Na
paz, prepara-te para a guerra.
Na
guerra, prepara-te para a paz.
–– Sun
Tzu, “A arte da guerra” (século 4 a.C.).
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Tarsila do Amaral, Maria Martins e outros grandes
nomes do Modernismo brasileiro, que atuaram nos movimentos de
vanguarda e produziram trabalhos importantes no Brasil e em outros
países, no período entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial,
são algumas das ausências notáveis da exposição “New Harmony: Abstraction
between the Wars, 1919–1939” (Nova harmonia: abstração entre as
guerras, 1919-1939), uma das mais amplas mostras já realizadas sobre a história da arte no período de intervalo entre a primeira e a segunda guerra mundial, em cartaz em Nova York no
Guggenheim, museu reconhecido no mundo inteiro por ostentar em seu acervo uma das mais valiosas e invejáveis de todas as coleções internacionais da Arte Moderna.
Ignorados pela mostra internacional no Guggenheim Museum,
Tarsila, Maria Martins e artistas como Victor Brecheret, Emiliano Di Cavalcanti, Cícero Dias, Djanira, Cândido Portinari, Iberê Camargo, Alberto da Veiga Guignard e Lasar Segall, entre outros, também marcaram presença na tradição da
ruptura dos movimentos de vanguarda e da Arte Moderna no período entre guerras, e todos eles têm obras presentes no acervo do Guggenheim e de outros grandes museus de Nova York, dos Estados Unidos e de outros países, o que torna ainda mais incompreensível a ausência dos brasileiros na exposição “New Harmony: Abstraction between the Wars, 1919–1939”. Em
sintonia com as experiências que transcorriam na Europa, os
modernistas brasileiros descobriram maneiras surpreendentes de criar uma "brasilidade"
através da arte. Tarsila e Maria Martins, entre todos eles, talvez sejam os
casos mais emblemáticos pela presença no centro da vanguarda europeia desde a década de 1920.
Na
época da Semana de Arte Moderna, em 1922, Tarsila do Amaral (1886-1973), assim como Maria Martins (1894-1973), estavam em Paris. Maria acompanhava o segundo marido, o diplomata Carlos Martins, e na temporada em Paris estudava pintura e escultura com mestres que se tornariam, assim como ela, grandes expoentes do Surrealismo; Tarsila também estava em temporada de estudos com amigos e mentores como Constantin Brancusi, Fernand
Léger, Albert Gleizes, Blaise
Cendrars, Pablo Picasso, André Lhote. Assim como seus mestres, Tarsila produziria uma imaginária marcante, com influência de várias escolas das vanguardas, celebrada como referência do Modernismo, em uma
trajetória em que obras como "Abaporu", óleo sobre tela de 1928, entre outras, representam autênticos manifestos e paradigmas, com conotações cubistas, dadaístas,
surrealistas, em ícones do nacionalismo traduzidos nas cores e temas da
vida rural e urbana brasileira (sobre Tarsila e a Geração Modernista de 1922, veja "Semióticas: Ao sol, carta é farol").
À
frente de seu tempo
Tarsila do Amaral está à frente de seu tempo: somente muitos anos depois, a partir das décadas
de 1930 e 1940, os manifestos do Dadaísmo e do Surrealismo fariam
escola com expoentes de peso na América Latina, entre eles a pintora mexicana Frida Kahlo e o escritor argentino Jorge Luis Borges. Também à frente de sua época está Maria
Martins, escultora, desenhista, gravurista, pintora, escritora e
musicista, mineira da pequena cidade de Campanha, sempre lembrada
pelos manuais de História da Arte entre as personalidades em destaque nas vanguardas da arte na Europa nas décadas de 1920 e 1930 e como única mulher nos círculos fechados do Dadaísmo e do Surrealismo francês.
Os estudos na Europa e no Japão, a partir da década de 1920, levaram Maria Martins às suas célebres esculturas biomórficas, estruturas orgânicas que travam um
estranho diálogo com outras imagens também célebres da Arte Moderna,
especialmente certas obras-primas de mestres da vanguarda como Jean
Arp, Joan Miró, Salvador Dalí, Picasso e Piet Mondrian, entre outros, além de Marcel Duchamp, de quem ela foi a grande musa inspiradora e com
quem ela viveu e trabalhou durante anos. Duchamp dedicou várias obras a
Maria Martins. Contorcidas, sensuais, evocando culturas arcaicas e, assim como as telas de Tarsila,
inspiradas em lendas do folclore e na natureza da Amazônia, as esculturas
biomórficas de Maria Martins, que hoje estão no acervo dos grandes museus, entre eles o MoMA e o Louvre, também atraíram a atenção de André Breton, autor do
Manifesto Surrealista, que a convidou para participar do grupo
dos mestres, formado por Max Ernst, Yves Tanguy, Marc Chagall e
Duchamp.
Mesmo
excluindo a participação brasileira, a exposição “New Harmony:
Abstraction between the Wars, 1919–1939” tem o mérito de reunir
célebres obras-primas de artistas de vários países que atuaram na
Europa entre as duas guerras mundiais. No mesmo Guggenheim Museum, a
partir de hoje está aberta ao público outra exposição que tem a
arte das vanguardas do Modernismo como tema: “Kandinsky in Paris,
1934–1944”, com 150 obras da última década de vida do pintor
que é apontado como um dos criadores da arte da Abstração, para muitos a mais radical das inovações da Arte Moderna.
Kandinsky
em Paris
A
mostra “Kandinsky in Paris,
1934–1944” também é o retrato do drama pessoal do
artista, nascido na Rússia e naturalizado francês. Depois que o
governo nazista fechou a Escola Bauhaus, em Berlim, onde Kandinsky
foi professor e um dos mentores do projeto educacional
revolucionário e libertário, ele retornaria melancólico, em 1933, aos subúrbios
parisienses de Neuilly-sur-Seine, onde havia morado e trabalhado em ateliês na
primeira década do século (veja mais sobre a Escola Bauhaus em "Semióticas: Criança e design em 1900").
Na
França, o vocabulário formal de Kandinsky mudaria de novo,
radicalmente, e seus diagramas de amebas, embriões e outros ícones
primitivos criaram um imaginário de cores e traços agrupados que
seriam predominantes em suas pinturas tardias. No lugar antes ocupado por suas cores
primárias características, a fase final de Kandinsky iria agrupar tons mais
suaves de pigmentos diluídos, com sugestões figurativas e formais que lembram ícones do folclore da Rússia de sua
infância. Simultaneamente, no mesmo Guggenheim Museum, a outra exposição, “New
Harmony: Abstraction between the Wars, 1919–1939”, também traz uma
série surpreendente das obras-primas que Kandinsky produziu em uma década na
Escola Bauhaus.
Ao
selecionar obras-primas de mestres da História da Arte no período
entre as duas guerras, a exposição “New
Harmony" explora um recorte fundamental localizado na época em que a novidade da Abstração e das
formas radicais da distorção das vanguardas amadurece, finca raízes
nas artes plásticas e estabelece novos domínios que vão da teoria
da cor à composição musical. Nomeada em homenagem a uma tela de
Paul Klee (“New
Harmony”, de 1936),
a mostra no Guggenheim segue a cronologia dos mestres pioneiros e seus discípulos até que a Segunda Guerra é deflagrada, em 1939.
New
Harmony (1936), tela do pintor e poeta suíço naturalizado alemão Paul Klee. Acima, Paul Klee fotografado em Berna, Suíça, em 1939, por Walter Henggeler. Abaixo, Paul Klee em seu estúdio na Escola Bauhaus, em 1926, fotografado por seu filho Felix Klee; e um registro de uma das salas da exposição com obras de Kandinsky e Paul Klee |
Um século de Abstração
No caminho aberto na primeira década
do século 20 pelas experimentações da vanguarda de Pablo Picasso,
Georges Braque, Kandinsky, Duchamp e Mondrian, “Nova harmonia: abstração entre as guerras, 1919-1939”
apresenta 40 obras em pintura, escultura e trabalhos sobre papel de
20 artistas de nacionalidades diversas, entre eles pintores e
escultores como os franceses Fernand Léger e Francis Picabia, o
alemão Kurt Schwitters, o norte-americano Alexander Calder, o suíço
Alberto Giacometti e o uruguaio Joaquín Torres-García, único
latino-americano selecionado.
A arte da Abstração, que completa seu primeiro
centenário, também recebeu uma homenagem sem precedentes com outra
megaexposição, intitulada “Inventing Abstraction, 1910–1925”,
que esteve em cartaz no MoMA, também em Nova York, entre 23 de
dezembro e 15 de abril de 2013 (veja também “Semióticas: Inventando a Abstração”). Mas enquanto a exposição no MoMA reuniu,
pela primeira vez em um século, obras mais antigas do abstracionismo
e da não-figuração, incluindo pinturas, desenhos, livros,
esculturas, filmes, fotos, música atonal e apresentações ao vivo
de dança e orquestra, a mostra do Guggenheim vai à segunda fase do
Abstracionismo.
Tracey Bashkoff, que assina a curadoria da mostra “New
Harmony: Abstraction between the Wars, 1919–1939”, destaca na
apresentação ao catálogo o caráter inédito da proposta, já que
algumas das mais célebres obras-primas do período, que foram
selecionadas da coleção permanente do museu ou tomadas de
empréstimo em instituições internacionais, nunca estiveram
reunidas em um só evento. Bashkoff também chama atenção para o
marco que o acervo em exposição representa para os avanços na
ordem pictórica, em relação aos trabalhos dos pioneiros da
Abstração.
Amadurecimento da vanguarda
“A mostra pretende mapear o
amadurecimento da vanguarda na Abstração, em seus nexos mais
abrangentes, até a explosão da Segunda Guerra na Europa”, explica
Bashkoff, considerando que o ambiente propício às experimentações
de vanguarda se estabelece quando as fronteiras são redesenhadas ou
reabertas, depois da Guerra de 1917, com centros de formação
tradicional da Europa, especialmente em Paris, sendo revigorados pelo
intercâmbio criativo com artistas do mundo inteiro. Nas décadas de
1920 e 1930, arte e cultura alcançam progressos notáveis, até que
em 1939 surge de novo o tumulto da guerra.
Entre os destaques, a mostra traz algumas das
obras-primas de artistas que permanecem quase desconhecidos para a
grande maioria do público, caso do pintor, desenhista, escultor, escritor e professor Joaquín Torres-García
(1874–1949), considerado o primeiro dos construtivistas da América Latina. Nascido em Montevideo, filho de mãe uruguaia e pai catalão, Torres-García viveu durante mais de 40 anos nos Estados Unidos e na Europa, com atuação destacada na França e na Espanha, onde foi colaborador de Antoni Gaudí. Na mostra "New Harmony", Torres-García aparece entre os destaques da Arte Moderna no entre guerras com obras-primas ainda
hoje supreendentes, entre elas "Composión", de 1938, e “América Invertida”, de 1943.
Outro convite à descoberta, segundo Bashkoff, é a
visão radical da revista “De Stijl” (“O estilo”, em
holandês), publicação iniciada em 1917 por Theo van Doesburg,
tendo colaboradores como Mondrian e o designer Gerrit
Rietveld. Não por acaso, Theo van Doesburg, Mondrian e Rietveld viriam a compor um importante movimento de vanguarda, o
Neoplasticismo, que exerceu profunda influência no mundo inteiro, no último século, não só sobre as artes plásticas, mas também sobre os rumos do que hoje se conhece de forma mais geral e abrangente por "design".
De Stijl: trajetórias
Através da trajetória das formulações radicais da revista “De
Stijl”, que circulou durante uma década, entre 1917 e 1928, e que
com frequência adotava a forma de manifesto, foi desenvolvida toda
uma linguagem estética universal formada a partir de princípios da
geometria, sugerindo formas de equilíbrio e harmonia na arte e na
vida em sociedade. Na arquitetura e no design gráfico, de interiores, de moda e
industrial, tudo indica que a influência da 'De Stijl'
talvez tenha ido ainda mais longe.
“Com o intercâmbio entre o grupo
da “De Stijl' e a Escola Bauhaus, o ideal neoplástico tornou-se
imensamente popular, com produção e consumo em escala industrial de
infindáveis peças diretamente inspiradas pelas propostas do grupo
holandês. Este ideal neoplástico, desde então, adquiriu um caráter
‘moderno’, voltado para o futuro. Até hoje, obras como a
Poltrona de Rietveld e outros projetos do período da Bauhaus são imediatamente associadas a uma atitude
voltada para o futuro, sendo comum ver até mesmo em filmes de ficção
científica cenários recheados de elementos neoplásticos como forma
de realçar o aspecto ‘futurista’ do ambiente”, completa
Bashkoff.
O
legado do grupo “De
Stijl” também está presente na liberdade dos cartuns, nas
histórias em quadrinhos e no que se convencionou chamar de “graphic
novel”, além de embalagens em geral e até em áreas insuspeitas e
improváveis como a música pop: em 2000, o duo norte-americano de
blues-rock White Stripe lançou um álbum denominado “De Stijl”,
cuja capa é composta por uma foto do casal de integrantes da banda
em um ambiente inspirado pelo movimento holandês – pontuado por
blocos lisos vermelhos e brancos e hastes pretas.
Revoluções: Dadaísmo e Surrealismo
Ao observar algumas das imagens presentes na mostra do
Guggenheim, é possível reconhecer de memória, sem muito esforço,
certas padronagens industriais do último século. Segundo Bashkoff,
de todas as experiências estéticas e formais da arte naquele
período entre guerras, incluindo as revoluções do Dadaísmo e do
Surrealismo, as composições da “De Stijl”, tanto quanto sua
influência para os mestres da Bauhaus e de outras escolas, fincaram
mais forte suas raízes no imaginário popular e nas linhas de
montagem industrial pelo mundo afora.
“Com sua mistura de cores contrastantes e figuras
geométricas de traços mínimos, imprecisas e irregulares, a
influência da 'De Stijl' torna-se imediatamente reconhecível não
só nas artes plásticas, com a Abstração passando de experiência
marginal ao centro da concepção estética de toda uma época, sendo
em sequida apropriada pela indústria cultural em tudo o que envolva composição e diagramação em artes gráficas, de livros, jornais, revistas, discos, cartazes e letreiros em geral ao cinema, à moda, ao mobiliário”, destaca Bashkoff.
Exemplos e modelos desta influência maciça de
elementos dadaístas e surrealistas permaneceram e se multiplicaram durante as últimas
décadas, conduzindo a profusão de padronagens de telas e cardápios
de conteúdo em nossa era digital, muitas vezes atualizadas com
inspiração nos célebres estudos geométricos em dimensão espacial
das obras-primas de mestres da Abstração. Segundo Bashkoff, quando
falamos em design gráfico, em qualquer suporte, a arte original de
Mondrian e dos estetas da “De Stijl” está em primeiro plano
como referência, em variações que vão de estampas para usos diversos aos objetos industriais produzidos em larga escala, não
necessariamente relacionados à arte.
Na lista dos convites à descoberta de Bashkoff também
estão construtivistas como o escultor russo Naum Gabo (1890–1977),
expoente da Arte Cinética e ativista da Documenta 1, em Kassel, além de colaborador importante da "De Stijl". “A
influência de Gabo, que defendia a abstração geométrica e migrou
para a Europa em 1921, quando a política soviética começou a
apoiar a expressão mais conservadora contra as artes de vanguarda, é
fundamental para a escultura se afirmar no ambiente da Arte Moderna”,
aponta Bashkoff. Naum Gabo é outro dos mestres que também participaram da comunidade
educacional da Bauhaus, lar de artistas com ideais sociais como Josef
Albers, Vasily Kandinsky, Paul Klee e László Moholy-Nagy, todos
eles com obras em destaque na mostra do Guggenheim Museum.
por José Antônio Orlando.
Como citar:
Como citar:
ORLANDO,
José Antônio. Arte
entre guerras.
In: Blog
Semióticas,
28
de julho de 2013.
Disponível no link
http://semioticas1.blogspot.com/2013/06/arte-entre-guerras.html
(acessado em .../.../...).
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