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8 de novembro de 2025

O fotolivro de Victor Hugo

 



Desde sua invenção, a fotografia patrocinou a expansão dos

limites do visível sobre o invisível, do revelado sobre o oculto.

–– Mauricio Lissovsky em “A máquina de esperar” (2009).   




Autor de grandes clássicos da literatura universal como “Os Miseráveis” e “O Corcunda de Notre-Dame”, romancista, poeta, dramaturgo, ensaísta, ativista pelos direitos humanos e senador de importante atuação na França, Victor Hugo (1802-1885) poderia também ter sido o primeiro autor de um fotolivro. Contudo, o seu projeto para “As Contemplações”, reunindo uma fotografia para cada poema, terminou rejeitado pela casa editorial Hetzel. Depois de anos de adiamentos, “As Contemplações” seria finalmente publicado em 1856, com 92 poemas que fizeram história, mas sem as fotografias selecionadas pelo autor. Sem a publicação do projeto original de Victor Hugo, as honrarias pelo primeiro livro com fotografias ficaram com o escritor e cientista inglês Henry Fox Talbot.

Também creditado como um dos inventores da fotografia, Talbot passou à condição de pioneiro como autor de “The Pensil of Nature” (O Lápis da Natureza), publicado em seis volumes, entre 1844 e 1846, pela casa editorial Longman, Brown, Green & Longmans de Londres, e celebrado por ser o primeiro livro a incluir reproduções fotográficas coladas em suas páginasO livro de Talbot não era uma obra de literatura e sim uma publicação científica que apresentava questões práticas do processo fotográfico e abordava seu potencial artístico, incluindo 24 fotografias, e não desenhos e gravuras, que eram as únicas possibilidades de ilustração para uma obra impressa até então. Cada uma das fotografias, incluindo retratos, reproduções de obras de arte e imagens da natureza, era acompanhada por textos explicativos com detalhes sobre a técnica e sobre as diversas aplicações possíveis para o aparato fotográfico.

Na mesma época da publicação do livro de Talbot, uma fotógrafa, Anna Atkins, também em Londres, conseguiu realizar um trabalho editorial que também foi uma proeza na pesquisa científica, nas artes gráficas e na história da fotografia. Com espécimes que ela mesma coletou ou recebeu de outros pesquisadores, Atkins produziu placas de fotografias colocando algas úmidas sobre papel fotossensibilizado, no processo conhecido como cianótipo, inventado em 1842 por John Herschel. O livro de Atkins, “Photographs of British Algae” (Fotografias de Algas Britânicas), teve edição artesanal em composições de manuscritos feitos por ela sobre cada uma das 307 imagens de algas em cianótipos.










O fotolivro de Victor Hugo: no alto e acima,
retrato do escritor feito em 1853 por seu filho,
Charles Hugo; e a nova edição de “Les Contemplations”,
agora ilustrada, com os poemas acompanhados de um
álbum de fotografias, conforme o projeto original que
não foi concretizado na primeira edição, em 1856.

Abaixo, as capas de “The Photobook: A History”,
publicados por Gerry Badger e Martin Parr em
três volumes, que fizeram uma retrospectiva
histórica e firmaram o conceito de “fotolivro”









Os livros com fotografias tiveram uma extensa trajetória de evolução técnica e aperfeiçoamentos desde os experimentos iniciais de Fox Talbot e Anna Atkins. Em 2005, tal trajetória, que remonta aos primórdios da fotografia, teve uma importante retrospectiva apresentada pelo trabalho de uma dupla de fotógrafos e pesquisadores, Gerry Badger e Martin Parr, autores de “The Photobook: A History” (Phaidon Press), em três volumes ilustrados, lançados respectivamente em 2005, 2006 e 2014. Além de popularizar o termo fotolivro (photobook), para o que antes era chamado de “livro de fotografia”, “livro de fotógrafo” ou “livro de artista”, o inventário de Badger e Parr define o conceito como “um tipo específico de livro de fotografia, no qual imagens prevalecem sobre o texto, e o trabalho conjunto do fotógrafo, do editor e do designer gráfico ajudam a construir uma narrativa visual”.


Origens do fotolivro



Gerry Badger e Martin Parr
não citam o projeto original de Victor Hugo que não se concretizou, mas destacam o papel pioneiro de Anna Atkins e William Fox Talbot, enumerando e descrevendo a trajetória de centenas de fotolivros que marcaram época e tiveram uma importância fundamental desde o surgimento dos processos fotográficos, nas primeiras décadas do século 19. Do inventário de Badger e Parr constam obras marcantes da história da fotografia e das artes gráficas, seja com fotografias coladas nas páginas e encadernadas como livro, seja com fotografias incorporadas ao processo de impressão do livro. Nos três volumes amplamente ilustrados de “The Photobook: A History” estão listadas, descritas e contextualizadas obras surpreendentes, tanto as que alcançaram notoriedade como aquelas que somente são conhecidas por especialistas.






O fotolivro de Victor Hugo: acima,
Vista da Janela em Le Gras” (em francês,
Point de vue du Gras), incluída na nova edição de
Les Contemplations” e considerada a fotografia
permanente mais antiga do mundo,
criada pelo
inventor francês Joseph Nicéphore Niépce, entre
1826 e 1827, no processo que Niépce batizou de
heliografia” e que abriu caminho para o
desenvolvimento da fotografia moderna.

Abaixo, as capas originais de dois fotolivros que
redefiniram o formato e são considerados referências:
American Photographs” (1938), de Walker Evans,
publicado com ensaio escrito por Lincoln Kirsten;
e “The Americans” (1958), de Robert Frank,
publicado com ensaio escrito por Jack Kerouac







No acervo reunido por Badger e Parr estão, em destaque, fotolivros que exerceram grande influência na fotografia, na literatura e nas artes em geral. "Talvez seja importante esclarecer que a criação do fotolivro é uma arte literária e narrativa que está situada entre o filme e o romance" – ressalta Gerry Badger. Alguns dos fotolivros em relevo na lista são Street Life in London” (1878), parceria do jornalista Adolphe Smith com o fotógrafo John Thomson; “Animal Locomotion” (1887), de Eadweard Muybridge; The Royal Mummies” (1912), de Grafton Elliot Smith; “Men at Work” (1932), de Lewis Hine;Paris de Nuit” (1933), com fotografias de Brassaï, pseudônimo de Gyula Halász, e texto de Paul Morand; “Facies Dolorosa” (1934), de Hans Killian; American Photographs” (1938), com fotografias de Walker Evans e ensaio de Lincoln Kirsten, e “Let Us Now Praise Famous Men” (1941), parceria entre Walker Evans e o escritor James Agee. Um terceiro fotolivro de Walker Evans na lista é “Many Are Called”, publicado em 1966, também com texto de James Agee, reunindo fotografias feitas nas décadas de 1930 e 1940 no Metrô de Nova York, com uma câmera escondida, sem que os passageiros soubessem que estavam sendo fotografados.

Também são destacados na lista de Gerry Badger e Martin Parr os fotolivros Soviet Photography” (1939), de Aleksandr Rodchenko e outros fotógrafos e artistas; Caribean Crossroads” (1941), com texto de Lewis Richardson e fotografias de Charles Rotkin; “The Sweet Flypaper of Life” (1955), poemas de Langston Hughes com fotografias de Roy DeCarava; “The Family of Man” (1955), com curadoria de Edward Steichen; “New York” (1956), de William Klein; “Hiroshima” (1958), de Ken Domon; e The Americans” (1958), com fotografias de Robert Frank e texto de apresentação de Jack Kerouac. A partir da década de 1960, avanços das artes gráficas e técnicas de impressão vão popularizar as edições, com Gerry Badger destacando que carreiras importantes foram impulsionadas por fotolivros de sucesso – caso, entre muitos outros, dos norte-americanos Alec Soth e Ryan McGinley, ou da espanhola Cristina de Middel.






O fotolivro de Victor Hugo: poesia em
diálogo com os primeiros fotógrafos. Acima,
Paisagem com nuvens”, fotografia de 1856 de
Roger Fenton. Abaixo, “A Lavadeira”, fotografia
de 1840 de Louis Adolphe Humbert de Molard;
e Tempo dos ventos”, fotografia de
1902 de Heinrich Kühn














Gerry Badger, na apresentação a “The Photobook: A History”, também inclui diversas referências à América latina. Do Brasil, são citados Mario Cravo Neto, Miguel Rio Branco e Sebastião Salgado, entre outros, com especial atenção a “Amazônia” (1978), de Claudia Andujar e George Love, que ele define como “mescla singular de política e pessoalidade”. Outros destaques são “Paranoia” (1963), com a poesia de Roberto Piva e as paisagens urbanas nas fotografias de Wesley Duke Lee; e “Bares Cariocas” (1980), de Luiz Alphonsus, com registros de um olhar afetuoso sobre os bares de bairros do Rio de Janeiro. Badger elogia a forma pela qual os fotolivros são capazes de transportar pelo olhar para uma viagem. “Nunca estive na Amazônia, nem no Rio nem na Bahia”, confessa. “Mas esses fotógrafos do Brasil me levam até esses locais (…) de um modo particular – complexo, intrigante e criativo”.


Álbum de Contemplações


O projeto de Victor Hugo de reunir no mesmo livro uma seleção de poemas em diálogo com uma coleção de fotografias finalmente está concretizado – por iniciativa de duas pesquisadoras, Florence Naugrette e Hélène Orain Pascali. Em uma nova edição de “As Contemplações”, elas acrescentam 120 imagens fotográficas, todas produzidas nos primórdios da fotografia por contemporâneos do escritor. O ponto de partida foi um exemplar da primeira edição do livro, no arquivo privado que pertenceu ao autor, que mantinha entre suas páginas uma seleção de 34 fotografias, com anotações e correspondências entre poemas e cada uma das imagens, estabelecidas, ao que se sabe, pelo próprio Victor Hugo, talvez como uma lembrança nostálgica sobre o projeto que não pôde ser concretizado na época, mas enriquecendo, na presença das imagens, o espectro das interpretações literárias.





O fotolivro de Victor Hugo: acima,
Fotografia de imagem da retina de um vaga-lume”
imagem de 1890 de Sigmund Exner. Abaixo,
Genebra, céu nublado acima do lago
e da cidade”
, fotografia de 1890 de
Gabriel Loppé
; e um eclipse solar visto
no dia 10 de janeiro de 1889 no alto do
Monte Santa Lucia, ao norte da Califórnia,
em fotografia de
Carleton Watkins







Dois ensaios das organizadoras contextualizam a nova edição do livro de Victor Hugo. Em “Contemplações”, Hélène Pascali, historiadora da arte, vai pontuar como o nascimento da fotografia provoca o surgimento de um novo olhar sobre o mundo e sobre as imagens do real. Em Como um Álbum”, Florence Naugrette, professora de Literatura na Sourbonne, confirma que o projeto original de Victor Hugo teria um impacto de grandes proporções em sua época porque seria o primeiro álbum de fotografias, uma experiência sem precedentes em uma época em que a fotografia era uma grande novidade. Especialista na literatura de Victor Hugo, ela também revela que sempre considerou os poemas deste livro como imagens estáticas apresentadas e descritas em preto e branco.

No diálogo que se estabelece entre os poemas e as fotografias, as questões de tempo e memória remetem ao trajeto biográfico do autor e também à história social: paisagens, cenas e personagens citados nos versos evocam, de maneira quase inevitável, imagens fotográficas em suas referências a tons da neve, das nuvens, do céu noturno, dos pássaros voando ao longe, do mármore e de detalhes da construção das casas, da areia da praia, das árvores imóveis ou agitadas pelos ventos e dos dias nublados de inverno. A própria estrutura do livro lembra um álbum de fotografias, traçado no itinerário de cada poema, que vêm legendados com data e lugar, como se fossem um diário de viagem. Folheando o álbum, cada poema e cada imagem torna-se um convite para seguir os passos do autor entre caminhadas, pensamentos, sentimentos, lembranças, busca metafísica e alguma esperança – como se lê em um poema sem título de 1855:


Je ne vois que l’abîme, et la mer, et les cieux,
Et les nuages noirs qui vont silencieux;
Mon toit, la nuit, frissonne, et l’ouragan le mêle
Aux souffles effrénés de l’onde et de la grêle.

(“Écrit en 1855”, Jersey, janvier 1855.)

Vejo somente o abismo, e o mar, e os céus,
E nuvens negras que
passam em silêncio;
M
eu telhado, à noite, estremece, e o furacão o mistura
Com os sopros frenéticos das ondas e do granizo.

(“Escrito em 1855”, Jersey, janeiro de 1855).






O fotolivro de Victor Hugo: acima,
Sol e nevoeiro”, fotografia de 1898 de
Léonard Misonne. Abaixo, Roman Campagna”,
um estudo de nuvens na área rural de Roma, Itália,
em fotografia de 1855 de Carlo Baldassarre.

Também abaixo, Victor Hugo em 1853, durante
seu exílio na Ilha de Jersey, contemplando
o oceano, no alto da rocha conhecida como
“Le Rocher des Proscrits” (A Rocha dos Proscritos),
em Jersey, fotografado por seu filho Charles Hugo
e seu amigo Auguste Vacquerie











Evolução da técnica


Victor Hugo foi eleito para a Academia Francesa aos 37 anos, em 1839, ano do anúncio oficial da invenção da fotografia com os equipamentos e técnicas de Louis Daguerre, batizados de Daguerreótipos. O escritor, porém, era entusiasta da fotografia desde que tomou conhecimento das experiências de Nicéphore Niépce, que fez os primeiros registros de imagens a partir de 1826. Victor Hugo também se dedicou ao desenho e à pintura, mas sempre se confessou um apaixonado pela fotografia, que ele chamava de "imagens pintadas pelo sol e pela luz". Mesmo depois da edição incompleta de "Les Meditations", ele continuou acompanhando com muito interesse a evolução da técnica e dos processo fotográficos pelos anos e décadas seguintes.

Florence Naugrette e Hélène Pascali seguiram as pistas com registros deste interesse especial de Victor Hugo pela fotografia e, nos mais de três anos de pesquisas para a seleção das imagens que agora acompanham os poemas, investigaram as correspondências temáticas no acervo do escritor e em coleções privadas e públicas, em museus da França e de outros países. No dossiê de imprensa distribuído para o lançamento do livro, Florence Naugrette ressalta que a relação de Victor Hugo com a fotografia se dava intensamente na vida cotidiana, tanto que ele sempre esteve muito próximo de fotógrafos em sua época e cultivou uma forte amizade com Nadar, para muitos o maior fotógrafo do século 19.

“É possível localizar diversas referências ao retrato e à fotografia na obra de Victor Hugo”, ela destaca, “mas na coleção de poemas reunidos nestas ‘Contemplações’ a questão imagética e fotográfica está mais evidente, tanto na busca de palavras e de figuras para redescobrir a experiência como nas confissões sobre a importância de ouvir a natureza, maravilhar-se, buscar o significado, cultivar e traduzir. Palavra e imagem aqui estão em diálogo para expressar um mesmo sentido, o que é surpreendente, principalmente se considerarmos que todos os poemas, e todo o projeto original de Victor Hugo para o livro, foram criados à luz da invenção da fotografia e ainda nos primórdios dos processos fotográficos”.





Na versão final do livro “As Contemplações de Victor Hugo ilustradas pelos primórdios da fotografia” (Les Contemplations de Victor Hugo illustrées par les débuts de la photographie), lançamento da Editions Diane de Selliers, em capa dura e 400 páginas, os 92 poemas são contemplados com 120 fotografias, produzidas em datas que vão de 1826 a 1910 e selecionadas por Florence Naugrette e Hélène Pascali do acervo de 85 fotógrafos, todos apresentados com perfil biográfico. O resultado é um inventário inédito sobre nomes de importância no início da história da fotografia e uma retrospectiva surpreendente que alcança das experiências dos pioneiros ao aperfeiçoamento dos equipamentos e ao domínio da técnica, seja na aplicação de princípios estéticos, com evoluções de enquadramento, de foco, de iluminação e de contraste, seja nas intervenções nos processos de impressão, levando a imagem fotográfica a um campo de autonomia e de independência, em relação às outras artes, para o registro instantâneo de fragmentos da realidade.


por José Antônio Orlando.

Como citar:

ORLANDO, José Antônio. O fotolivro de Victor Hugo. In: Blog Semióticasde novembro de 2025. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2025/11/o-fotolivro-de-victor-hugo.html (acesso em .../.../…).



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O fotolivro de Victor Hugo: acima,
Avenida no inverno”, fotografia de 1893
de
Alfred Stieglitz. Abaixo, “O alto da montanha”,
fotografia de 1860 dos irmãos
Louis-Auguste Bisson
e Auguste-Rosalie Bisson





16 de junho de 2025

Crônica do Bloomsday

 



A história, disse Stephen, é um pesadelo do qual estou tentando acordar.

–– James Joyce, “Ulisses”.  

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O argentino Jorge Luis Borges, uma referência da literatura do século 20, ficaria cego, gradualmente, a partir dos 55 anos, devido a uma condição hereditária, provavelmente glaucoma ou uma doença degenerativa da retina. Apesar da perda da visão, Borges continuou a produzir obras literárias até o fim da vida, quando morreu em Genebra, na Suíça, em 1986, aos 88 anos. Ele sempre soube que perderia a visão, pois o destino da cegueira era hereditário: seu pai, seu avô e seu bisavô também ficaram cegos. Lembro de Borges porque a data de hoje, dia 16 de junho, remete a outra referência incontornável da literatura universal: é a data do Bloomsday, em que os amantes da literatura, e da literatura de James Joyce, em especial, celebram Leopold Bloom, protagonista de “Ulisses”, romance de Joyce que se passa em 16 de junho de 1904.

O fascínio de Borges por Joyce, e mais ainda por “Ulisses”, por certo vem de algumas coincidências existenciais e da força capital que o tempo e a eternidade, em seus componentes de circularidade e repetição, têm na literatura de Borges e também em James Joyce. Borges menciona o autor irlandês muitas vezes em seus escritos e dedicou a ele diversos artigos e ensaios. Quando se consulta as versões on-line do Catálogo Bibliográfico Completo e do Catálogo de Artigos na Imprensa, organizados pela La Maga: Associación Borgesiana de Buenos Aires, é possível encontrar muitos textos de Borges em que Joyce é o tema central ou está citado no argumento das abordagens sobre outros autores.









Crônica do Bloomsday: no alto e acima, James Joyce
fotograf
ado por Giséle Freund para uma reportagem da
revista Time
em 1939, no apartamento em que morou
de 1935 até 1939, na Rue Edmond Valentin, em Paris.
Joyce, que era supersticioso e não gostava de ser
fotografado, concordou, aconselhado por sua editora
Sylvia Beach, depois de saber que o sobrenome de
casada de Giséle Freund era Blum, em conexão óbvia
com Leopold Bloom, personagem de “Ulisses”.

Abaixo, vista da O’Connel Bridge, sobre o rio Liffey,
em Dublin, capital da República da Irlanda, terra natal
de James Joyce, em fotografia de 1905






Páginas de 'Ulisses'


Os artigos de Borges trazem referências muito poéticas sobre suas leituras da obra de Joyce – com destaque para os que foram publicados na revista semanal El Hogar, na qual Borges foi colunista entre 1936 e 1939. Na seção “Libros y autores extranjeros: Guía de lecturas”, Borges publicava artigos, resenhas e traduções fragmentadas de autores de outros idiomas além do espanhol. Joyce já havia sido abordado por ele em textos publicados em outros periódicos, os primeiros deles em Proa, revista literária fundada pelo próprio Borges em 1922, ano da publicação do “Ulisses” de Joyce. Os longos artigos em Proa, com os títulos “El ‘Ulises’ de Joyce” e “La última hoja del ‘Ulises’”, foram publicados na mesma edição, em janeiro de 1925, apenas três anos após a primeira edição do romance pela Shakespeare & Company, com sede em Paris.






Crônica do Bloomsday: acima, James Joyce
fotograf
ado por Giséle Freund em 1939. Abaixo, Joyce
nas duas vezes em que foi a reportagem de capa da
revista Time, em janeiro de 1934 e em maio de 1939







Sobre Joyce, na El Hogar, Borges publicou “Joyce e Yeats” (em outubro de 1936); “James Joyce” (em fevereiro de 1937); “Ulysse”, sobre a tradução do romance de Joyce para o francês (em fevereiro de 1938); e “El último libro de Joyce”, sobre o lançamento de “Finnegans Wake” (em junho de 1939), que deixou Borges fascinado pela variedade de fios narrativos "mágicos" e pela fusão de palavras do inglês com outras línguas. Na mesma época, Borges publicaria artigos sobre Joyce na Sur, revista fundada em 1931 por sua amiga muito próxima, a escritora Victoria Ocampo. Na Sur, Joyce foi o tema dos artigos de Borges “Joyce e los neologismos” (em novembro de 1939) e “Fragmento sobre Joyce” (em fevereiro de 1941).


Obra de muitas gerações


Os dois artigos mais poéticos de Borges sobre Joyce estão na El Hogar. No primeiro, em fevereiro de 1937, Borges escreveu: “Mais do que a obra de um só homem, ‘Ulisses’ parece de muitas gerações” – concluindo com uma confissão muito pessoal e definitiva: “A delicada música da prosa de Joyce em ‘Ulisses’ é incomparável.” O segundo artigo, publicado em junho de 1939, aborda “Finnegans Wake”, mas faz citações a “Ulisses”, em tom de profunda melancolia, quase que anunciando o horror da Segunda Guerra Mundial, que já se desenhava no horizonte, com as tropas da Alemanha Nazista ocupando a Polônia em 1º de setembro de 1939 e invadindo mais 11 países nos meses seguintes, transformando o conflito local em uma guerra mundial.






Crônica do Bloomsday: acima, James Joyce
fotograf
ado por Giséle Freund. Abaixo, o casal
Joyce e Nora Barnacle na época em que
se conheceram em Dublin, em 1904;
e James Joyce em fotografia de 1921







Às vésperas da Segunda Guerra, Joyce foi viver na França. “Ulisses” trouxe fama internacional, mas não impediu que ele vivesse angustiado e com destino de navegador errante por diversos países e endereços. É quase inevitável associar a trajetória do escritor à jornada que remonta a referências da Antiguidade Clássica do personagem de Homero, do qual ele se apropriou em "Ulisses". Em uma carta a sua amada Nora Barnacle, ele definiu a si mesmo como “um homem solitário, insatisfeito, orgulhoso”. Diziam os amigos que, em público, Joyce era silencioso, lacônico, distante, com hábitos simples e rígidos na vida cotidiana que o levavam a comer sempre o mesmo prato, no mesmo restaurante, no mesmo horário, todos os dias.


Pavor de raios e trovões


Joyce também tinha problemas nos olhos e fez várias cirurgias que não foram suficientes para evitar o avanço do glaucoma. Seu drama com o avanço da cegueira é um dos temas de “Pomes Pennyeach” (Poemas, um tostão cada), publicado em 1927. Também era supersticioso, além de ter pavor incontrolável diante de raios e trovões, e teologia era um dos assuntos que, invariavelmente, despertavam seu interesse. Talvez por tudo isso certas críticas negativas provocassem nele imensa tristeza – críticas negativas tais como a de Virgina Woolf, que classificou “Ulisses” como “uma catástrofe memorável; imenso em atrevimento, terrível como um desastre” e recusou publicá-lo na The Hogarth Press. No artigo de junho de 1939 na El Hogar, Borges escreveu: “James Joyce, agora, vive num apartamento em Paris, com a sua mulher e os seus dois filhos. Vai sempre com os três à ópera, é muito alegre e muito conversador. Está cego.”





         


Crônica do Bloomsday: um fotógrafo anônimo
encontrou
James Joyce e Nora Barnacle a caminho
do casamento oficial no cartório, em Dublin, em 1931,
acompanhados de
Fred Monro, advogado de Joyce,
que recomendou sobre a importância do
registro oficial de casamento.

Abaixo, um encontro de James Joyce com três amigos
e conselheiros: o poeta e crítico literário
Ezra Pound,
o escritor e jornalista
Ford Maddox Ford e o advogado
John Quinn – no escritório que Pound mantinha em Paris,
em 1924; e uma página datilografada de
"Ulisses" com
as inúmeras correções feitas a caneta por James Joyce






 
      


James Joyce nasceu em Dublin em 2 de fevereiro de 1882, o mais velho de 10 crianças em uma família que passou rapidamente da riqueza à pobreza. Apesar das dificuldades, teve educação privilegiada como bolsista em uma escola jesuíta e no University College de Dublin. Sua estreia como autor foi aos 17 anos, quando publicou na Fortnightly Review o ensaio “The New Drama”, estudo sobre a obra do dramaturgo norueguês Henrik Ibsen. Três anos depois, aos 20 anos, foi para Paris, com a intenção de estudar medicina, mas acabou trocando as ciências médicas pela dedicação à literatura e à leitura de seus autores preferidos naquela época, Dante, Shakespeare, Homero e Aristóteles.


As confissões eróticas


Em 1903, ele regressaria a Dublin, por causa da doença da mãe, que faleceu logo depois. No verão de 1904, ainda em Dublin, Joyce conheceu seu grande amor, Nora Barnacle, que se tornou sua companhia inseparável. Joyce tinha 22 anos; Nora, 20. A data da primeira vez que fizeram sexo é o dia 16 de junho de 1904, escolhida para a trama de “Ulisses”, sendo Nora sua inspiração para a personagem Molly Bloom. Pouco tempo depois, Joyce e Nora fogem de Dublin e saem em uma longa viagem pelo continente. Passaram alguns meses em Pula, na atual Croácia, e no ano seguinte foram morar em Trieste, na Itália, onde viveram até 1915, com Joyce no trabalho ocasional como professor de inglês. Tiveram dois filhos, registrados com nomes italianos, Giorgio e Lucia, e estiveram separados apenas por breves períodos em que Joyce viajou a Dublin. As cartas de Joyce para Nora, cheias de confissões eróticas, foram escritas nestas ocasiões.



            


Crônica do Bloomsday: acima, o casal Joyce e Nora
em fotografia da década de 1920. Abaixo, Joyce em
Zurique, em 1915, e uma cena do filme “
Nora”, lançado
no ano 2000, com direção e roteiro de
Pat Murphy, que
tem 
Ewan McGregor no papel de James Joyce
e
Susan Lynch como Nora Barnacle



         



O primeiro livro de poemas de Joyce, “Música de Câmara”, foi publicado em Londres em 1907. “Dublinenses”, seleção de 15 contos com ambientação em Dublin, teve primeira edição em 1914, no início da Primeira Guerra, época em que começou a escrever os rascunhos para “Ulisses”. A participação da Itália na guerra levou o casal a fugir novamente, em 1915, de Trieste para várias cidades da Suíça, até fixarem residência em Zurique, onde permanecem até 1919. Em Zurique, Joyce publica dois livros: “Retrato do artista quando jovem”, em 1916, e “Exílados”, em 1918.

"Retrato do artista quando jovem" pode ser definido como um romance 
de formação (Bildungsroman), pontuado de referências autobiográficas, sobre o amadurecimento existencial do personagem que iria retornar em "Ulisses", Stephen Dedalus, alter ego do autor, em sua trajetória da infância à idade adulta. O segundo livro trazia uma peça de teatro, a única que escreveu – uma reflexão sobre a formação de um triângulo amoroso entre um artista de vanguarda, Richard Rowan, um jornalista, Robert Hand, e a mulher de Richard, Bertha, que vai relatando ao marido cada passo das investidas do rival. "Exilados" (também traduzida para o português como "Exílios") remete, entre simetrias e alusões, a “Os mortos”, último conto de “Dublinenses”, e também a “Ulisses”.






Crônica do Bloomsday: acima, Joyce em 1914,
na época em que morava em Trieste, na Itália,
fotografado por seu irmão Stanislaus, tendo ao fundo
Nora e os dois filhos do casal, Lucia e Giorgio.

Abaixo, Joyce em Paris, em fotografia de 1939
de Gisèle Freund, discutindo o lançamento do que
viria a ser seu último livro, “Finnegans Wake”,
com as editoras da Shakespeare and Company,
Sylvia Beach e Adrienne Monnier; e Joyce
na entrada da editora em Paris, em 1922,
com Sylvia Beach, fotografados por Noel Riley.

Também abaixo, Joyce homenageado em 1935
por Jacques-Emile Blanche em um retrato pintado
em óleo sobre tela. No final da página, a e
státua
instalada sobre o túmulo de James Joyce no
Cemitério Fluntern, em Zurique, na Suíça.


                

  






Fluxos de consciência


Ulisses”, a obra magna de Joyce, foi editada e lançada por sua amiga Sylvia Beach na Shakespeare & Company em 2 de fevereiro de 1922, dia do aniversário de 40 anos do autor. Repleto de referências à obra de Homero e de alusões a Shakespeare, à Bíblia e a outros clássicos, o romance recria um dia na cidade de Dublin, aquele dia 16 de junho de 1904, narrando a vida cotidiana de Leopold Bloom, um vendedor de anúncios publicitários. Ao longo de 24 horas, que a narração divide em 18 episódios, Bloom é comparado ao herói grego Ulisses, experimentando encontros, desencontros e reflexões em fluxos de consciência que elevam o trivial do cotidiano a um nível épico. O enredo, que segue a estrutura da "Odisseia" de Homero, apresenta como personagens centrais Leopold Bloom, seu amigo Stephen Dedalus, jovem intelectual, e Molly Bloom, esposa de Leopold, que está envolvida em um caso extraconjugal. 

Um dos motores da narrativa é a interação entre Leopold e Stephen, que o influencia em relação à arte e ao pensamento, sintetizando o encontro de duas gerações e duas formas distintas de entender o mundo. A relação entre Leopold e Stephen, complexa e multifacetada, surge como uma jornada de descoberta mútua e uma busca de sentido espiritual. Leopold Bloom é um homem de meia-idade, enquanto Stephen é um jovem escritor e artista, ambos vivendo em Dublin. A narrativa os une através de uma série de encontros fortuitos, com Bloom vendo em Stephen um filho substituto e Stephen encontrando em Bloom um pai ausente, em aproximações com a relação entre Odisseu e Telêmaco na mitologia grega. Em contraponto, Molly Bloom traz um paralelo irônico com a Penélope da “Odisseia”, a esposa fiel do Ulisses de Homero.





A edição de “Ulisses” em inglês, considerada pelas autoridades oficiais uma obra pornográfica, foi proibida na Inglaterra, nos Estados Unidos e nos países anglo-saxônicos, o que contribuiu para Joyce se tornar o assunto principal dos círculos intelectuais e terminar reconhecido como o autor mais célebre de sua época. O livro se tornaria uma referência para toda a literatura modernista, mas só teve autorização para publicação nos Estados Unidos em 1933. Na Inglaterra, só foi publicado em 1936. Na Irlanda, terra natal do autor, nunca foi oficialmente proibido, mas a censura alfandegária impediu sua ampla circulação até a década de 1960. O leitor brasileiro também teve que esperar durante décadas pela primeira edição do livro de James Joyce, o que só aconteceu em 1966, com a tradução feita por Antônio Houaiss para publicação pela Civilização Brasileira.






“Ulisses” teve mais duas edições no Brasil. Em 2005, Bernardina da Silveira Pereira fez a segunda tradução, publicada pela Editora Objetiva. A terceira tradução foi feita por Caetano Galindo e publicada em 2012 pela Companhia das Letras em parceria com a Penguin Classics, que teve revisão e nova edição em 2022. Há, também, uma nova edição com 18 tradutores, um para cada capítulo, anunciada pela Ateliê Editorial. Além das traduções integrais, fragmentos de “Ulisses” foram traduzidos por outros autores, entre eles Pagu, Erasmo Pilotto, Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari.

O livro lendário de Joyce também mereceu análises dos principais nomes da intelectualidade no Brasil desde o primeiro momento. O primeiro foi Mário de Andrade, que escreveu sobre sua leitura de “Ulisses” no artigo “Da fadiga intelectual”, publicado na Revista do Brasil, em junho de 1924. Meses depois, em dezembro, Gilberto Freyre publicou no Diário de Pernambuco um artigo com o título “Ulisses”, no qual descreve o romance de James Joyce como uma surpresa, uma “reportagem taquigráfica de flagrantes mentais”.

Joyce e
stava aclamado como escritor quando morreu em Zurique, em 1941, prestes a completar 59 anos. Nora, desde então, passou a viver reclusa, na solidão, e também morreu em Zurique, 10 anos depois, em 1951. Para concluir, vale lembrar que depois de tantos textos e de tantas análises, de Borges e de tantos leitores, anônimos ou célebres, o melhor mapa de leitura de "Ulisses" talvez ainda seja o esquema elaborado pelo próprio Joyce para ajudar um amigo, o escritor e tradutor italiano Carlo Linati, no entendimento e na interpretação de sua obra monumental. E há uma questão com a qual a maioria dos leitores e dos críticos concordam: a literatura nunca mais seria a mesma depois daquele dia 16 de junho de 1904.


por José Antônio Orlando

Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Crônica do Bloomsday. In: Blog Semióticas, 16 de junho de 2025. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2025/06/cronica-do-bloomsday.html (acesso em .../.../…).

 

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