saber
não basta, carece corromper
comprometer
e ameaçar o que existe acordei bemol tudo estava sustenido sol fazia só não fazia sentido
–– Paulo
Leminski.
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Tido entre os grandes poetas brasileiros das últimas décadas, parceiro de Caetano Veloso, Haroldo de Campos, Moraes Moreira, Wally Salomão, Itamar Assumpção, entre outros, autor de um sem número de canções, mentor de atividades e produções culturais das mais diversas, hippie, ensaísta, professor, jornalista, publicitário, contista, tradutor, autor de literatura infanto-juvenil, romancista, Paulo Leminski (1944–1989) foi descoberto em agosto de 1963, na Semana Nacional de Poesia de Vanguarda realizada em Belo Horizonte, que reuniu alguns dos importantes intelectuais do Brasil naquele momento, entre poetas, críticos, professores e tradutores.
Naquela
época, Leminski era um judoca faixa-preta de 19 anos que escrevia
versos e que tinha viajado de Curitiba a BH para participar do evento. Impressionou a todos os poetas veteranos e cabeças pensantes presentes,
incluindo o organizador da Semana, Affonso Ávila (1928–2012), sua
esposa, a também escritora e poeta Laís Corrêa de Araújo
(1928–2006), os expoentes da Poesia Concreta, Augusto de Campos,
Haroldo de Campos (1929–2003) e Décio Pignatari (1927–2012), e
mais, entre outros, Luiz Costa Lima, Benedito Nunes, Roberto Pontual, Frederico
Moraes.
Na
memória de todos, o jovem Leminski causou a melhor impressão, cheio
de novas ideias e ao mesmo tempo em total sintonia com os veteranos.
Tive a sorte de entrevistar algumas vezes Affonso Ávila (veja
mais em Semióticas: Máximo no mínimo), Haroldo de Campos e Décio
Pignatari – e todos sempre foram unânimes em destacar aquela primeira impressão que Leminski conseguiu imprimir em todos, em 1963, e o valor que sua literatura adquiriu, com seus textos híbridos, personalíssimos, seus haikais e trocadilhos. Para Haroldo de Campos, Leminski foi o
melhor poeta de sua geração – a mesma geração que tem, entre outros, Caetano Veloso, Chico Buarque
e Gilberto Gil.
Exatos
13 anos depois daquele primeiro encontro em BH, o primeiro livro de
Leminski seria lançado: “Quarenta Clics em Curitiba” (1976). Sete anos depois, no sexto livro que publicou, “Caprichos & Relaxos” (1983), seu primeiro lançamento por uma grande editora, a Brasiliense, Haroldo de Campos escreveu na apresentação: “Foi em 1963, na Semana de Poesia de Vanguarda, em Belo Horizonte, que Leminski nos apareceu, 18 ou 19 anos, Rimbaud curitibano com físico de judoca, escandindo versos homéricos, como se fosse um discípulo zen de Bashô, o Senhor Bananeira”. Agora, 50 anos depois da estreia que provocou a melhor impressão nos
veteranos, Leminski ganha, finalmente, um tributo de peso. Chegou às
livrarias “Toda Poesia”, edição da Companhia das Letras que reúne mais de 600
poemas de sua obra escrita e publicada.
O verso sofisticado
O verso sofisticado
A
seleção e organização de “Toda Poesia”, a cargo de Alice
Ruiz, viúva de Leminski, também poeta e sua parceira em muitos
trabalhos, inclui os primeiros versos publicados por ele em sua terra
natal, ainda em edição artesanal, assim como os poemas publicados
em "Quarenta Clics em Curitiba" e em seus livros, que
estavam fora de catálogo há décadas, e os póstumos, como
“Winterverno" (2001),
além de ensaios assinados por Caetano Veloso, Haroldo de Campos,
Wilson Bueno, José Miguel Wisnik, Leyla Perrone-Moisés e Alice
Ruiz.
. |
Morto
em 7 de junho de 1989, em decorrência do agravamento de uma cirrose hepática, poucos meses antes de completar
45 anos, Leminski sempre preferiu escrever poemas breves,
especializando-se no haicai, forma poética das mais concisas,
surgida no século 16 – ligada ao Taoismo e à filosofia
espiritualista dos mestres zen-budistas – e forte referência para
grande parte das publicações artesanais de seus contemporâneos no
final da década de 1960 e anos seguintes.
Cabe
(quase) tudo nos versos sofisticados de Leminski, do mais prosaico,
pessoal, cotidiano, ao erudito e o pop: seu jeito muito pessoal de composição criava mosaicos poéticos muito autênticos com brincadeiras, bom humor e ironias, trocadilhos, ditados populares, gírias e palavrões, tudo combinado de uma forma sempre surpreendente e instigante. Nos ensaios que acompanham
“Toda Poesia”, Leminski é reconhecido como voz poderosa na
poesia brasileira contemporânea – apontado na linhagem dos
poetas-inventores, aqueles que criam novos processos ou novas formas
de diálogo com a tradição.
A
transição entre o erudito e o pop, passando pelo mais coloquial e pela dedicação amorosa ao haikai, com sua brevidade que oscila da
reflexão filosófica à anedota, observados a posteriori aproximam Leminski dos chamados “poetas marginais” que nos anos 1970 formaram a "geração mimeógrafo",
entre eles Ana Cristina César (1952–1983), Cacaso (pseudônimo de
Antônio Carlos de Brito, 1944–1987), Francisco Alvim e Chacal
(Ricardo Carvalho Duarte), que estiveram à margem das publicações das grandes editoras e que foram reunidos pelo célebre estudo "26 Poetas Hoje", que Heloísa Buarque de Hollanda publicou pela Editora Brasilense em 1976.
Tal aproximação tem provocado alguns equívocos, já que a historiografia com frequência associa a literatura – e especialmente a poesia – de Leminski à produção dos poetas marginais, à “geração mimeógrafo” dos anos 1970, apesar dele nunca ter mantido nenhum contato ou relação com o grupo que, na maioria, tinha atuação centrada no Rio de Janeiro, com sua produção artesanal de livros e folhetos impressos principalmente em mimeógrafos, sem qualquer tipo de vínculo com as editoras tradicionais, e vendidos em poucas cópias para um público restrito em shows, exposições e bares ligados ao ambiente da contracultura.
A diversidade imprevisível
Há
semelhanças sim com a poesia da geração mimeógrafo e com muitos nomes de sua geração, mas as referências de
Leminski são outras, de Petrônio (“Satyricon”) ao James Joyce
de “Finnegans Wake”, dos beatniks norte-americanos à tríade
concretista Pignatari-Haroldo-Augusto de Campos, do simbolista francês Rimbaud e do experimentalismo de Stéphane Mallarmé ao sindicalista polonês Lech Walesa
(cujos vastos bigodes, à moda de Nietzsche, foram adotados por
Leminski), mais Descartes, Leon Trotski, Samuel Beckett, Yukio Mishima, Matsuo Bashô, o lendário
criador de haikais, Cruz e Sousa e vários outros nomes de uma galeria tão diversa quanto imprevisível.
. |
Entre
as influências, assim como é influência para todos os “marginais” da geração
de Leminski, há também o tropicalista Torquato Neto (1944–1972),
além do investimento com a poesia nos mais diversos suportes e
formatos, levada às ruas, praças e bares como alternativa de
publicação e de resistência à censura imposta pela ditadura
militar. Para Leminski e para muitos “marginais” daquele período
histórico, tudo passou a ser considerado suporte para a expressão e
a impressão da poesia, fosse um folheto, um guardanapo de papel, um
cartão, uma camiseta, cópias em xerox, apresentações teatrais em calçadas
e pontos de ônibus.
Leminski
não viveu para ver a Internet e as redes sociais povoando nosso dia
a dia, mas é impressionante como ele é uma personalidade presente nos domínios da World Wide Web em uma extensa variedade da produção extratextual
tanto dele como sobre ele. Tem de tudo: textos, poemas, vídeos, fotos,
entrevistas, músicas, performances, sem contar que Leminski é o pretenso protagonista de nada menos que seis perfis “oficiais” no Twitter e outros tantos no
Facebook e no Instagram. O poeta de Curitiba também aparece em canais de vídeos no Youtube e é
homenageado em centenas de sites e blogs de fãs e mais fãs. Nada
mal para alguém que não conviveu com o computador e que se dizia
apaixonado, perdidamente apaixonado, por uma antiga máquina de escrever.
por
José Antônio Orlando.
Como
citar:
ORLANDO,
José Antônio. Poeta
Leminski.
In: Blog
Semióticas,
16
de fevereiro
de 2013.
Disponível no link
http://semioticas1.blogspot.com/2013/02/poeta-leminski.html
(acessado em .../.../...).
Para
comprar o livro Toda Poesia, de Paulo Leminski, clique aqui.
Para
visitar a lista de parcerias musicais de Leminski, clique aqui.
Imagens de Leminski: no alto, com Alice Ruiz. Abaixo, em São Paulo, em 1983, fotografado por Ovidio Vieira; em Curitiba, fotografado em casa e no estúdio; e um verso do poeta em grafite num muro de Curitiba |
Abaixo,
uma pequena amostra das
pérolas de Paulo Leminski que foram reunidas na edição de Toda Poesia:
Aqui
jaz um grande poeta.
Nada deixou escrito.
Este silêncio,
acredito,
são suas obras completas
tão
alta
a
torre
alta
a
torre
até
seu
tombo
virou
lenda
seu
tombo
virou
lenda
*
* *
vão
é tudo
que não for prazer
repartido prazer
entre parceiros
que não for prazer
repartido prazer
entre parceiros
vãs
todas as coisas que vão
todas as coisas que vão
eu
vi o sol ao quadrado
o sol de olho saltado
multiplicado pelo sol
o sol de olho saltado
multiplicado pelo sol
*
* *
no
campo
em casa
no palácio
está nas últimas
a última flor do lácio
em casa
no palácio
está nas últimas
a última flor do lácio
cretino
beócio
palhaço
dê o último adeus
à última flor do lácio
beócio
palhaço
dê o último adeus
à última flor do lácio
a
fogo
a laço
ninguém segura
a queda da última flor do lácio
a laço
ninguém segura
a queda da última flor do lácio
sim
eu quis a prosa
essa deusa
só diz besteiras
fala das coisas
como se novas
não quis a prosa
apenas a ideia
uma ideia de prosa
em esperma de trova
um gozo
uma gosma
uma poesia porosa
eu quis a prosa
essa deusa
só diz besteiras
fala das coisas
como se novas
não quis a prosa
apenas a ideia
uma ideia de prosa
em esperma de trova
um gozo
uma gosma
uma poesia porosa
(em
“caprichos & relaxos”)
*
* *
aviso
aos náufragos
Esta página, por exemplo,
não nasceu para ser lida.
Nasceu para ser pálida,
um mero plágio da Ilíada,
alguma coisa que cala,
folha que volta pro galho,
muito depois de caída.
Nasceu para ser praia,
quem sabe Andrômeda, Antártida,
Himalaia, sílaba sentida,
nasceu para ser última
a que não nasceu ainda.
Palavras trazidas de longe
pelas águas do Nilo,
um dia, esta página, papiro,
vai ter que ser traduzida,
para o símbolo, para o sânscrito,
para todos os dialetos da Índia,
vai ter que dizer bom-dia
ao que só se diz ao pé do ouvido,
vai ter que ser a brusca pedra
onde alguém deixou cair o vidro.
Não é assim que é a vida?
Esta página, por exemplo,
não nasceu para ser lida.
Nasceu para ser pálida,
um mero plágio da Ilíada,
alguma coisa que cala,
folha que volta pro galho,
muito depois de caída.
Nasceu para ser praia,
quem sabe Andrômeda, Antártida,
Himalaia, sílaba sentida,
nasceu para ser última
a que não nasceu ainda.
Palavras trazidas de longe
pelas águas do Nilo,
um dia, esta página, papiro,
vai ter que ser traduzida,
para o símbolo, para o sânscrito,
para todos os dialetos da Índia,
vai ter que dizer bom-dia
ao que só se diz ao pé do ouvido,
vai ter que ser a brusca pedra
onde alguém deixou cair o vidro.
Não é assim que é a vida?
(em
“distraídos venceremos”)
um
homem com uma dor
é muito mais elegante
caminha assim de lado
como se chegando atrasado
andasse mais adiante
carrega o peso da dor
como se portasse medalhas
uma coroa um milhão de dólares
ou coisa que os valha
ópios édens analgésicos
não me toquem nessa dor
ela é tudo que me sobra
sofrer vai ser minha última obra
é muito mais elegante
caminha assim de lado
como se chegando atrasado
andasse mais adiante
carrega o peso da dor
como se portasse medalhas
uma coroa um milhão de dólares
ou coisa que os valha
ópios édens analgésicos
não me toquem nessa dor
ela é tudo que me sobra
sofrer vai ser minha última obra
(em
“la vie en close”)
*
* *
a
uma carta pluma
só se responde
com alguma resposta nenhuma
algo assim como se a onda
não acabasse em espuma
assim algo como se amar
fosse mais do que bruma
uma coisa assim complexa
como se um dia de chuva
fosse uma sombrinha aberta
como se, ai, como se,
de quantos como se
se faz essa história
que se chama eu e você
só se responde
com alguma resposta nenhuma
algo assim como se a onda
não acabasse em espuma
assim algo como se amar
fosse mais do que bruma
uma coisa assim complexa
como se um dia de chuva
fosse uma sombrinha aberta
como se, ai, como se,
de quantos como se
se faz essa história
que se chama eu e você
(em
“o ex-estranho”)
*
* *