Sou
frágil o suficiente para uma
palavra me machucar,
e sou forte o suficiente para uma
palavra me ressuscitar.
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Hoje
acordei com uma notícia triste: acabo de saber da morte, aos 68
anos, do escritor Bartolomeu Campos de Queirós. Nos telejornais e
nos sites de jornalismo, as primeiras notícias não foram além de
duas ou três frases, dizendo que ele era membro da Academia Mineira
de Letras, que recebeu prêmios brasileiros e internacionais pela
excelência do seu trabalho literário e que seus livros foram
traduzidos para diversos países.
Nenhuma
das notícias, entretanto, nem listaram os tais prêmios nem
explicaram o porquê do autor ter alcançado lista tão surpreendente
que incluiu os cobiçados Jabuti e premiações da Associação
Paulistas dos Críticos de Arte, da Academia Brasileira de Letras,
Ibero-Americano (México), Nestlé de Literatura, Bienal de São
Paulo, Selo de Ouro da Fundação Nacional do Livro Infantil e
Juvenil, Medalha da Inconfidência Mineira e Medalha Santos Dumont
(Governo do Estado de Minas Gerais), Rosa-Blanca (Cuba), Quatrième
Octogonal (França), Chevalier de l'Ordre des Arts et des Lettres
(França) e IBBY (Inglaterra), entre muitos outros.
Conheci
Bartolomeu há mais de 10 anos, primeiro pelos livros que minha irmã,
professora do ensino fundamental em Barbacena, sempre leu com atenção
de fã e adotou como material de referência para a sala de aula.
Depois fui conhecê-lo pessoalmente, quase por acaso, quando fomos
apresentados por um amigo jornalista, Alécio Cunha, outro sábio no manejo das
palavras, que também morreu recentemente.
Estávamos
em um café, próximo ao jornal em que eu trabalhava. Era o mês de
março de 2010 e Bartolomeu estava às vésperas de lançar “O
Livro de Ana” (Global Editora), e como sempre estava otimista,
bem-humorado e de bem com a vida, apesar de há algum tempo enfrentar
graves problemas de saúde. Ainda em processo de recuperação da
última crise que o levara a uma temporada de internação
hospitalar, o escritor e educador dizia que comemorava com felicidade
a grandeza de estar no mundo com mais um lançamento na sua extensa e
premiada trajetória de 65 livros publicados.
Bartolomeu
tinha nas mãos “O Livro de Ana”, que me deu de presente e
autografou no ato com uma dedicatória emblemática. Comentei sobre a
dedicatória, dizendo que era surpreendente demais para ser tão
espontânea. Questionei se ela já estava pensada, ele achou graça
na pergunta e a conversa de imediato transformou-se em entrevista,
que foi publicada no dia seguinte.
Folhei
o livro de Bartolomeu e elogiei as belas ilustrações e projeto
gráfico incomum, que ao incluir no miolo da brochura várias folhas
recortadas multiplicava as possibilidades de leitura e convidava a
reflexões e exercícios de metalinguagem. Ele, todo modesto,
atribuiu o mérito da beleza e inteligência do novo livro à
parceria com o designer Marconi Drummond, com quem também tinha
desenvolvido outros projetos recentes.
O afeto: objeto livro
“Gosto
demais do objeto livro", confidenciou Bartolomeu, como se não
fosse um segredo de polichinelo o amor declarado de todo escritor
pelo objeto livro . "Mas gosto mesmo é dos livros de
literatura, que trazem para o leitor, seja ele criança ou adulto, um
convite à reflexão. O livro de brinquedo, que só propõe joguinhos
ou informações triviais, de passatempo, não tem para mim nenhum
interesse”, explicava, apontando na estante de lançamentos de
livros infanto-juvenis que a maior parte estava incluída na
categoria de passatempo ou de trivialidades, longe da literatura.
Feliz e orgulhoso
por ter sido eleito, havia pouco tempo, como objeto de estudos por
Ebe Maria de Lima, professora de Goiás que escreveu uma tese
acadêmica sobre sua obra, Bartolomeu reconheceu durante a entrevista
que aquele tinha sido o maior elogio de todos os que tinha recebido
na vida. A tese defendida por Ebe, segundo Bartolomeu, apontou que
sua literatura representava uma obra sem fronteiras entre o público
infantil, adulto ou juvenil.
“Fiquei
muito emocionado com o elogio, mas como escritor e como ser humano
tenho fascínio é pela infância e pelo universo da criança. A
infância sempre me deixa atento”, explicou, lembrando "Alice"
de Lewis Carroll e alguns dos clássicos de Monteiro Lobato. Também
recordou em seguida uma máxima atribuída ao pensador alemão Carl
Jung (1875-1961) que Bartolomeu considerava uma lição de vida.
“Jung,
que sabia das coisas, dizia que a gente nasce original e morre cópia.
O que é uma grande verdade, já que muitos de nós vão perdendo
pelo caminho as emoções mais fortes da infância”, disse, com
lágrimas nos olhos, enquanto destacava questões sobre si mesmo e
sobre sua literatura que acabou descobrindo com certa surpresa,
através da tese de Ebe Maria de Lima.
Bartolomeu
trabalhava como funcionário do Ministério da Educação em Belo
Horizonte, no começo da década de 1970, quando começou a abraçar
a literatura como missão. “Descobri que para me dedicar à
literatura só preciso de papel, lápis e solidão. O que é meio
mágico e maravilhoso, quando o resultado consegue tocar a emoção
das pessoas”.
A lembrança de Papagaio
Naquela
breve entrevista de quinze minutos, ele recordou cenas de sua
infância em Papagaio, cidade localizada no Centro-Oeste de Minas, e
destacou uma ou outra história e personagens que conheceu quando
menino e que terminaram por influenciar seu gosto pelos livros e
pelas histórias da tradição de sua cidade natal, quase todas
ligadas aos costumes de Papagaio, lugarejo ainda hoje voltado para a
exploração de cristal, carvão e ardósia.
Lembro
de ter feito um gracejo sobre o nome “papagaio” e o hábito que o
pássaro domesticado tem de repetir as palavras e frases que mais
ouve. Bartolomeu celebrou o comentário com uma gargalhada feliz e
estende a piada, dizendo que a vida toda ele próprio tentava repetir
nos livros que escrevia as emoções mais sinceras que aprendeu lendo
outros autores e recordando histórias de sua infância em Papagaio.
Ao
comentar suas lembranças mais antigas, disse que desde sempre se
interessou pela leitura. A maior influência ele reconhecia no avô,
que fazia de rabiscos nas paredes da casa suas listas de caderno de
anotações. Por meio dos rabiscos do avô nas paredes da casa
humilde, com chão de terra batida, recortando e colando sílabas, o
menino Bartolomeu acabou por descobrir o encanto contido nas
palavras. Praticando a soma das letras, Bartolomeu sentiu a riqueza
contida em cada vocábulo nas paredes.
Ele
veio adulto para BH, depois de viver a infância em Papagaio. “O
Peixe e o Pássaro”, foi seu primeiro livro, publicado em 1974.
“Não tenho filhos, mas tenho 65 livros publicados”, ironizou,
explicando que não adiantava de nada eu pedir para que ele
apontasse, entre tantos livros tão diferentes entre si, qual o seu
preferido.
“Ah,
não. Prefiro fugir dessa tarefa de eleger o meu favorito entre
todos. Cada um a seu modo tem uma qualidade ou uma história que lhe
atribui um certo valor. A escolha dos preferidos depende do dia, da
hora, da época”, explicou, com uma certa modéstia à flor da
pele. Mas não evitou destacar suas preferências em música,
listando antigas modas de viola caipira e duas ou três canções do
canadense Leonard Cohen, para surpresa do entrevistador.
Entre
seus livros mais premiados estão aqueles que já passaram à
condição de clássicos – caso de “O Olho de Vidro do Meu Avô”,
publicado em 2005 pela Editora Moderna e um de seus “campeões de
venda”, vencedor dos prêmios Nestlé de Literatura, Jabuti e
Fundação Nacional do Livro, entre outros. De sua trajetória ele
destacou com orgulho que fez o curso de Pedagogia, que teve textos
adaptados para o teatro (pelo grupo Ponto de Partida, de Barbacena) e
que ocupou cargos públicos importantes, entre eles a presidência da
Fundação Clóvis Salgado em Belo Horizonte, além de ter sido
membro, por muitos anos, do Conselho Estadual de Cultura. Sobre os
prêmios, contudo, Bartolomeu evitou falar durante a entrevista:
“Os
prêmios são um reconhecimento, uma honra, mas só tem o mérito se
conseguem ajudar a reunir novos e bons leitores. Se não conseguem
isso, não têm muita razão de ser. E no fundo, no fundo, sempre que
recebo um prêmio fico pensando se a escolha foi justa, se não havia
outros concorrentes que fossem mais merecedores do que eu”,
apontou, sempre lúcido no bom-senso e volta e meia retornando aos
sábios ensinamentos do avô que marcou a infância e a vida toda.
“Meu
avô foi, de fato, uma grande influência. Só isso dele me
apresentar à leitura usando as paredes de casa como caderno de
anotações já é em si algo maravilhoso, mágico, parece até
história inventada do mundo de Alice”, disse, feliz com a própria
experiência. Sobre o novo livro, ele revelou que foi o resultado de
uma ideia que ficou na cabeça durante muito tempo. Segundo
Bartolomeu, o projeto para “O Livro de Ana” nasceu depois de uma
visita à casa da empresária Ângela Gutierrez – a quem o livro é
dedicado.
A Sant'Ana Mestra
“As
amizades levam a gente a pensar em pessoas, em coisas, na vida. Minha
amiga Ângela Gutierrez coleciona imagens de Sant'Ana Mestra, tem
mais de 70 delas, de épocas e estilos diferentes. Observando toda
aquela beleza resolvi imaginar o que estaria escrito no livro que a
santa traz consigo”, explicou Bartolomeu, fazendo pausas entre
breves comentários de encanto com cada uma das imagens que recorda,
naquele momento da entrevista.
Intercalada às diversas lembranças, ele também ressalta uma série de detalhes mais
conhecidos do culto à santa católica pela gente mais humilde. A principal: pela
tradição religiosa, são chamadas de Sant'Ana Mestra as imagens que
representam uma mulher que carrega um livro nas mãos acompanhada por
uma criança – a criança seria a Virgem Maria, a Nossa Senhora do
catolicismo; a mulher, sua mãe, conhecida por Sant'Ana ou Santa Ana.
A imagem é considerada um símbolo da pedagogia.
Depois
de confessar que é um leitor permanente de poesia (“dependendo do
dia, varia entre Lorca, Cecília Meireles, João Cabral, Pessoa,
Drummond...”), Bartolomeu contou que decidiu recriar com o novo
livro o texto que poderia estar nas imagens de Sant'Ana Mestra e
terminou chegando ao relato de “O Livro de Ana” – que aborda a
beleza da criação do mundo e dos exercícios do criador.
“A
melhor literatura é a que segue na trilha da liberdade, que segue as
invenções da ficção e do sonho”, defendeu, nomeando a si
próprio como leitor contumaz e perdidamente apaixonado pelos
clássicos. “É pela fantasia que primeiro o escritor e depois seus
leitores procuram desvendar o segredo. Em paralelo aos melhores
textos, os mais autênticos e iluminados, pode-se ler toda a teoria
da arte e também sua impossibilidade. Daí a função integradora e
profundamente reveladora do melhor da raça humana que toda grande
arte proporciona, com sua capacidade de aproximar as pessoas e os
povos, com sua perspectiva de gerar compartilhamentos”.
Bartolomeu
também destacou que para ele, tanto no papel de leitor como no de
escritor, a literatura tem exigências, como todo processo criativo:
“A melhor literatura exige o novo, exige rompimento, exige
cumplicidade do autor com seus possíveis leitores”. Ou, como dizem
as palavras que abrem seu livro, objeto da sorte daquela entrevista
apressada: “Jamais li o livro de Ana. Mas se fico atento ao mundo e
sua festa, posso adivinhar a escritura”.
por José
Antônio Orlando.
Como
citar:
ORLANDO,
José Antônio. O Livro de Ana. In: Blog
Semióticas,
16 de janeiro de 2012. Disponível no link
http://semioticas1.blogspot.com/2012/01/o-livro-de-ana.html
(acessado em .../.../…).