Criada
em 1905, a revista em quadrinhos “O Tico-Tico”, pioneira
no Brasil,
reinava desde
o primeiro número com
sucesso absoluto entre crianças e adultos, com seus personagens e
aventuras tipicamente brasileiros, criados por artistas nacionais,
com poucas exceções de
estrangeiros que
apareciam como convidados em suas páginas. Sem nenhum rival à
altura, “O Tico-Tico” seguia rentável e imbatível até a década
de 1930, quando outros jornais e revistas decidiram investir no
público infantojuvenil. Foi então que “O Tico-Tico” começou a
perder público e
as
dificuldades financeiras
foram
se agravando, nos anos e
décadas seguintes,
com a
invasão norte-americana e
a
conquista do
território nacional
pelos
personagens Disney e as
aventuras
de heróis e
super-heróis da
DC Comics e da Marvel.
A batalha foi violenta: em pouco tempo, a maioria dos personagens nacionais deixaria de ter histórias inéditas e passaria a ser apenas lembranças, coisa do passado, ou apenas exceções, como aconteceria com o surgimento isolado de personagens de artistas como Ziraldo ou Maurício de Souza, a partir da década de 1960. Um capítulo importante da invasão dos quadrinhos norte-americanos aconteceria às vésperas da Segunda Guerra Mundial: em abril de 1939, a editora O Globo, um setor das Organizações Globo, grande conglomerado de jornais, revistas e rádios, já naquela época sob o comando de Roberto Marinho (1904-2003), lançou uma revista infantojuvenil semanal chamada “Gibi” que foi um sucesso imediato e a primeira grande concorrente a desbancar a liderança de “O Tico-Tico” (Veja também: Semióticas – Revistinha de vovô).
Desembarque
no Brasil
A
grande variedade de personagens norte-americanos dos quadrinhos, de
vários autores e em
vários gêneros, começou seu
desembarque maciço
no Brasil pelas páginas da revista “Gibi”, sem enfrentar nenhuma resistência nem do público nem dos criadores de quadrinhos brasileiros. Entre os invasores estavam
Flash Gordon, Charlie Chan, Fantasma, Mandrake, Spirit, Capitão
Marvel, Namor,
Tocha Humana, Cavaleiro Negro, Agente X-9,
Ferdinando, Brucutu, Popeye e muitos outros. Impressa
em papel jornal, sempre
alternando
páginas coloridas, páginas em preto e branco e páginas em duas ou
três cores, a
revista ganharia
vários formatos desde
o lançamento. O
formato principal,
conhecido
como série
original, circulou entre 1939 e 1954, tendo 1842 edições.
Em paralelo à série original foram lançadas, também com grande sucesso de vendas, “Gibi Mensal”, que circulou de 1941 a 1963, com 271 números; “Gibi Semanal”, de 1974 a 1975, com 40 edições; e lançamentos especiais, com edições não consecutivas entre 1974 e 1985, além de 12 edições de “Gibi” para colecionadores, lançadas no começo dos anos 1990. Cada tiragem das revistas tinha números altos, que variavam entre 50 mil e 100 mil exemplares, algumas vezes com reimpressões para atender às encomendas de vendas, sendo que o motivo principal das interrupções nas edições de cada formato não foram as quedas de vendas, mas sim os novos lançamentos: novas revistas que foram criadas para trazer exclusivamente apenas personagens específicos.
As revistas em quadrinhos, com a "Gibi" em primeiro plano, ganhavam cada vez mais leitores no Brasil. O sucesso de vendas era tanto que, em 1952, o Grupo Globo fundou uma nova empresa, a Rio Gráfica Editora, para dar conta da impressão das edições da "Gibi", que continuava a publicar suas coletâneas com vários personagens na mesma revista, em edições semanais e mensais, e dos novos lançamentos em quadrinhos, com novas revistas dedicadas cada uma a um só personagem. No começo dos anos 1990, a Rio Gráfica Editora seria modernizada e receberia o nome de Editora Globo.
“Gibi”
foi
o maior sucesso durante anos, mas não
foi um caso único. Desde o
começo da
década de 1930 surgiram outras
revistas em quadrinhos no Brasil e também páginas inteiras de
jornais dedicadas ao formato em tirinhas, acompanhando as novidades
editoriais que faziam sucesso no mercado dos Estados Unidos e de
outros países. O jornalista e editor russo, naturalizado brasileiro,
Adolfo Aizen (1904-1991), foi um dos primeiros a apostar nas
publicações exclusivas
de
quadrinhos de
origem norte-americana.
Em uma temporada nos Estados Unidos, em
1931, Aizen
conheceu a variedade e
o sucesso comercial das
revistas em quadrinhos e também das
páginas de tirinhas nos jornais, além dos suplementos temáticos
semanais,
dedicados
ao público feminino e infantojuvenil, que
vinham como
cadernos encartados
nas edições. De
volta ao Brasil, Aizen ofereceu um projeto sobre a novidade para seu
chefe nas redações de jornais e revistas, Roberto
Marinho, que no primeiro momento descartou a proposta por não acreditar no potencial de vendas.
Guerra dos Gibis
Aizen, então, emplacou seu projeto de quadrinhos junto à concorrência, no jornal carioca A Nação. O projeto de Aizen foi publicado no formato do Suplemento Juvenil, semanal, com sucesso imediato, trazendo personagens na época muito populares nos Estados Unidos e licenciados pela King Features Syndicate, incluindo histórias do Super-Homem, Tarzan, Pinduca, Betty Boop, Os Sobrinhos do Capitão e as primeiras produções dos estúdios de Walt Disney (Veja também: Semióticas– Estratégias do Zé Carioca) . Segundo informa o pesquisador Gonçalo Júnior, no livro “A Guerra dos Gibis: a formação do mercado editorial brasileiro e a censura aos quadrinhos (1933-1964)”, lançado pela Companhia das Letras em 2004, o sucesso foi tanto que, nos dias de publicação do Suplemento Juvenil, as vendas do jornal A Nação triplicavam.
O
sucesso do Suplemento Juvenil
levaria Aizen a fundar sua própria editora especializada em
quadrinhos, registrada
como Grande Consórcio de Suplementos Nacionais. As
publicações da editora de
Aizen se
tornando cada vez mais populares foram um alerta
para
a
concorrência, levando outros
empresários à
criação de projetos similares, também na década de 1930, sempre
com conteúdo importado dos Estados Unidos. Entre
outros lançamentos que fizeram sucesso neste período estavam a
Gazeta Juvenil, encarte tabloide do jornal A Gazeta de São Paulo, e
o Mundo Infantil, da Editora Vecchi do Rio de Janeiro. Roberto
Marinho também copiou o projeto de seu
ex-funcionário Aizen,
lançando em 1937 O Globo Juvenil, suplemento semanal que era encartado
no jornal O Globo. A
recepção favorável do suplemento com
histórias em quadrinhos e o aumento considerável nas vendas levou
Marinho à criação
da
revista “Gibi” em 1939.
Ao
fim da Segunda Guerra, o
mercado de jornais e revistas alcançou
uma considerável expansão
no
Brasil,
multiplicando os parques gráficos nas décadas seguintes. A concorrência se tornaria mais acirrada
e levaria Adolfo Aizen a fundar, em 1945 uma nova editora especializada
em
revistas infantojuvenis, a Editora Brasil-América Limitada (EBAL),
com publicações específicas para cada personagem e cada herói,
com grande destaque para o
lançamento da primeira revista exclusiva para o primeiro e mais famoso super-herói, o “Superman” (Veja também: Semióticas – Um novo Superman)
.
Um novo capítulo da
concorrência viria
em 1950, com a
criação da revista “O Pato Donald”, primeiro lançamento da Editora Abril fundada por Victor
Civita.
Nascido em Nova York e descendente de judeus italianos, Victor Civita começou em sociedade com seu irmão, Cesar Civita, que também havia fundado na Argentina uma Editora Abril, na década anterior. Instalando sua editora em São Paulo, Victor Civita se
naturalizou brasileiro e, a partir do licenciamento para todos os personagens
dos Estúdios Disney, criou
um grande império editorial (Veja também: Semióticas – Páginas de Realidade)
com dezenas de revistas, voltadas para diversos segmentos do público, passando a disputar, em
pouco tempo, a
liderança de
vendas no
mercado nacional
com
as Organizações Globo de Roberto Marinho e com os Diários
Associados de Assis Chateaubriand, um
conglomerado
que
controlava a edição de jornais em vários estados do Brasil. Chateaubriand também era o proprietário da revista O Cruzeiro,
fenômeno editorial que liderou o mercado brasileiro
de revistas de notícias e variedades desde seu lançamento, em
1928, até encerrar as edições no
começo da década de 1970. O fim da revista O Cruzeiro foi ocasionado pela falência do império dos Diários Associados, que ficou acéfalo depois da morte de Chateubriand em 1968 (Veja também: Semióticas – O Cruzeiro nos bastidores)
Ausência de regulamentação
A hegemonia norte-americana nas histórias e revistas em quadrinhos não se deu apenas por alguma qualidade superior ou pelo estilo deste ou daquele criador, como poderia supor o leitor mais ingênuo: a grande vantagem que as empresas norte-americanas tiveram foi resultado de uma total ausência de regulamentação para sua entrada no Brasil, onde puderam atuar livres de impostos e sem a contrapartida de nenhum investimento, porque seus custos de produção haviam sido cobertos pelo próprio consumo interno em seu país de origem.
Diante do
público brasileiro, o que estava em jogo era o controle do mercado,
a exploração comercial predatória, motivo pelo qual o produto
norte-americano chegava com custos muito baixos, com o objetivo
violento de eliminar qualquer resistência e toda a concorrência
local, com preços muito mais acessíveis do que o valor real que
deveria ser pago ou investido para manter a produção nacional. No
universo das histórias em quadrinhos, os artifícios de dominação pelo monopólio
da produção econômica e da produção cultural tiveram uma total
equivalência.
A invasão do Gibi: acima, a capa do número 2 da revista "Gibi" em 1939. Abaixo, capa do número 47, também de 1939, e uma edição especial de 1963 com seleção de histórias de Águia Negra, Capitão César, O Sombra e Robin Hood. Também abaixo, trabalhador na expedição da revista "Gibi", na sede de O Globo, em 1948, e uma capa da edição semanal lançada em 1974 |
Os quadrinhos e toda a produção cultural estrangeira, conforme destaca Julia Falivene Alves em “A invasão cultural norte-americana” (Editora Moderna, 2012), chegavam e eram amplamente consumidos porque seus preços eram bem mais acessíveis do que aquele que qualquer editor teria de pagar aos similares brasileiros que fossem criados pelos artistas nacionais. Segundo a historiadora, isso naturalmente acontecia (e acontece) porque a indústria norte-americana conta com a mais completa benevolência das autoridades locais, em vários níveis, e com a ausência de regulamentação para tais transações comerciais no Brasil – além de deter, na maioria das vezes, equipamentos e tecnologias mais avançadas, maior disponibilidade de capital e mercado consumidor mais amplo do que os pequenos e independentes produtores nacionais do Brasil e dos países periféricos.
Ao considerar a invasão norte-americana, tanto a que se deu pelas histórias em quadrinhos e por outras mídias, no decorrer do século 20, como os cenários de maior complexidade da internet e das plataformas de redes sociais na atualidade, é de fundamental importância ressaltar os aspectos políticos e ideológicos, sejam eles diretos, explícitos, ou dissimulados e subliminares. Nenhum leitor ou espectador pode ser ingênuo em relação às intenções em jogo, uma vez que os personagens norte-americanos, sem exceção, não apenas os heróis e super-heróis envolvidos em tramas de guerra e dominação imperialista, mas também os nada ingênuos personagens Disney e equivalentes, promovem, de forma permanente, processos de “lavagem cerebral” no público – em estratégias premeditadas que, com o passar do tempo, passaram a ser vistas com naturalidade. Enquanto seus produtores e o país ao qual pertencem obtêm lucros imensos e garantem sua hegemonia no mercado internacional de produtos culturais, os selvagens pacíficos do Terceiro Mundo, em troca de alguma diversão, continuam “pagando o pato”.
por
José Antônio Orlando.
Como citar:
ORLANDO, José Antônio. A invasão do Gibi. In: Blog Semióticas, 14 de abril de 2024. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2024/04/a-invasao-do-gibi.html (acessado em .../.../…).
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