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10 de abril de 2012

Outros Borges







Sempre imaginei que o paraíso
será uma espécie de biblioteca.
...............
–– Jorge Luis Borges (1899-1986).



Se eu tivesse vivido no século 19, seria um mínimo, um anônimo latino-americano. No nosso século carente de referências importantes, terminei como objeto de leitura e desperto muita curiosidade nas pessoas”, disse Jorge Luis Borges em sua última entrevista, gravada em Buenos Aires pelo jornalista Roberto D’Ávila e o cineasta Walter Salles em outubro de 1985 e exibida no programa “Conexão Internacional”, na extinta TV Manchete. Poucos dias depois da entrevista, concedida à equipe brasileira na casa em que morou durante décadas, Borges embarcou para a Europa com sua secretária Maria Kodama e morreu em Genebra, Suíça, em 14 de junho de 1986, aos 86 anos.

O mais célebre escritor da América espanhola, o mesmo e sempre um outro, para muitos uma das referências mais citadas por outros escritores, pelos acadêmicos e pelos cientistas, Borges também declarou naquela última entrevista, com sua ironia que não raro desconcertava seus interlocutores, que seu maior sonho era ser um dia esquecido pelos leitores. O sonho de Borges, traduzido e publicado em numerosos idiomas, não foi cumprido: ele, definitivamente, não foi esquecido. Muito pelo contrário.

Décadas depois de sua morte, o prestígio internacional e a presença mítica de Borges e sua literatura permanecem em franca ascensão pelo mundo afora. O estilo muito conciso e erudito, tornado imortal em seus contos e seus breves relatos sobre a vida e a arte, a cada ano que passa, retorna com apelo sempre renovado para novos e antigos leitores. O que não falta nas livrarias são lançamentos e relançamentos de livros de Borges e sobre Borges.













Entre os lançamentos recentes estão as edições de entrevistas concedidas na década de 1980 pelo escritor, no auge da capacidade criativa e filosófica, na biblioteca de sua casa, ao amigo e jornalista Osvaldo Ferrari. Os 90 encontros produzidos para irem ao ar pela Rádio Municipal de Buenos Aires, que também foram publicados no jornal “Tiempo Argentino”, saem no Brasil em versão integral, em três livros da editora Hedra: “Sobre os Sonhos e Outros Diálogos”, “Sobre a Filosofia e Outros Diálogos” e “Sobre a Amizade e Outros Diálogos”, todos organizados e traduzidos por John O’Kuinghttons.



Prelúdio para o diálogo



Tento esquecer todos os muitos preconceitos que tenho e aprendi aquele admirável hábito de supor que o interlocutor tem razão. Podemos estar errados, o interlocutor pode estar tão errado quanto nós, mas, de qualquer forma, o fato de supor que o interlocutor tem razão é um bom prelúdio para o diálogo”, defende Borges com sua ironia característica em “Sobre a Filosofia”. 









Outros Borges: no alto da página, acima
e abaixo, Jorge Luis Borges 
em 1968,
fotografado por Sara Facio na época em que
Borges era diretor da Biblioteca Nacional
em Buenos Aires, Argentina.

Também abaixo, Borges e seus gatos:
Beppo
o gato branco com o qual o escritor
conviveu 
durante 15 anos e que foi batizado
com o nome do personagem criado por Byron,
Odin
o gato birmanês com o nome do
deus mais importante da mitologia nórdica,
que foi sua 
companhia em Buenos Aires nos
últimos anos de vida, 
em fotografias de
1980 de
Paola Agosti. Borges também
teve outros gatos, dois deles registrados
em fotos muito conhecidas: Freyja,
a gata da Abissínia que foi batizada em
homenagem à deusa do amor e da beleza
na mitologia nórdica (na fotografia em preto
e branco de 1982 de Amanda Ortega) e
um misterioso gato preto que está nas
fotografias da capa da primeira edição
de Uma antologia pessoal (1968) e
na primeira edição em inglês de
A personal anthology, de 1994









Outra série de entrevistas concedidas pelo escritor que chegou às livrarias é “Ensaio Autobiográfico”, relançamento da Companhia das Letras, em tradução de Maria Carolina de Araújo e Jorge Schwartz. A edição reúne a transcrição saborosas das conversas mantidas por Borges com um de seus tradutores, o jornalista norte-americano Norman Thomas di Giovanni.

Em sua maior parte ditados em inglês por Borges a seu interlocutor nos primeiros meses de 1970, os textos do livro tiveram sua primeira publicação na revistaThe New Yorker”, contribuindo para popularizar a literatura e a personalidade do escritor entre o público de língua inglesa. Até então, a fama e o prestígio de Borges estavam restritos, fora da Argentina, aos leitores mais eruditos dos países da Europa e ao público universitário, graças a cursos e palestras que o escritor apresentou nos Estados Unidos durante a década de 1960.
























No “Ensaio Autobiográfico”, Borges comenta sobre seus ancestrais paternos e maternos, sobre sua infância quase isolada do mundo, suas experiências ruins na escola e aquilo a que ele sempre nomeia como "evento principal" de sua vida: a grande biblioteca de seu pai, da qual ele acreditava "nunca ter saído". A partir dessas primeiras leituras, quase todas em inglês, ele traça a autobiografia literária e intelectual que compõe o cerne do livro.

Muitas outras referências das mais preciosas para compreender a formação e a carreira de um dos escritores mais singulares do último século também surgem no “Ensaio Autobiográfico”. No relato de Borges sobre si mesmo não faltam confissões discretas e pitadas controvertidas de política, entre elas os comentários que deixam transparecer seu ódio por Perón ("em 1946 subiu ao poder um presidente cujo nome não quero lembrar"). A aversão vem do fato de ter sido durante o governo de Perón que um memorando levou Borges a ser "promovido" do cargo de bibliotecário a inspetor de aves e coelhos nos mercados municipais de Buenos Aires. 















Jorge Luis Borges: acima, em três de seus
mais emblemáticos retratos, registrados em
1984 pelo italiano Ferdinando Scianna.

Abaixo, Borges em seu apartamento em
Buenos Aires, em novembro de 1981,
fotografado por Eduardo Di Baia; e Borges
na antiga sede da Biblioteca Nacional,
também em Buenos Aires, em 1955, na época
em que foi nomeado diretor da instituição






            











Um dos mais longos textos de um autor conhecido pela concisão exemplar, "Ensaio Autobiográfico" foi pensado inicialmente para ser uma breve introdução à edição norte-americana de The Aleph and other stories”, mas acabou ganhando outras dimensões. Além de apresentar e discutir as referências de seu imaginário, Borges faz generosas menções a grandes amigos, como Macedonio Fernández e seu parceiro em algumas obras, Adolfo Bioy Casares. Mas não cita as mulheres ou sua vida amorosa. Ao leitor atento, Borges reserva lições surpreendentes, como a confissão pessoal que encerra o relato:

"Não considero mais a felicidade inatingível, como eu acreditava tempos atrás. Agora sei que pode acontecer a qualquer momento, mas nunca se deve procurá-la. Quanto ao fracasso e à fama, parecem-me totalmente irrelevantes e não me preocupam. Agora o que procuro é a paz, o prazer do pensamento e da amizade. E, ainda que pareça demasiado ambicioso, a sensação de amar e ser amado". Estava com 71 anos. 












Borges entre amigos em Buenos Aires:
no alto, à direita, em Mar del Plata, com
Victoria Ocampo Adolfo Bioy Casares.
Acima, com Estela Canto em 1945; e com
amigos em Mar del Plata em 1964 (a partir
da esquerda, Borges, Maria Esther Vásquez,
Silvina Ocampo, Cecília Boldarin, Bioy Casares
e Martha Bioy). Abaixo, Borges com Bioy
Casares em Buenos Aires, na década de
1950; e em Barcelonaem 1985,
fotografados por Julio Giustozza.

Também abaixo, Jorge Luis Borges
com alguns de seus interlocutores e
também escritores: com o argentino
Ernesto Sabato (na década de 1970),
compartilhando um café e passeando
pela Plaza Dorrego, em Buenos Aires;
com o italiano Italo Calvino (na década
de 1980); com o mexicano Octavio Paz
durante visita ao México em 1981;
Borges aos 3 anos, em 1904; o escritor
com sua mãe, Leonor Acevedo; em 1983,
fotografado na biblioteca de seu apartamento
em Buenos Aires por Christopher Pillitz; e em
mais quatro retratos: nos dois primeiros,
fotografado por Alicia D'Amico, e nos dois
seguintes fotografado por Sylvia Plachy











Visão de mundo



Entre os lançamentos recentes também está “O Olhar de Borges – Uma Biografia Sentimental” (Editora Autêntica), de Solange Ordóñez, filha Carlos Fernández Ordóñez, advogado de Borges que herdou seus célebres cadernos de rascunhos e morreu três meses após o escritor. No relato de Solange, a aproximação familiar desde a infância com o escritor permite o viés “sentimental” nos estudos e descrições sobre os rascunhos Borges. Nos cadernos, preenchidos dos anos 1920 até os anos 1950, quando perdeu a visão, Borges anotou aforismos, aulas e as primeiras versões de algumas conferências que ministrou.

Também merece destaque nas livrarias “O Século de Borges”, da professora da UFMG Eneida Maria de Souza, relançado depois de dez anos. Editado pela Autêntica, o livro reúne 11 ensaios nos quais Eneida recria o universo de Borges com base em determinadas situações vividas pelo escritor. Temas como o exílio, as guerras, a cegueira e a morte, os grandes dilemas do homem contemporâneo, são avaliados em leitura atenta às particularidades “borgianas” e aos passos de sua biografia.









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Minha terra tem palmeiras”, primeiro ensaio do livro de Eneida Maria de Souza, aborda certas questões sobre Borges e a identidade nacional – destacando que “para o escritor argentino, a pátria, se existe como identidade, ocupa um espaço imaginário, cujas fronteiras não coincidem com as da nação”. O mesmo tema é retomado nos ensaios seguintes, principalmente em “Genebra, 14 de junho de 1986”, que discute a escolha de Borges por morrer na cidade suíça, que ele conheceu teria conhecido na juventude.

Segundo o relato de Borges registrado no programa “Conexão Internacional”, na passagem pelo Brasil, durante aquela viagem em sua juventude, ele teria ouvido um serviçal cantar uma canção inspirada no poema “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias. Na entrevista, Borges cantarola os versos em português, dos quais ele nunca mais esqueceu:


Minha terra tem palmeiras
Onde canta o Sabiá
As aves, que aqui gorjeiam
Não gorjeiam como lá...















Em exercício de maestria em literatura comparada, o ensaio de Eneida cita os mesmos versos para recorrer ao tema do duplo, muito presente na obra de Borges, em sua relação com Stevenson, Freud e Oscar Wilde, entre outros. E lembra que, diferente do romântico brasileiro Gonçalves Dias (1823-1864), que sonhava morrer em solo pátrio, como símbolo de um novo nascimento, Borges preferiu morrer no lugar que simboliza o nascimento, não do corpo, mas do intelectual para o conhecimento e a literatura.

Outro lançamento sobre o autor de “História Universal da Infâmia” (1935) vem da Editora UFMG: “Borges e Outros Rabinos”, de Lyslei Nascimento, que aborda a apaixonada leitura de Borges sobre elementos da cultura judaica. Na trilha das referências e citações da Bíblia e dos símbolos do judaísmo na obra do escritor, o livro é uma versão da tese de doutorado da autora, que é professora da da UFMG.

 





Os grandes escritores não envelhecem nunca. Muito pelo contrário, estão sempre atuais. Veja Shakespeare, Cervantes ou Machado de Assis”, aponta Lyslei Nascimento. “No caso de Borges, trata-se de uma obra que se confunde com o próprio conceito de literatura. Ou melhor, é uma literatura produzida à moda dos rabinos, na qual a verdade está sempre sendo escrita, sendo construída como um comentário ou uma interpretação, nunca é completa”. Para a professora, que também coordena o Núcleo de Estudos Judaicos da UFMG, Borges encontra na Bíblia uma das razões de sua revolucionária arte de narrar, construída de citações e comentários sobre os autores da biblioteca universal.



O cadáver ilustre



Assim como no modo judaico de escrita e interpretação da escrita, Borges reescreve a verdade”, alerta a professora. “Sua literatura abole os conceitos de originalidade e de autoria, no papel de traduzir a tradição da cultura. É uma literatura que prova que a verdade depende sempre do ponto de vista. Meu objetivo foi ler nos textos de Borges símbolos como o Aleph, o Golem, a narrativa policial e os contos sobre a Shoah”, conclui.  













Situando-se às margens das preocupações sociais comuns à maior parte dos escritores latino-americanos, Borges permanece aberto à pesquisa e ao diálogo. Como destaca ele próprio, em “Sobre a Filosofia”: “O diálogo é um dos melhores hábitos do homem, inventado, como quase todas as coisas, pelos gregos. Os gregos começaram a conversar e continuamos desde então”.

Herdeiro de uma cegueira hereditária, Borges, gradativamente, vai ficando cego a partir dos 45 anos. Por ironia do destino, o avanço da cegueira coincide com o melhor da literatura que ele iria produzir, incluindo a publicação de seus livros mais famosos, “Ficções” (1944) e “O Aleph” (1949), ambos coletâneas de histórias curtas interligadas por temas como os sonhos, espelhos, labirintos, bibliotecas, Deus e as religiões.

Nas palavras de Borges, "os poetas, como os cegos, podem ver no escuro". É como se o escritor começasse a usar a imaginação para “enxergar” e criar sua poética a partir da memória visual de imagens e de leituras armazenadas antes da perda da visão real. A expressão “ver com os olhos da imaginação” o próprio Borges retirou de um verso da “Divina Comédia” de Dante Alighieri (1265–1321): “Poi piovve dentro a l’alta fantasia”.









A chuva, ao produzir imagens de pouca nitidez, forma uma espécie de cortina que chega a embaçar a visão: daí a estratégia narrativa de Borges de assumir máscaras de outros Borges e outros escritores, reais ou fictícios, assumindo o papel de um ator na ação imaginária para produzir uma obra literária feita de ecos e espelhos, calcada na fantasia. Através da invenção literária, Borges passaria a “enxergar” o que um homem de visão pensa que vê e o que o cego não parece poder enxergar: a vida inventada passaria então a fazer parte da existência real, cotidiana.

Os desdobramentos da literatura de Borges também nos levam até “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”, conto publicado pela primeira vez em 1940 e incluído em “Ficções”, que relata a criação concretizada por meio da linguagem. Na história, um artigo enciclopédico sobre um enigmático país chamado Uqbar é a primeira indicação sobre Orbis Tertius, gigantesca conspiração de intelectuais para imaginar (e possivelmente criar) um novo mundo: Tlön.

 









Últimas fotos: Borges e Maria Kodama
em junho de 1986 passeiam por Genebra
(acima e abaixo), e Borges acompanhado por
Kodama em visita às pirâmides do Egito,
em 1980, na época em que Borges, em
testamento, transferiu todos os seus bens
para Kodama, na época sua secretária.
Borges e Kodama se casaram em 1986,
pouco antes da morte do escritor.


Também abaixo, Borges homenageado
em uma caricatura de autor anônimo
e seu túmulo em Genebra, Suíça,
com a lápide que apresenta uma imagem de
guerreiros talhados na pedra e uma inscrição
abaixo do nome de Borges com a citação
de um poema anglo-saxão do século 10,
A batalha de Maldon, traduzido por
Borges, que evoca uma batalha heroica
contra invasores vikings. A inscrição diz
"And ne forhtedon na" e pode ser
traduzida por Não tenha medo.
No final da página, uma homenagem
ao escritor nas ruas de Buenos Aires












A realidade de Tlön, recriada, se afirma como imagem inversa do mundo real, imagem em um espelho imaginário, em que as coisas se duplicam. Borges, que por capricho do destino traz no próprio sobrenome a forma plural, segue e refaz, sutilmente, as leis não escritas do espaço e do infinito em jogos de espelho que refletem, duplicam, atualizam os grandes clássicos da literatura fantástica.

No universo que a escrita de Borges circunscreve, a criação pelas letras e pelos reflexos de outros livros, outros autores, passa a ser compreendida como um processo de transfiguração. Este processo está representado em alguns de seus contos mais celebrados, que fornecem autênticas pedras angulares sobre o próprio Borges e sobre seus duplos, como se vê em “Pierre Menard, autor do Quixote” ou em “Funes, o Memorioso”, entre tantos outros. Sua herança, contudo, ainda gera polêmicas no mundo real.







A Fundação Borges, fundada por sua viúva, Maria Kodama, em 1995, segue mal vista pelo público e por setores da intelectualidade dentro e fora da Argentina. Muitos consideram Kodama uma “aproveitadora” porque ela se casou com o escritor apenas dois meses antes dele morrer, em 14 de junho de 1986. Quase tudo ficou com a viúva – incluindo os bens da herança e os direitos autorais. Ela diz que conheceu Borges aos 12 anos, quando foi levada pelo pai a uma conferência do escritor em Buenos Aires. 

Depois de acompanhar a participação de Borges em eventos públicos e de se matricular em alguns cursos com o escritor, Kodama passou a trabalhar como sua secretária a partir de 1975. Desde a morte do autor de "Ficções", Kodama tem se dedicado “full time” à fundação, primeiro na criação da entidade e depois na manutenção do acervo. A Fundação Borges, com sede em Buenos Aires, organiza exposições e eventos na Argentina e no exterior. Também gerencia o espólio e detém os direitos sobre traduções e edições das obras completas de Borges.

O corpo do escritor, que repousa no cemitério de Plainpalais em Genebra, também tem gerado mais de uma controvérsia nas últimas décadas. Recentemente, políticos argentinos chegaram a fazer uma campanha para tentar trazer de volta os restos mortais às terras portenhas – mas a iniciativa fracassou. As autoridades suíças não abriram mão dos direitos sobre o cadáver ilustre.


por José Antônio Orlando.


Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Outros Borges. In: Blog Semióticas, 10 de abril de 2012. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2012/04/outros-borges.html (acessado em .../.../…).




















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