A
escritora Lya Luft foi durante muitos anos um sucesso inquestionável de público, com
mais de 20 livros publicados. Mas nos últimos tempos surgiram muitas controvérsias. Por décadas
considerada uma unanimidade, nos últimos anos ela tem ousado cada vez
mais em literatura, mas também expôs suas posições políticas de direita e opções partidárias que muitos consideram equivocadas e antidemocráticas. Com tudo isso, a aura de sabedoria de Lya Luft sofreu abalos consideráveis e acabou dividindo as opiniões da crítica. Alguns de seus desafetos
na imprensa até chegaram a acusá-la de trocar a literatura pela
produção de livros de auto-ajuda.
Aparentemente impávida
e segura de si, ela segue em frente e continua trilhando novas
possibilidades com seus textos às vezes difíceis de classificar. Há
pouco tempo, decidiu investir em ensaios, com a publicação de
“Múltipla Escolha” pela editora Record. Antes de chegar a esta
coletânea de ensaios, a extensa lista de livros escritos por Lya Luft –
que nasceu em uma família de descendentes de alemães na pequena cidade gaúcha de colonização alemã Santa
Cruz do Sul, em 15 de setembro 1938 – já incluía gêneros
diversos, uma habilidade que sempre intrigou seus críticos mais
renitentes.
Entre
os livros que publicou estão romances, coletâneas de poemas,
crônicas e livros infantis, alguns deles premiados e a maior parte traduzida para
diversos idiomas, como alemão, inglês, espanhol e italiano.
Professora universitária aposentada, mestre em linguística e em
literatura brasileira (com tese sobre Lígia Fagundes Telles),
colaboradora de jornais e revistas, tradutora de Virginia Woolf,
Rainer Maria Rilke, Hermann Hesse, Doris Lessing, Günter Grass e
Thomas Mann, entre outros, Lya Luft concedeu esta entrevista por
telefone às vésperas de viajar para Belo Horizonte, onde esteve
para mais uma sessão de autógrafos e debate com o público no
projeto Sempre Um Papo.
"Você
leu este Múltipla Escolha?”, ela questiona, gentil mas também
desafiadora, logo no início da entrevista por telefone, de Porto
Alegre, onde mora desde a década de 1960. “Pois então você certamente percebeu que são textos que tentam traduzir alguns exercícios de
reflexão", explica, citando um ou outro dos temas abordados no
livro. Pergunto sobre as polêmicas na imprensa e sobre os juízos de
valor radicais sobre seu livro de ensaios. Ela faz uma pausa, diz que ficou surpresa com a pergunta e argumenta, também
questionando, se tais opiniões talvez não venham da pouca
intimidade de alguns críticos veteranos ou iniciantes com a ousadia
que o gênero ensaio representa, uma vez que sua característica
essencial é a reflexão e não a certeza das teses ou a pesquisa
centrada em fontes da reportagem jornalística.
"O
gênero ensaio é uma prática muito mais frequente entre escritores
e pensadores dos países da Europa. No Brasil, com raríssimas
exceções, é um gênero que nunca vingou. Há, sim, entre nós, a
tradição do ensaio acadêmico, monográfico. Mas como gênero mais
livre, abrangente, é pouco comum nas nossas letras". A edição
de “Múltipla Escolha” reúne 50 textos breves que têm em comum
a abordagem do que Lya Luft chamou de "mitos enganosos da
cultura brasileira e das relações humanas e familiares".
"É
um livro de questionamentos. Esta é uma boa definição para os
ensaios que selecionei para a edição. São textos em que tento
atrair o leitor para dividir comigo as dúvidas sobre muitas
perguntas que dificultam nossa tarefa existencial", ela destaca,
lembrando que desde a mais remota Antiguidade é uma prática comum a
cultura humana criar muitos mitos na tentativa de explicar o que os
homens não podem entender, como o nascimento e a morte, o desejo de
eternidade, os impulsos mais sombrios e insuspeitados.
Mitos modernos
"Hoje
são muitos os mitos modernos criados para abafar nossos enganos,
nossa angústia e nossa futilidade no dia a dia. O que não deixa de
ser compreensível. Nosso instinto de alegria precisa sobreviver para
escaparmos dessas armadilhas", alerta. Sobre o retorno à
capital mineira, Lya Luft diz que para os mineiros guarda sempre, de longa data, as
melhores expectativas.
"Minha
relação com Belo Horizonte e com Minas Gerais é muito antiga, vem
de muito antes da ligação amorosa que tive com o Hélio Pellegrino.
Sempre cultivei um afeto especial por Minas e pelos mineiros, talvez
por causa da personalidade forte de toda produção intelectual e
artística que vem da gente daí, das Minas Gerais. Basta prestar
atenção, por exemplo, na literatura brasileira, que tem uma raiz
mineira tão forte e influente". A literatura no Brasil de hoje,
na avaliação de Lya Luft, vive um bom momento, mas está em um
processo de franca transição.
"Temos
alguns veteranos na ativa, produzindo obras da maior qualidade, e
temos jovens autores muito bons. As editoras brasileiras nunca
venderam tanto, em nenhuma outra época. O problema é que também se
publica muita bobagem. Hoje todo mundo quer publicar livros. É a
última moda. O momento é de transição, mas o lugar da literatura
no Brasil é dos melhores, com toda certeza. Temos grandes escritores, temos um cânone, temos referências importantes que ultrapassam nossas fronteiras geográficas e que ultrapassam até as fronteiras da língua portuguesa. Não preciso citar os nomes porque você sabe quais são eles. E são vários".
Sobre
este momento atual, de transição, ela relatou suas suspeitas de que
talvez as mudanças sejam motivadas pelas novas tecnologias e pela
avalanche de novidades e hábitos de comportamento que a Internet
trouxe para o cotidiano das pessoas comuns. "O computador e a
Internet estão na minha vida há quase duas décadas. Creio que fui
uma das pioneiras entre os escritores brasileiros. Uso muito as
mensagens de e-mail, compro livros e pesquiso na rede todos os dias,
o tempo todo. Só não participo de Twitter, de Facebook e dessas plataformas de redes de amigos e de angariar seguidores porque não tenho tanto tempo livre e porque ainda
prezo muito minha intimidade e minha privacidade", confessa, em tom de ironia.
Múltipla escolha
Enquanto
viajava para participar do evento em Belo Horizonte, Lya Luft já
estava envolvida com uma nova publicação reunindo suas crônicas
mais recentes publicadas na imprensa – “A Riqueza do Mundo”,
também em edição pela Record. O próximo projeto em livro, também em andamento, depois dos ensaios e das crônicas, vai marcar seu retorno ao que ela
diz ser o seu ambiente de predileção: a arte do romance.
"O
próximo livro tem o título provisório de 'A mulher que não existia', mas está bem no começo. Não tenho nem previsão para
concluir. Vou escrevendo, enquanto faço outras coisas, entre um
livro e outro, e acompanho de perto a vida de meus filhos e netos. Será um relato muito pessoal meu sobre as fases da vida de uma mulher. Talvez o título mude para 'Um rio que corre', porque a vida é isso, o tempo é isso, não é mesmo? É um rio que corre".
Em 1985, ela divorciou-se de seu primeiro marido para viver um grande
amor com o psicanalista e escritor mineiro Hélio Pellegrino, que
morreria em 1988.
"Minha
vida com Hélio foi uma tempestade de primavera – tão breve quanto
intensa. Nós estivemos juntos por dois anos e três meses. Foi meu
segundo casamento e uma sorte, um privilégio. Aliás, preciso
reconhecer que tive o privilégio de encontrar parceiros
excepcionais”, revela, entre pausas, fazendo de novo alguma ironia sobre
seus percalços sentimentais. Em 1992, ela voltaria ao casamento com
o primeiro marido, Celso Pedro Luft, de quem ficou viúva em 1995.
O
primeiro casamento com Celso, ela recorda, aconteceu em 1963, logo
depois de seu aniversário de 21 anos. Celso, que naquela época era
irmão marista e 19 anos mais velho, deixou a vida religiosa para
viverem juntos um caso de amor. Os dois se conheceram numa situação
das mais prosaicas: durante uma prova de vestibular, para a qual ela
chegou atrasada.
Vivendo
atualmente o terceiro casamento, Lya Luft é mãe de três filhos e
comemora a condição de avó. Os três filhos nasceram do primeiro
casamento com Celso. "Meus filhos são meus amores mais
permanentes. Suzana é médica, André é agrônomo e Eduardo é
filósofo. Tenho muito orgulho dos três, que me deram sete netos
maravilhosos". Foi no início do primeiro casamento que ela
começou a escrever poemas, em pouco tempo reunidos no livro "Canções
de Limiar", de 1964.
O
segundo livro de poemas foi publicado em 1972, "Flauta Doce".
Em 1978, lançou sua primeira coletânea de contos, com o título
"Matéria do Cotidiano". A consagração viria em 1980,
quando Lya Luft publicou o romance "As Parceiras", seguido
por "A Asa Esquerda do Anjo" (1981) e "Reunião de
Família" (1982). "A Asa Esquerda do Anjo' é uma exceção
entre tudo o que publiquei porque é dos meus poucos trabalhos em que
o título já estava definido muito antes do próprio livro".
Histórias da Bruxa
Lya
Luft estreou na literatura infantil em 2004, com "Histórias
da Bruxa Boa", retornando ao gênero em 2007, com "A Volta
da Bruxa Boa", e em 2009, quando publicou "Criança Pensa"
– produzido em parceria com seu filho filósofo, Eduardo, e
seguindo uma certa linha de pensamento que busca estimular na
infância e adolescência a observação, a análise e o
discernimento sobre as coisas simples e complexas da vida.
Os
ensaios, por sua vez, surgiram na sua trajetória de escritora em
1996, ano de publicação de "O Rio do Meio", premiado pela
Associação Paulista de Críticos de Arte. "Este 'O Rio do
Meio' na verdade tinha mais parentesco com a ficção", ela faz
questão de ressaltar. "Bem diferente dos ensaios reunidos neste
livro mais recente, que estão centrados em questões de ética,
política, comportamento e antropologia".
No
breve tempo da entrevista retornamos às polêmicas recentes em que ela esteve envolvida ou citada, mas ela evitou citar nomes ou contradizer os
ataques quase ofensivos assinados por um ou outro crítico em jornais
e revistas. Os ataques ela considera que tenham sido uma forma de
resposta a alguns de seus posicionamentos políticos pontuais, vindos
de comentaristas rancorosos para os quais, talvez, o livro de ensaios
não teria nenhuma relação com a importância da literatura que ela
vem produzindo há décadas.
Algumas
das questões sobre a política e a vida cotidiana que apresento na
entrevista ela prefere não responder. Mas explica, com gentileza,
suas intenções com a reflexão reunida nos textos de “Múltipla
Escolha”. “Isso está no livro. Lá o raciocínio está mais
elaborado porque é o que eu tinha em mente, denunciar certos
problemas cruciais dos dias atuais, algo trabalhado também nos dias
de hoje por uns poucos escritores nos quais ainda se encontram
ideias", destacou, citando de passagem um ou outro título de
Zygmunt Bauman e de Umberto Eco, entre outros pensadores contemporâneos sobre os quais ela declara admiração e que lê com muita frequência.
Polêmica e temas difíceis
Ainda
sobre os pontos em comum entre seus ensaios e o que propõe um ou
outro livro de grandes pensadores contemporâneos, Lya Luft destaca a
questão dos medos, da insegurança, da dificuldade atual de se
manter uma identidade e de se tomar decisões. “Por isso este livro
de ensaios gerou tanta polêmica”, reconhece, tomando como exemplo
a cobertura sempre parcial da imprensa sobre certos acontecimentos
recentes. “São temas difíceis, que tendem a ser amplos, variados
e especialmente focalizados na vida cotidiana de homens e mulheres
comuns”.
Peço
licença para ler um trecho de “Múltipla Escolha” que eu havia
marcado para citar na redação da entrevista, que diz: “O olho do
outro está grudado em mim e me sinto permanentemente avaliado, nem
sempre aprovado: se eu não for como sugerem ou exigem meu grupo,
família, sociedade, se não atender às propagandas, aos modelos e
ideais sugeridos, serei considerado diferente”. Ela elogiou a
escolha e continuou a citação do texto, provando que o conhecia de
cor:
“É
isso mesmo. Como adolescentes queremos ser iguais à turma, como
adultos queremos ser aceitos pela tribo: a pressão social é um fato
inegável", completa. “Globalização, sociedade de consumo,
amor, comunidade, individualidade são algumas das questões sobre as
quais busco a reflexão com os ensaios que estão no livro, sempre
tentando salientar a dimensão amorosa que deve nortear tudo o que
diz respeito à condição humana”.
Reflexões
a respeito dos principais problemas sociais como a pobreza,
desigualdade social, e também de questões afetivas ligadas a
relacionamentos estão presentes a todo momento na mídia e na
imprensa. A diferença é que os ensaios de Lya Luft caminham pelo
lado prático e pelo lado ético, simultaneamente, tratando desses
assuntos por intermédio de sua própria vivência e sem dar um
caráter acadêmico ao texto. Como resultado, ela consegue conduzir o
leitor em um tom de conversa, quase como se fizesse uma
"autoentrevista".
Segundo
Lya Luft, o título do livro, "Múltipla Escolha", na
verdade traduzia à perfeição sua filosofia de vida. "É um
livro de questionamentos. Não é uma coletânea de certezas. São
textos em que tento dividir as dúvidas com o leitor. Porque eu
realmente acredito que são estas as grandes questões para cada um
de nós nos dias que correm. É preciso saber escolher, é preciso
ter consciência de nossas escolhas", alerta. "Este talvez
seja o grande desafio de nossas vidas”.
por José
Antônio Orlando.
Como
citar:
ORLANDO,
José Antônio. Ensaios de Lya Luft. In: _____. Blog
Semióticas,
6 de abril de 2012. Disponível no link
http://semioticas1.blogspot.com/2012/04/ensaios-de-lya-luft.html
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