Fonte inesgotável dos mais vivos e duradouros prazeres,
dos sofrimentos mais lancinantes e também das mais grandiosas
volúpias sensuais ou filosóficas ou científicas, o corpo humano, em
sua aparência e estrutura de ossos, músculos, pele, sangue, veias,
nervos, membros, vísceras, secreções, coração e cérebro, tem um
capítulo fundamental na obra-prima "De Humani Corporis Fabrica" (A estrutura do corpo humano),
publicada originalmente em 1543 pelo sábio renascentista Andreas
Vesalius (1514–1564). O livro, que tem uma trajetória lendária nos últimos séculos, finalmente ganhou uma edição no Brasil em parceria da Editora da Unicamp, Imprensa Oficial de SP e Ateliê Editorial, em parceria com a Editora Elsevier, da Holanda, uma das principais editoras internacionais especializadas em publicações científicas.
A versão nacional do livro de Vesalius também se tornou um fenômeno editorial, com tiragem esgotada poucos meses após o lançamento. Em sua época, a edição completa do livro que se
tornaria uma relíquia lendária para colecionadores e especialistas, com a aura de ter sido a primeira obra a ilustrar em planos e posições
perfeccionistas as diferentes partes do corpo humano, foi proibida e
excomungada, para depois permanecer irremediavelmente
perdida durante séculos. Um exemplar da primeira edição, de 1543, assim como a maioria das chapas em madeira das xilografias originais, reapareceriam quase por milagre quatro séculos mais tarde, na Inglaterra, na década de 1930.
Saudado, desde então, como obra de arte e marco incontestável da Ciência, o livro de Vesalius foi novamente editado em sua versão completa, com textos em
inglês e alemão e fac-símile das anotações em latim. Esta edição completa ganhou agora, finalmente, sua primeira publicação no Brasil (veja link para a edição
nacional no final deste artigo). Contemporâneo de artistas geniais como Michelangelo e
Leonardo da Vinci, Vesalius passaria à História como fundador da
Medicina e da Anatomia modernas, sempre citado por todos os
compêndios e pesquisadores, mas pouco conhecido durante séculos.
Quando se observa suas centenas de estudos reunidos em “De Humani
Corporis Fabrica”, saltam aos olhos as qualidades de metodologia
científica e registro historiográfico, assim como o progresso que
representou no “diálogo” que seu livro impresso inaugura entre
figuras e texto.
Magia e ciência na Renascença
Andreas Vesalius de Bruxelas, como a maioria dos sábios
de sua época, também foi acusado de feitiçaria, enfrentando as ameaças terríveis da Inquisição e os princípios
sagrados da tradição judaico-cristã para sobreviver como pioneiro
no que estuda e ensina dissecando o cadáver humano. As pesquisas muito avançadas e as experiências de mestre Vesalius, que por diversas vezes foram consideradas heresias e o levaram aos tribunais e às listas de persona non grata, da qual faziam parte os "alquimistas" e integrantes das irmandades secretas, cometeram o sacrilégio de estabelecer a prioridade à ciência, e não mais tão somente à religião, como base e referência primeira para
a observação direta dos fenômenos. Mais um motivo para reconhecer sua obra de 1543, também, como notável revolução na historiografia do livro –
como destacaram autoridades contemporâneas como Marshall McLuhan em "Galáxia de Gutenberg" (1962), Alberto Manguel em “Uma História da Leitura” (1996) ou Umberto Eco em “Conceito de texto” (1984) e
“Sobre a Literatura” (2003), entre outros.
Não bastasse o inventário completo descritivo e ilustrado da composição do corpo humano que Vesalius descobre e apresenta, suas ilustrações e elaborações em técnicas gráficas e
tipográficas para as xilogravuras, que ele prepara em parceria com o impressor Johannes Oporinus e de outros artistas de renome, como Ticiano,
inventaram procedimentos instrumentais para os processos de impressão, como cinzel em hachuras e retículas – no
pontilhado e nos traços paralelos, oblíquos ou cruzados que ainda
hoje, com a tecnologia digital, são usados como ferramentas de desenho e pintura para
ressaltar sombreamentos, detalhes, dimensões e texturas para impressão e visualização em suportes variados.
Entre ordenações de traços e reticulados que formam detalhes para ilustrações minuciosas, as invenções de Vesalius, e dos artistas e artesãos com os quais colaborou, deixaram como saldo a primeira representação científica e pictórica, não mais manuscrita, mas em folhas impressas e encadernadas no formato do livro. Reunidos em páginas consecutivas que resumem um vasto acervo de pesquisas e de dissecções, surgem em exposição ossos e vísceras e músculos dorsais e colunas vertebrais, com as figuras
e os breves textos de Vesalius dialogando e mesclando-se com surpreendente
criatividade. “De Humani Corporis Fabrica” leva o
leitor-observador contemporâneo a perceber um primoroso e estranho trabalho de diagramação em perspectiva e em arte descritiva, algo inigualável e que sobrevive, ainda hoje, nos diversos formatos gráficos similares do papel impresso ou das telas de tecnologias digitais.
Bíblia de 42 linhas
A combinação de forma, tipografia e ilustração, na
obra de Vesalius, representa um todo inseparável de precisão em
referências cruzadas que ultrapassa e aperfeiçoa os padrões das
formas gráficas de letras em frases e colunas de textos que simulam
o traço da caligrafia – tudo isso poucas décadas depois do
aparecimento da “Bíblia de 42 linhas” do ourives alemão Johann
Gutenberg (1398 – 1468), reconhecida como primeira obra encadernada
e impressa em série sobre papel, por volta do ano 1450.
Porém, enquanto o livro original de Andreas Vesalius utiliza a
ilustração na página para eliminar ambiguidades e delimitar
aspectos de exposição verbal, os exemplares da Bíblia Sagrada de
Gutenberg eram impressos apenas com números e letras uniformes. Em
Vesalius, o leitor encontra evidências de um diálogo esclarecedor e
extremamente inovador na composição de palavras com cada gravura,
enquanto a Bíblia de Gutenberg reunia manchas gráficas ordenadas em
páginas com duas colunas de texto, cada uma com 42 linhas simétricas
e paralelas, sendo que apenas as impressões sob encomenda da realeza eram ilustradas com iluminuras decorativas, pintadas a mão com variações cromáticas, repetindo o que havia sido prática com manuscritos medievais produzidos principalmente nos conventos e abadias.
Na impressão da Bíblia de Gutenberg, pelo processo que teve início por volta de 1450 e terminou somente em 1455, as páginas eram vendidas em
separado, sem encadernação e sem ilustrações – ficando a cargo
do comprador a ilustração e pintura posterior, feita a mão, por
ourives, de acordo com gostos ou posses de seus privilegiados e
nobres proprietários. Apontado como marco comparável à Bíblia de Gutenberg, o livro de Vesalius também estabelece parâmetros técnicos para impressão e composição de figuras e textos, motivo pelo qual seu pioneirismo é referência obrigatória em campos tão
diversos do conhecimento como a História da Arte, da Medicina, da
Anatomia, das Artes Gráficas, da Semiótica (ou das linguagens) e da Metodologia Científica. Como se não bastasse, "De Humani Corporis Fabrica" também apresenta
raridades da melhor xilogravura produzida nos últimos séculos.
De Humani Corporis Fabrica: acima e abaixo, amostras em fac-símile das primeiras pranchas anatômicas do corpo humano segundo Vesalius de Bruxelas, impressas por xilogravuras em 1543 .
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Lição de Anatomia
Nos detalhes das mais de 200 gravuras reunidas na edição
nacional, e nas breves e precisas anotações de Vesalius, é
possível reconhecer tanto a perfeição plástica quanto o
entusiasmo com que o homem sábio da Renascença descobriu o corpo humano do
obscurantismo medieval e dos milênios de tabus e dogmas religiosos.
Na edição nacional, que faz parte do projeto Edições Históricas
de Medicina, parceria entre Editora da Unicamp, Imprensa Oficial de SP, Ateliê Editorial e Editora Elsevier, o trabalho de Vesalius é apresentado em
fac-símile à edição bilíngue inglês/alemão, de 1934, publicada
pela Academia de Medicina de Nova York e pela Biblioteca da
Universidade de Munique.
A edição bilíngue de 1934, intitulada “Icones
Anatomicae” – que também foi a primeira sobre a qual há
registros desde 1543 – em sua maior parte foi impressa direto das
chapas de madeira originais, entalhadas em Veneza por Vesalius e
redescobertas depois de 400 anos. A bela edição nacional, em capa
dura e projeto gráfico que respeita as dimensões da publicação
original, em formato semelhante à página de jornal impresso tamanho
standard, inclui ensaio biográfico, análise das ilustrações e
reprodução da íntegra da arte de Vesalius que sobreviveu até
nossos dias.
A partir das anotações traduzidas do latim por J.B.D.
Saunders e Charles O'Malley, a edição nacional apresenta as séries de entalhes
didáticos das “Tabulae Sex” e da “Carta da Vivissecção”,
que circularam como excertos anônimos em diversos livros de Medicina
desde o século 16, e os impressionantes esboços de frontispício
(as primeiras páginas da edição, ou páginas de rosto originais)
para o “De Humani Corporis Fabrica” – com as cenas de sábios e seus discípulos reunidos em uma cerimônia de dissecação do cadáver, as mesmas cenas que seriam recriadas quase um século depois, em 1623, por Rembrandt, na célebre
pintura “Lição de Anatomia do Professor Tulp”.
Náufrago no Paraíso
Vesalius, nascido Andries Van Wesel, em Bruxelas, antes mesmo da publicação do seu livro havia ficado muito conhecido nas academias da Europa na Renascença por conta suas aulas e
demonstrações de dissecação do corpo humano, testemunhadas por
estudiosos, nobres e magistrados. Catedrático da Universidade de Bolonha, o sábio
autodidata centralizou todos os processos envolvidos no seu livro. Ele mesmo escreveu, organizou e acompanhou cada passo dos minuciosos trabalhos
da impressão pioneira de sua obra magnífica em diversos aspectos.
Em ilustrações, diagramações e considerações
teóricas, o trabalho de Vesalius também revela tributos e correções
importantes para estudos clássicos que vieram antes dele, na tradição
greco-latina, com interpretações revolucionárias e releituras para a fisiologia
do corpo humano e sobre preceitos de saúde, da interação com a natureza e das recomendações sobre a atividade física que vigoravam desde a Antiguidade, atribuídos a
Aristóteles (384-322 a.C.) e Galeno de Pergamum (século 2 d.C.),
entre outros mestres.
O pioneirismo de Andreas Vesalius também estende-se à noção de arte,
concebida por ele como “criação da inteligência, sujeita a
regras de perfeição apreensíveis e que podem ser formuladas e
ensinadas com precisão científica”. Pela audácia de suas experiências e de seu empreendimento com o livro, um trabalho
sem precedentes, Vesalius de Bruxelas acabou condenado à morte pela
Inquisição, sob acusação de que teria dissecado um homem vivo. Mas escapou, por misericórdia de Filipe 2°, rei da Espanha, que conseguiu
transformar a sentença final em uma peregrinação de Vesalius à terra santa de Jerusalém.
No breve ensaio biográfico que acompanha “De Humani
Corporis Fabrica”, o leitor descobre que, depois de enfrentar
séries intermináveis de peripécias dignas de galerias de heróis
picarescos da melhor ficção, Vesalius ainda sobreviveria de forma
mirabolante a um terrível naufrágio, na sua viagem de volta de Jerusalém à
Europa. Morreu, finalmente, na condição de náufrago, um sobrevivente esquecido à espera de resgate na ilha de Zante, periferia da Grécia, na época um território desabitado, até hoje citado como um dos cenários especialmente paradisíacos no
Hemisfério Norte.
por José Antônio Orlando.
Como citar:
ORLANDO,
José Antônio. De
Humani Corporis Fabrica.
In: _____. Blog
Semióticas,
6
de
outubro
de 2013.
Disponível no link
http://semioticas1.blogspot.com/2013/10/de-humani-corporis-fabrica.html
(acessado em .../.../...).
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