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10 de janeiro de 2025

Fotografia em paraísos tropicais





Uma fotografia é um segredo de um segredo.

Quanto mais ela te fala, menos você sabe.

–– Diane Arbus.   
............................... 








As fronteiras instáveis e fluidas entre alta cultura e cultura popular – ou entre a arte erudita e o kitsch, o brega, o cafona, no sentido de separar o que seja de bom gosto do que seja considerado vulgar, duvidoso, sem refinamento, de mau gosto ou de qualidade inferior – surgem diluídas e misturadas em uma mostra que, pela primeira vez, reuniu um acervo de 200 obras de 83 artistas latino-americanos de destaque nascidos no Brasil, Argentina, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Equador, Guatemala, México, Peru e Venezuela. Todas as obras têm em comum o suporte fotográfico com alguma forma de intervenção de pós-produção ou de colagem e abrangem um período histórico de um século, da primeira década do século 20 às duas primeiras décadas do século 21.

IntituladosLes Paradis Latins” (Os paraísos latinos), a exposição e o fotolivro que registra o acervo foram organizados pela Fundação Bemberg de Toulouse, França, tendo como referência a valiosa coleção de raridades garimpadas desde a década de 1960 pelo casal de colecionadores Leticia e Stanislas Poniatowiski, na sua maioria retratos de pessoas anônimas e também de celebridades, de artistas ou de figuras de importância histórica. Anunciada como “celebração de um século de fotografia latino-americana”, a exposição também poderia ser definida como inventário de um século de imagens de resistência à violência e ao preconceito, pois reúne obras de diferentes períodos e lugares que enfrentaram a censura e o silenciamento por imposição de falsos paladinos da moral e dos “bons costumes” ou de governos autoritários.











Fotografia em paraísos tropicais: no alto, 22h35,
da série fotográfica
Das 22h às 23h, México, 1985,
intervenção sobre fotografia e fotocópia
de
Agustín Martinez Castro.

Acima,
As mãos de Pita Amor (México, 1950),
pintura sobre fotografia de
Simón Flechine;
Buenos Aires Tango Clube, Santiago do Chile,
intervenção de 2012 com tinta e lápis de cor sobre
fotografia de 1982 de
Leonora Vicuña;
e Tango (De a dos), fotografia em gelatina
de prata em preto e branco da série
Tango (Chile, 1988), de
Paz Errázuriz.

Também abaixo,
Entre os olhos, o deserto,
intervenção multimídia de 2001 do brasileiro
Miguel Rio Branco sobre fotografias de 1997;
e
Afife Baloyan, Tijuana, México, 1973, fotografia
e intervenção de contraste de
José Luis Venegas.
As imagens reproduzidas nesta postagem fazem
parte do catálogo da exposição










O caráter subversivo


A figura feminina é a presença marcante em todas as imagens fotográficas reunidas pela curadoria, sem nenhuma exceção. Ou talvez a feminilidade, mais até do que a figura feminina, principalmente a feminilidade em seu caráter mais subversivo e provocativo diante da norma dominante e da censura que por tanto tempo tentou silenciar ou esconder na penumbra as dançarinas de tango, de samba, de salsa e de bolero, vedetes e coristas de cabarés ou de teatros, incluindo a importância incontornável de travestis e transgêneros, artistas marginais e ativistas da ação política que movimentou e movimenta a revolução social, a identidade cultural e a diversidade sexual no intervalo de décadas.

A apresentação das imagens, em sua maioria com predomínio de cores
fortes e contrastantes
em destaque, com videntes intenções de apelo melodramático e toques de exagero ou de ingenuidade, também são traços comuns entre as obras selecionadas. Em muitos casos, as cores foram acrescentadas com pincel e tinta ou lápis coloridos sobre as estampas impressas, uma estratégia recorrente que desde os primórdios da fotografia levou muitos artistas a pintarem ou retocaram a mão os retratos registrados pelas câmeras.









Fotografia em paraísos tropicais: no alto,
imagem sem título
, fotografia realçada com
tinta, obra de
Gerardo Bastón (México,1990).

Abaixo,
Nahui Olin (México, 1921), fotografia
impressa em gravura de
Gustavo F. Silva com
pintura em técnica mista de
Nahui Olin
(pseudônimo de Carmen Mondragón).

Também abaixo, colagem com costura e
técnica mista sobre fotografias de 2019
de Carla Rippey (México); colagem de 1975
com fotografia e técnica mista do brasileiro
Luiz Alphonsus, intitulada Crepúsculo Tropical;
e
um retrato de Magnólia em Juchitán
(México, 1987) por
Graciela Iturbide




              
     







Na extensa galeria da diversidade, em que algum charme das celebridades e muitas extravagâncias anônimas se misturam, marcadas pelo requinte ou pelo excesso mais provocante, cada uma das amostras dos “paraísos latinos” selecionadas para o acervo também diluem as fronteiras que separam a fotografia das outras artes visuais, em estratégias de aproximação com o desenho e a pintura, com as artes gráficas, as variações da gravura, as fotonovelas, as técnicas dos cartazes e da publicidade, ou as técnicas mistas de colagens, de recortes, de montagens e de sobreposições de imagens. Algumas das obras vão remeter os olhares mais atentos às experiências dos mestres dos movimentos de vanguarda da arte moderna no começo do século 20, ainda que a maioria delas tenha sido produzida a partir da década de 1960, sob forte influência das experiências da Pop Art e da arte contemporânea.





Fotografia em paraísos tropicais: no alto,
Autorretrato como Rrose Sélavy
(Colômbia, 1980),
de
Álvaro Barríos. Rrose Sélavy era um personagem
fictício, alter-ego do mestre dadaísta
Marcel Duchamp.

Acima, uma corista anônima na Argentina, 1960,
em fotografia de
George Friedman. Abaixo,
dois retratos da vedete
Amapola Devodier
(México, 1955) por
Simón Flechine








A intensidade da cor


No ensaio que apresenta a exposição e o fotolivro, o curador e historiador Alexis Fabry (também autor de “Urbes Mutantes 1941-2012”, catálogo sobre a fotografia latino-americana publicado na Espanha em 2013) destaca que na maior parte dos países da América Latina a intensidade da cor e do carnaval são inseparáveis da tragédia. “A proximidade entre a festa e o trágico, assim como o atrito e a permeabilidade entre a alta e a baixa cultura, são questões muito características da arte latino-americana”, reconhece. Outra questão a que o curador faz referência é a carência de recursos financeiros e materiais, sempre presente para artistas da América Latina, o que levou muitos deles a recorrerem a suportes alternativos como papel e fotocópias, que são meios mais baratos e de fácil acesso que permitem uma ampla divulgação das obras.

 











Fotografia em paraísos tropicais: no alto,
Autorretrato
(1950), com a fotógrafa Grete Stern,
nascida na Alemanha e radicada
na Argentina
desde 1935, refletida em montagem fotográfica
sobre o espelho. Acima, La Madre de Dios
(Guatemala, 1974), fotografia e colagem em
técnica mista do brasileiro Ayrton de Magalhães;
e
Serviço de luxo (México, 1987), intervenção
em técnica mista sobre fotografia e fotocópia
de
Felipe Ehrenberg.

Abaixo,
duas obras de Facundo de Zuviría:
Estampas de Buenos Aires
(1982),
autorretrato e colagem
em cartaz de
técnica mista
; e Evita, San Telmo (1982),
cartaz e fotografia de rua em cópia Cibachrome













Alexis Fabry, ao justificar os critérios historiográficos e estéticos da curadoria, também ressalta que, enquanto nos países da Europa e nos Estados Unidos a Pop Art se concentra em comentários de metalinguagem sobre a sociedade de consumo, na América Latina a influência da Pop Art estabelece um diálogo imprevisível com o artesanato e com a arte ingênua das festas populares. Na perspectiva do Brasil, tal diálogo se estabelece principalmente com o que a cultura erudita costuma nomear como vulgar, como brega e como cafona – termos carregados de preconceito desde a origem linguística: “vulgar” é uma definição para o grosseiro e o obsceno porque tem origem popular, acessível a todos, enquanto “brega” seria o gênero do exagero dramático, ingênuo ou mal feito, e “cafona”, equivalente ao italiano “cafone” (camponês, periférico, rude, estúpido), identifica as imitações grosseiras e fora de moda.

Sobre o acervo reunido com a chancela de “paraísos latinos” vale acrescentar que os adjetivos citados como juízos de valor – vulgar, brega ou cafona – são termos que, traduzidos em outras línguas, encontram sinônimos ou correlatos na complexidade do “kitsch” ou do “camp”, conceitos amplamente discutidos e problematizados por teóricos da cultura como Theodor Adorno ou Susan Sontag. Em outras palavras, são termos que, antes de terem uma definição apressada, elitista e muito preconceituosa, como mau gosto, como exagero ou como falso e artificial, poderiam também ser caracterizados como uma resposta original e popular à cultura de massa e aos processos de industrialização – ou ainda, como adverte Susan Sontag em “Notes on Camp”, ensaio publicado em 1964, como um produto ou uma obra de uma estética especial que consegue a proeza de ironizar e tornar ridículo tudo o que seja dominante.


por José Antônio Orlando.

Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Fotografia em paraísos tropicais. In: Blog Semióticas, 10 de janeiro de 2025. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2025/01/fotografia-em-paraisos-tropicais.html (acessado em .../.../…).


Para uma visita virtual à exposição “Les Paradis Latins”, clique aqui.







Para comprar o fotolivro “Les Paradis Latins”, clique aqui.


Fotógrafos e a
rtistas reunidos em Les Paradis Latins”:

 

Luiz Alphonsus (Brasil), Édgar Álvarez (Colômbia), Yolanda Andrade (México), Constantino Arias (Cuba), Aristides Ariza (Colômbia), Éver Astudillo (Colômbia), Pepe Avilés (Equador), Daniel Barraco (Argentina), Álvaro Barrios (Colômbia), Gerardo Bastón (México), Juan Enrique Bedoya (Peru), Ricardo Bezerra (Chile), Bandi Binder (Argentina), Joaquín Blez (Cuba), Hugo Brehme (México), Jorge Cáceres (Chile), Johanna Calle (Colômbia), Carlos Caputto (Argentina), Anselmo Carrera (Peru), Daniel Chauche (Guatemala), María Eugenia Chellet (México), Gilberto Chen (México), Cif (México), Raúl Corrales (Cuba), Armando Cristeto (México), Ayrton de Magalhães (Brasil), Gertrudis de Moses (Chile), Facundo de Zuviría (Argentina), Hector Delgado (Peru), Hernan Díaz (Colômbia), Wilson Díaz (Colômbia), Felipe Ehrenberg (México), Paz Errázuriz (Chile), Gustavo F. Silva e Nahui Olin (México), Simón Flechine (México), George Friedman (Argentina), Flavia Gandolfo (Peru), Andrés Garay (México), Kattia García Fayat (Cuba), Antonio Garduño (México), Pedro Juan Guttiérrez (Cuba), Maria Eugenia Haya (Cuba), Annemarie Heinrich (Argentina), Armando Herrera (México), Terry Holiday (México), Graciela Iturbide (México), Maripaz Jaramillo (Colômbia), Agustin Jiménez (México), Alejandro Kuropatwa (Argentina), Melitta Lang (Argentina), Fabrizio León Diez (México), Sandra Llano-Mejía (Colômbia), Marcos López (Argentina), Rogelio López Marin (Cuba), Sergio Marras (Chile), Agustin Martínez Castro (México), Daniel Merle ( Argentina), Jorge Maria Múnera (Colômbia), Juan Ocón (México), Martin Ortiz (México), Pablo Ortiz Monasterio (México), Adolfo Patiño (México), Valle Polifoto (Colômbia), Juan Ponce Guadián (México), Santiago Rebolledo (Colômbia), Miguel Rio Branco (Brasil), Carla Rippey (México), Manuel Jesus Serrano (Equador), José Sigala (Venezuela), Francisco Smythe (Chile), Guadalupe Sobarzo (México), Grete Stern (Argentina), Rubén Torres Llorca (Cuba), José Trinidad Romero (México), Sergio Trujillo (Colômbia), Jorge Vall (Venezuela), Manolo Vellojín (Colômbia), José Luis Venegas (México), Leonora Vicuña (Chile) e Rogelio Villarreal (México).





 





Fotografia em paraísos tropicais: no alto,
flagrante da exposição na Fundação Bemberg,
em fotografia de
Frederic Scheiber.

Acima, a partir do alto:
1) Colagens do Caderno 2
(Colômbia, 1980), arte em técnica mista de
Éver Astudillo;
2) Cristina Molina
(México, 1970), colagem e intervenção
com caneta e lápis de cor por
Juan Ponce Guadián;
e
3) Monumento ao Marques de Sade (Chile, 1947),
colagem e montagem de fotografias por
Jorge Cáceres



7 de dezembro de 2024

Augusto Malta em fotomontagens


 




As fotografias conseguem enganar o tempo: 

elas o congelam onde a alma está em silêncio. 


–– Isabel Allende em “Amor e Sombras”.

   


A fotografia incide sobre o tempo, como dizia Roland Barthes. Uma demonstração sobre tal incidência surge no intervalo de 100 anos que separam e reúnem as fotografias do Rio de Janeiro Antigo, registradas por Augusto Malta, e cenas da atualidade nas fotomontagens feitas por Marcello Cavalcanti para o fotolivro “Augusto Malta Revival”, lançado pela Gávea Imagens. Nascido em Mata Grande, Alagoas, Augusto Malta (1864-1957) foi um dos mais destacados fotógrafos a atuar no Rio de Janeiro no período de 1900 a 1930, contratado desde 1903 pelo prefeito Francisco Pereira Passos para registrar, em fotografias, a transformação urbana radical que aconteceria na cidade nas primeiras décadas do século 20, mais conhecida como campanha do “Bota Abaixo”.

A ideia de trabalhar com fotomontagens surgiu em 2008, quando Marcello Cavalcanti passava uma temporada em Barcelona, Espanha, uma cidade que reúne a tradição de construções milenares e uma arquitetura moderna. Formado em Design Gráfico, fotógrafo profissional e professor, Marcello nasceu no Rio de Janeiro, em 1980, e se autodefine como um colecionador visual. Na temporada em Barcelona, ele fotografou para sua coleção centenas de portas, janelas, paredes, grafites, becos, vielas, praças e pessoas na cidade da Catalunha, e desde aquela época começou a investir em colagens fotográficas. Anos depois, de volta ao Brasil, ele mergulhou no projeto que reúne na mesma imagem suas fotos autorais de cenários do Rio de Janeiro mescladas às imagens em preto e branco feitas no começo do século 20 pelas câmeras de Augusto Malta.


Cenários do Rio Antigo


A primeira etapa do projeto de Marcello Cavalcanti teve início em 2012, quando ele fez a experiência de sobrepor duas fotografias feitas do alto do túnel Dois Irmãos, no Rio de Janeiro: uma feita por ele e outra feita por Augusto Malta em 1910. Ele continuou aperfeiçoando a experiência e três anos depois apresentou um projeto que foi selecionado para uma carta de apoio da Prefeitura do Rio, na época das comemorações dos 450 anos da cidade, seguida de uma exposição patrocinada pela companhia de eletricidade Light (que contratou os serviços de Augusto Malta a partir de 1905) e pela Secretaria de Estado da Cultura. A exposição foi apresentada em outubro de 2015 no Centro Cultural Light. O acervo de fotomontagens, realizadas a partir de uma seleção de 60 fotografias de Augusto Malta, posteriormente foi publicado no fotolivro “Augusto Malta Revival”, esgotado após o lançamento em 2023 e que terá em breve sua primeira reedição.







Augusto Malta em fotomontagens
: no alto e abaixo,
as fotomontagens de Marcello Cavalcanti feitas a partir das
fotografias originais de Augusto Malta, publicadas no fotolivro
“Augusto Malta Revival”. Acima, os autorretratos dos dois
fotógrafos, projetados na cerimônia de lançamento do
fotolivro e Marcello Cavalcanti na abertura
da exposição, no Rio de Janeiro.

Abaixo, uma seleção das fotomontagens:
os Arcos da Lapa, na fusão de imagens com
intervalo de um século; e a transformação da
Enseada de Botafogo do passado (esquerda)
à atualidade (direita). As imagens publicadas
nesta página fazem parte do fotolivro,
exceto quando indicado











A produção do acervo de imagens que resultou no livro é o resultado de muitas experiências em 10 anos de trabalho. Marcello fez a sobreposição minuciosa de cada detalhe das antigas imagens de Augusto Malta, com novas fotografias feitas nos mesmos cenários e mesmos ângulos de enquadramento. Neste período, ele também criou um canal no YouTube (“Por trás da foto”), lançou três e-books sobre fotografia (“30 Dicas para o fotógrafo de paisagem”, “Golden Hour – A ciência por trás da melhor luz para fotografar paisagem” e “Lua – Como fotografar”), criou cursos on-line sobre fotografia, fotografou em várias regiões do Brasil e em outros países (Estados Unidos, Canadá, França, Espanha, Noruega, Itália, Tanzânia, África do Sul, Argentina, Chile, Peru, Bolívia, Colômbia, Guatemala, México), recebeu prêmios e criou a editora Gávea Imagens, empresa que gerencia seu trabalho no mercado internacional pelo Fineart e também no Brasil.


Imagens da passagem do tempo


Em entrevista, Marcello Cavalcanti diz que seu interesse sempre foram os padrões gráficos e as repetições comparativas que revelam a passagem do tempo, como demonstrou em suas fotomontagens. Ele também confessa sua fascinação com as coincidências e as diferenças que foi descobrindo nas imagens que registram o intervalo de um século. “No trabalho de junção das fotografias, vou apagando coisas ou preservando. Se tem pessoas na rua: qual pessoa vou deletar, qual vou deixar? Às vezes acontecem coincidências das pessoas se olhando, pessoas que estão separadas por mais de 100 anos. Elas estão se olhando na imagem”, destaca, pontuando detalhes que o impressionaram.








Augusto Malta em fotomontagens: acima,
as praias de Ipanema e Leblon vistas a partir
do alto do Morro Dois Irmãos, no bairro do Vidigal.
Abaixo, a Lagoa Rodrigo de Freitas; a fotografia
original de Augusto Malta da avenida Rio Branco
e a fusão das imagens na atualidade















As fotomontagens de Marcello Cavalcanti sobre as fotografias de Augusto Malta também revelam questões sobre a evolução do urbanismo e da arquitetura do Rio de Janeiro no último século. “É impressionante como o Rio cresceu verticalmente e como a cidade era menos arborizada. A cidade tinha muito casario e poucas árvores nas ruas. Hoje é tudo vertical e temos mais árvores. A passagem do tempo e, como ela influencia, modifica e, ao mesmo tempo, mantém padrões. é o que me fascina no universo imagético em que vivemos”, conclui.


Fotógrafo da evolução urbana


As fotomontagens já existiam na época de Augusto Malta, mas ao que se sabe ele não fez nenhuma experiência de colagens usando a técnica fotográfica. Um caso exemplar de fotomontagem no Brasil veio de um contemporâneo de Malta, Valério Vieira (1862-1941), fotógrafo profissional e músico, que em 1901 apresentou ao público “Os Trinta Valérios”, obra que se tornaria um dos marcos da fotografia brasileira. Apesar de existirem registros de outras manipulações, recortes e colagens de matrizes fotográficas em período anterior, a obra de Valério Vieira rompe com a noção de que a fotografia é um registro realista e inquestionável. Na fotomontagem, Valério Vieira surge em diferentes poses e em várias situações na mesma imagem, em autorretratos reunidos na cena de apresentação de uma orquestra – mas todos em cena são reproduções da figura do próprio fotógrafo, em um arranjo irônico que surpreende pelo inusitado da técnica e que ainda hoje mantém sua aura de bom humor e inventividade.










Augusto Malta em fotomontagens: acima,
a Rua Paissandu, em Laranjeiras, ontem e hoje;
e a praia do Leblon, atualmente e há 100 anos.
Abaixo, uma vista de São Conrado, com as
áreas de floresta cedendo lugar aos prédios;
e duas imagens da praia do Arpoador.

Também abaixo, uma vista do Pão de Açúcar
e das praias da Zona Sul; duas imagens do presente
e do passado da Avenida Vieira Souto, na praia
de Ipanema,
hoje e na década de 1930; e duas
imagens do Theatro Municipal na Cinelândia
















O acervo fotográfico de Augusto Malta, entretanto, ao contrário das experiências de Valério Vieira, está na direção oposta ao ilusionismo: Malta é considerado o principal fotógrafo da evolução urbana do Rio nas primeiras décadas do século 20, um período de acelerada e traumática modernização. Seus belos registros fotográficos formam um material de pesquisa e documentação fundamental para historiadores, urbanistas, arquitetos e pesquisadores das mais diversas áreas. As fotografias de Malta mostram, entre outros momentos históricos, as etapas de demolição da área onde estava do Morro do Castelo – um marco da campanha de reforma urbana anunciada para libertar o Rio da reputação de “cidade insalubre”, com suas metas de higienização, renovação e demolição de antigos edifícios, cortiços, pensões e pousadas, para a abertura das grandes avenidas, repetindo o modelo de urbanização que estava sendo adotado em Paris e outras grandes cidades da Europa.























Fotografia como missão


Augusto Malta deixou sua terra natal na década de 1880 e foi servir como cadete do Exército no Recife, em Pernambuco. Em 1888, chegou para tentar a sorte no Rio de Janeiro, na época Distrito Federal. Em 1900, comercializava tecidos e usava uma bicicleta para fazer entregas, quando uma barganha mudou seu destino: um de seus fregueses propôs a troca de uma câmera fotográfica pela bicicleta. Malta aceitou. E a partir daí iria mergulhar no ofício da fotografia, registrando ruas e cenários do Rio. Suas fotografias chamaram a atenção do prefeito Pereira Passos, que mandou contratá-lo em 1903 como fotógrafo oficial da Diretoria Geral de Obras e Viação da Prefeitura do Distrito Federal, cargo criado especialmente para Augusto Malta, com a missão de registrar imagens das ruas que seriam modificadas pelo gigantesco projeto urbanístico do prefeito.







Augusto Malta em fotomontagens: acima,
a mudança dos veículos do passado na Vista Chinesa.
Abaixo, o Túnel do Leme, por onde passavam
bondes; e a Rua São Clemente, em Botafogo















Pereira Passos encerrou seu mandato em 1906, mas Augusto Malta permaneceu no posto de fotógrafo oficial da prefeitura por mais 30 anos, registrando desde grandes eventos a aspectos da vida cotidiana da cidade. Os registros fotográficos mais importantes sobre a modernização do Rio foram feitos por ele, incluindo marcos históricos como a implantação dos bondes elétricos e da iluminação pública, a abertura e as inaugurações das grandes avenidas, a Exposição Nacional de 1908, a Exposição Internacional para o Centenário da Independência, em 1922, e a inauguração da estátua do Cristo Redentor, em 1931, entre milhares de outros flagrantes de personagens anônimos ou famosos e eventos oficiais.

Uma parte considerável do acervo de Augusto Malta vem dos registros de sua dedicação às alterações na paisagem urbana do Rio, à beleza de suas ruas e edifícios e aos movimentos populares, como o surgimento das primeiras favelas, a Revolta da Vacina, a chegada de Getúlio Vargas com as tropas na Revolução de 1930 e os antigos desfiles de carnaval. Estão preservadas mais de 100 mil fotografias feitas por Augusto Malta, incluindo imagens em papel e negativos em vidro ou filme. Os acervos atualmente estão no Arquivo Geral do Rio de Janeiro, no Museu da Imagem e do Som, no Arquivo da Companhia Light, na Biblioteca Nacional, no Museu Histórico Nacional e no Instituto Moreira Salles.


por José Antônio Orlando.

Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Augusto Malta em fotomontagens. In: Blog Semióticas, 7 de dezembro de 2024. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2024/12/augusto-malta-em-fotomontagens.html  (acessado em .../.../…).




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Augusto Malta em fotomontagens: acima, a célebre
fotomontagem feita em 1901 por um contemporâneo
de Malta, Valério Vieira, que ficou conhecida como
“Os Trinta Valérios”, com 30 autorretratos do
fotógrafo em justaposição, com técnica e resultados
muito avançados para a época.

Abaixo, uma seleção de fotografias originais
de Augusto Malta: 1) mulheres observando uma
vitrine na Rua do Ouvidor, no Centro do
Rio de Janeiro (cerca de 1906); 2) a Avenida Central,
atual Avenida Rio Branco em 1906, depois da
iluminação por energia elétrica; 3) desfile de Corso
no carnaval de 1919 no Rio de Janeiro, depois da
grande epidemia de gripe espanhola; 4) visita de estudantes
ao recém-inaugurado Cristo Redentor em 1931;
5) o Pão de Açúcar e uma área do bairro de Botafogo
vistos a partir do Mirante Dona Marta em 1910;
e 6) uma vista da Praia de Copacabana em 1910















 
 















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