trajetórias
e memórias
de manifestações históricas –– todas elas construindo entre si
um diálogo intenso entre passado e presente, entre repetição e
sobrevivência das formas e dos ideais.
À
imensidão de levantes em épocas e geografias diversas, dos
primórdios da Revolução Industrial à comoção das multidões em
Havana no auge da Revolução Cubana, das
legiões de
estivadores chineses de meados do século 20 aos rostos
contemporâneos nas
fileiras do
Occupy Wall Street em Nova York, de momentos dramáticos do movimento
feminista a surpreendentes flagrantes anônimos ou desconhecidos
sobre a natureza humana de
mulheres e homens em
seus anseios por melhores condições de vida, Didi-Huberman
acrescenta, na
montagem da exposição no Brasil, referências
à memória da resistência e das insurreições em
território nacional.
A
História sempre pode ser reconstruída através de cacos e de
resquícios que foram considerados como detritos pela história
oficial –– como professa o pensador alemão Walter Benjamin
(1892-1940), um dos mestres na linhagem a que se filia o trabalho e
as ideias de Didi-Huberman.
Testemunho,
paradoxo, esperança
Assim
é que o público
pode
encontrar
na
montagem brasileira de “Levantes”
as
fotografias de Sebastião Salgado que registram ações do MST
(Movimento dos Sem Terra), o
cartaz “Seja marginal, seja herói” e os
flagrantes
libertários dos Parangolés de Hélio Oiticica (a
partir de fotogramas que Eduardo Viveiros de Castro extraiu do filme
“H.O.” de Ivan Cardoso), a poesia dos manifestos Pau-Brasil e
Antropofágico de Oswald de Andrade, fragmentos de “Os Sertões”
de Euclides da Cunha, fiéis na procissão de Bom Jesus de Matosinhos
em Congonhas, Minas Gerais, em fotografias da década de 1950 de
Marcel Gautherot, e a percepção do racismo em imagens da série
“Dito Escuro”, que Rafael RG registrou em 2014. Entre tantas
imagens de impacto, que provocam memórias e reflexões e paixões,
Didi-Huberman repete a presença de quatro fotografias em pequeno
formato que fazem parte de momentos anteriores de sua reflexão
filosófica em livros, ensaios e conferências.
As
quatro fotografias, à primeira vista enigmáticas e quase indecifráveis,
permanecem
como
os
únicos registros visuais que sobreviveram ao tempo dos campos de
extermínio do Holocausto na Segunda Guerra, em Auschwitz-Birkenau. São imagens realistas e de valor simbólico muito forte que só recentemente se tornaram conhecidas, depois de décadas. O curador Didi-Huberman confessa que as quatro fotografias estão na gênese da ideia inicial que resultou no projeto “Levantes”.
Alguns pedaços de película de filme, alguns gestos políticos: as quatro fotografias foram feitas em agosto de 1944, clandestinamente, por um integrante dos Sonderkommandos, os pequenos grupos de judeus que tiveram a terrível tarefa de colocar na câmara de gás seus semelhantes, depois enterrá-los, sendo que eles próprios também eram executados em seguida. As fotografias ficaram escondidas em um tubo de pasta de dente com uma breve carta explicativa. Perturbadoras, mostram à distância fileiras de mulheres e, lado a lado, cadáveres queimados. Imagens que revelam. Testemunhos, extremos, que resistiram à violência, ao tempo, e chegaram ao futuro. E que também são, na escuridão, por paradoxo, esperança.
Alguns pedaços de película de filme, alguns gestos políticos: as quatro fotografias foram feitas em agosto de 1944, clandestinamente, por um integrante dos Sonderkommandos, os pequenos grupos de judeus que tiveram a terrível tarefa de colocar na câmara de gás seus semelhantes, depois enterrá-los, sendo que eles próprios também eram executados em seguida. As fotografias ficaram escondidas em um tubo de pasta de dente com uma breve carta explicativa. Perturbadoras, mostram à distância fileiras de mulheres e, lado a lado, cadáveres queimados. Imagens que revelam. Testemunhos, extremos, que resistiram à violência, ao tempo, e chegaram ao futuro. E que também são, na escuridão, por paradoxo, esperança.
por
José Antônio Orlando.
Como citar:
ORLANDO, José Antônio. Levantes por Didi-Huberman. In: Blog Semióticas, 11 de novembro de 2017. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2017/11/levantes-por-didi-huberman.html (acessado em .../.../...).
Para
assistir a conferência Imagens
e Sons como Formas de Luta,
de Georges Didi-Huberman, clique aqui.
Para
ler a entrevista de Didi-Huberman ao jornal da Argentina Página
12 sobre
a exposição Levantes, clique aqui.
Para
ler a entrevista de Didi-Huberman à revista francesa L'Humanité
sobre
a abertura da exposição Soulèvements na França, clique aqui.