Em um de
seus célebres ensaios, o francês Roland Barthes (1915-1980)
interroga o leitor sobre as competições esportivas que, ele recorda, são espetáculos que vêm de outras eras, herdados de épocas ancestrais, resquícios dos antigos
sacrifícios religiosos. "Que necessidade têm esses homens de
atacar? Por que ficam perturbados diante desse espetáculo? Por que
dão tudo de si? Por que esse combate inútil? O que é o esporte?" – questiona o pensador.
O próprio
Barthes encontra a resposta, na frase seguinte, segundo a qual o
esporte remete sempre a outra pergunta – quem é o melhor? – e dá
novo sentido à questão dos antigos duelos. "Quem é o melhor
para vencer a resistência das coisas, a imobilidade da natureza?
Quem é o melhor para trabalhar o mundo e oferecê-lo a todos os
homens? Eis o que diz o esporte. O esporte é feito para relatar o
contrato humano", professa a sabedoria de Barthes.
Escrito em
1961 e mantido inédito em português até 2009, quando foi publicado
no terceiro número da revista "Serrote", do Instituto
Moreira Salles (IMS), o ensaio de Barthes, intitulado "O que é o
esporte?", destaca aspectos mitológicos e cotidianos das arenas
esportivas, nas quais o homem não enfrenta diretamente o homem: há
entre eles um intermediário, algo que está em jogo na cerimônia da disputa, algo que pode ser máquina, pode ser disco, pode ser bola.
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No caso
brasileiro, entretanto, o que faz do futebol um esporte nacional? O
ilustrador, pintor e escritor Odilon Moraes enfrenta a questão e
busca a natureza mitológica do mais nacional dos esportes criando uma sequência de imagens que seduz e encanta até mesmo os pequenos leitores ainda não alfabetizados. A resposta do ilustrador e contador de histórias é construída pela simplicidade de um fragmento de memória da vida cotidiana de um garoto comum representada de
forma muito pouco usual.
O traço azul do lápis
Sem nenhuma palavra – apenas com o traço azul do lápis que preenche com cores verde-amarelas camisas da seleção e bandeirinhas brasileiras – Odilon Moraes constrói, nas 48 páginas do livro-imagem "O Presente" (editora Cosac Naify), uma sequência de reminiscências da infância que deixa em destaque uma vivência comum a gerações e gerações de brasileirinhos: a descoberta da paixão pelo futebol.
"Meu
livro é uma mistura de várias referências, principalmente minhas
próprias memórias de infância e as experiências vividas com as
primeiras Copas do Mundo assistidas pela TV", explica Odilon, respondendo à pergunta que fiz para esclarecer minha suspeita de que "O Presente" contava uma história autobiográfica de algum momento da infância do autor, um paulista que nasceu na capital, em 1966, mas passou a infância e a
adolescência em Tanabi e outras cidades do interior paulista.
"Meu
pai comprou a primeira TV a cores depois da Copa de 1974. Mas
assistimos aos jogos do Brasil na casa de um amigo dele. Foi
inesquecível, apesar das imagens cheias de chuviscos e de
fantasmas", ironiza o autor, na breve entrevista que fiz com ele por telefone. Depois que confesso que "O Presente" me fez lembrar de minha própria infância, com os mesmos cenários e personagens, Odilon resgata na conversa ou ou outro caso curioso que permaneceu
gravado em suas lembranças de criança e conta que tem dois filhos
pequenos, de quatro e de um ano de idade, que atualmente fazem as
vezes de primeiros leitores do pai escritor e ilustrador.
"Como
toda arte e toda literatura, 'O Presente' é um apanhado de várias
verdades para formar uma ficção", define. A opção pela
ausência de palavras no livro, ele reconhece, nasceu da atividade
profissional que o leva no dia a dia a ilustrar textos de outros
autores. "A experiência me fez perceber que o desenho conta
coisas diferentes da palavra, assim como as palavras dizem coisas que
a imagem sozinha às vezes não consegue traduzir", explica.
Ele também acredita que um livro ilustrado, sem palavras, destaca melhor o poder que a imagem
tem, inclusive de transformar a palavra. "Mesmo em um livro ilustrado em que há palavras, acontece este poder quase mágico da transformação da realidade. Você vê a palavra e entende uma
coisa, olha a imagem entende outra, e vice-versa. A grande riqueza é
esse jogo entre palavras e imagens e isso significa interdependência", ressalta o autor, com o conhecimento de causa de quem é também o ilustrador.
Segundo Odilon Moraes, a forma de narrativa do livro ilustrado traduz a
maneira como compreendemos o mundo. "A gente não compreende o mundo apenas pelas
palavras. A gente compreende o mundo pelas palavras e pelas imagens. O leitor
precisa se sujeitar a essa dupla orientação, uma coisa contada pela
imagem e outra pela palavra, que muitas vezes não se cruzam. Mesmo
quando querem contar a mesma coisa, são coisas contadas de forma diferente", completa.
Formado em
Arquitetura, Odilon Moraes estreou como autor em 2002, com "A
Princesinha Medrosa", relançado pela Cosac Naify em 2009.
Depois vieram "Pedro e Lua" (2004) e o livro-objeto
"Ismália" (2006), criado a partir do poema de Alphonsus de
Guimaraens. Recebeu prêmios de melhor livro do ano pela Fundação
Nacional do Livro Infantil e Juvenil e também ilustrou "O Homem
que Sabia Javanês" (2003), de Lima Barreto, "O Presente
dos Magos" (2004), de O. Henry, e "Será o Benedito!"
(2008), de Mário de Andrade, entre outros.
O melhor caminho
Ele também faz questão de ressaltar que nem sempre o livro ilustrado é literatura infantil. "A literatura infantil existiu antes do livro ilustrado. Existiam histórias para crianças, mas eram os pais ou os adultos que liam para elas. A partir do final do século 19 é que surge o livro-brinquedo, o livro que é criado para ser manuseado pela criança. O próprio fato de usar a imagem
como narrativa é uma derivação do universo da criança, assim como
imagens coloridas, pouco texto, imprevisibilidade na exploração do
objeto. Então, podemos dizer que o livro ilustrado nasce dentro desse
pensamento do livro-brinquedo, onde desponta uma curiosidade, que é a
ilustração passar a ser um trilho para construir histórias".
Na atualidade, alguns autores dizem que o livro ilustrado é literatura
pós-moderna, porque congrega vários elementos: a imagem, a palavra e às
vezes o objeto. Minha teoria é que, pelo fato de o livro ilustrado ter nascido dentro da
literatura infantil, guarda-se o território da criança, da
experimentação. Mesmo se há um adulto que fala 'não faço livro ilustrado para
criança', na verdade ele está se utilizando de recursos do universo
infantil que foram muitos expressivos", ele explica, sempre tendo como exemplo seu próprio trabalho como autor e ilustrador.
"Não basta uma boa ideia ou uma bela imagem. É preciso desenvolver esta ideia em etapas e criar uma sequência", ele diz, referindo-se à experiência de vida transformada nas imagens de "O Presente". No livro,
o garoto protagonista tem uma frustração ao assistir aos jogos da
Copa do Mundo pela TV, vestindo a camisa verde-amarela que ganhara do
pai. Mas ele alcança a superação através do próprio jogo, quando é
convidado para uma "pelada" com os amigos. Trata-se de um
livro sobre futebol, mas que também alcança questões mais
profundas sobre amizade, lembranças e amadurecimento
Na
origem de “O Presente”, o autor confirma, estão muitas de suas lembranças da
infância. “Pensei em datas que marcam as pessoas. Por exemplo, em
todo Natal você se lembra no do ano passado, e pensa em como será o
próximo... E com a Copa do Mundo ocorre algo semelhante. Quando
comecei a fazer o livro, me vi refletindo sobre isso, e pensei no meu
filho pequeno, João. Aí me veio à cabeça uma lembrança muito
especial da primeira Copa que me lembro de ter assistido com
atenção”.
Trabalhando
como ilustrador desde 1989, ele diz que foi de certa forma
influenciado pelo pai, que sempre pintou, e que um dia, quando
resolveu levar seus desenhos a uma editora, pouco antes de se formar
em Arquitetura, conseguiu mudar toda a sua vida. Sobre seu ofício como autor e como ilustrador, ele confessa: "Hoje sei que o
melhor caminho é desenhar quando não consigo escrever e escrever
quando não consigo desenhar".
A infância do autor
Ele recorda
que o ponto de partida para criar o livro foram suas memórias sobre
a Copa do Mundo de 1974, que assistiu pela TV. “Eu morava no
interior e meu pai me levou pra ver uma partida na casa de um amigo,
o primeiro cara que tinha televisão em cores na cidade. O que mais
me lembro é que ninguém conseguia assistir direito ao jogo porque a
TV era mal regulada e só víamos uma coisinha amarela passando para
lá e para cá, uma mancha amarela que eram as camisas da seleção.
Só depois da Copa meu pai conseguiu comprar nossa primeira TV em
cores”.
A
experiência da infância do autor conseguiu gerar uma obra das mais
especiais sobre a paixão de muitos brasileiros pelo futebol. Como
escreve Tales Ab'Sáber, que assina o texto da contracapa do livro, o
futebol é "uma das mais complexas formações que a cultura e a
sociedade brasileira foram capazes de produzir. O despertar do amor
ao futebol se confunde com o despertar da própria consciência de
si".
Traduzindo
algumas de suas memórias de infância na simplicidade e na beleza de
um livro sem palavras, Odilon Moraes tematiza o futebol com o que ele
tem de tristeza e alegria, frustração e surpresa. A partir de suas próprias lembranças, como acontece sempre na grande arte da literatura, ele compõe um
presente de fato muito especial para crianças e para adultos de todas as
idades: uma história que comove com seu texto invisível porque incorpora muito
afeto desenhado em verde, amarelo, azul e branco.
por
José Antônio Orlando.
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Como
citar:
ORLANDO,
José Antônio. Presente
verde-amarelo.
In: Blog
Semióticas,
22
de fevereiro de 2012.
Disponível no link
http://semioticas1.blogspot.com/2012/02/presente-verde-amarelo.html
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Odilon Moraes no estúdio de trabalho,
fotografado por Nino Andrés |