Alguns
dos principais teóricos da imagem têm em comum a máxima de que
toda grande fotografia representa um momento libertado do tempo ––
uma definição que tem menos de surrealismo e muito mais de
realismo, como se poderia supor à primeira vista. Se pudéssemos ver
em detalhes o que aconteceu antes e depois daquela cena registrada, a
realidade da imagem já seria outra, por certo, dissolvida por sua
vez em outros acontecimentos passageiros e perdidos para sempre em
ondas sucessivas ou simultâneas de movimentos, de imagens, de
ruídos. Em vez disso, o fotógrafo conseguiu preservar aquele único
instante, aquele enquadramento que nunca mais vai se repetir no tempo
e no espaço –– o que pode elevar a imagem fotografada do mais
simples ao mais precioso e sublime, ou mesmo conferir a ela um poder
quase de devoção religiosa diante do que nunca mais irá se repetir
existencialmente.
Não
é só que o tempo congelou, mas toda aquela complexidade que, ao
interromper seu fluxo, a câmera revela e preserva: um brilho
estático, quase sobrenatural, um momento parado na quietude, um
silêncio, uma reverência na qual derramamos nossas crenças e
nossas interpretações motivadas por questões pessoais,
sentimentais ou estéticas, documentais, ideológicas. Quando estamos
frente a frente com o trabalho realizado por um grande fotógrafo,
esta percepção de um momento libertado do tempo é quase sempre
permanente, muitas vezes inevitável, como demonstram as imagens
reunidas em duas exposições itinerantes que estão na agenda de
Belo Horizonte e outras capitais brasileiras, ambas apresentando
imagens do século passado na antiga União Soviética, ou URSS
(União das Repúblicas Socialistas Soviéticas –– CCCP, na sigla em russo), que teve sua
vigência de 1922, no período posterior à Revolução Russa de
1917, até a dissolução oficial em 1991, quando 12 das repúblicas até então associadas tornaram-se independentes da Rússia.
.
As
fotografias mostram cenas mais poéticas que prosaicas e por vezes
enigmáticas nas exposições “A União Soviética através da
câmera”, que selecionou um total de 120 imagens em preto e branco
de seis veteranos da fotografia, cinco da Rússia e um da Lituânia,
e “O último império”, com 65 instantâneos mais contemporâneos
e em cores de Serguei Maksimishin, registrados a partir da década de
1990. Os seis fotógrafos da primeira exposição, que retratam o
período conhecido como “degelo soviético”, de 1956 a 1991, sob
curadoria de Luiz Gustavo Carvalho e Maria Vragova, têm em comum uma
visão humanista e otimista sobre a vida cotidiana: são eles Vladimir
Lagrange, Leonid Lazarev, Vladimir Bogdanov, Yuri Krivonossov, Victor
Akhlomov e Antanas Sutkus. Em contraste com os seis mestres veteranos da
primeira exposição, Maksimishin tem registros mais
jornalísticos, mas a composição elaborada de cores
e enquadramentos imprevistos retiram suas imagens do lugar comum mais usual que,
com frequência, encontramos em publicações de jornais e
revistas.
Imagens
do “país fantasma”
A curadoria
da exposição “A União Soviética através da câmera”, no
informe distribuído à imprensa, usa uma expressão incomum
para se referir ao antigo Estado Soviético: “país
fantasma”. Incomum mas não inadequado, já que a dissolução da
União Soviética em 1991 criou, de fato, uma
fantasmagoria: o estado com a maior abrangência
territorial e geopolítica do século 20, não mais
existente, ficou no passado e deixou margens para que as
fronteiros entre o real e o abstrato permaneçam apenas como
registros da memória que as fotografias, e a História,
presentificam. “Através do olhar de fotógrafos diferentes, a
exposição propõe uma reflexão sobre a vida cotidiana deste ‘pais
fantasma’, do Degelo de Khrushchov à Perestroika de Gorbatchov,
assim como sobre o papel singular exercido pela fotografia na
sociedade soviética pós-stalinista”, destacam os curadores.
Diante
da diversidade de autores e de obras que as duas exposições
reúnem, é importante destacar a herança construtivista que todos
eles possuem, com ressonância em nomes que marcaram época e
permanecem como referência incontornável como Serguei
Eisenstein (1898-1948), Dziga Vertov (1896-1954), Alexandr
Rodchenko (1891-1956) e outros grandes mestres das
artes em geral e do cinema e da fotografia em
particular –– expoentes das vanguardas no período posterior à
Revolução de 1917 e que exerceram influência
central, muito além de suas fronteiras geográficas ou
políticas, nos principais movimentos que estão na origem do que chamamos de Arte Moderna e nas expressões vigentes da abrangência de áreas como a arquitetura e o design industrial no último século.
Ao
contrário do culto às autoridades e aos desfiles cívicos para
reverência à pátria dos tempos de Josef Stalin, no período de
1937-1953, o que os retratos selecionados da antiga União
Soviética colocam em cena é a vida social no cotidiano de pessoas comuns por
trás do que, durante décadas, o mundo do Ocidente conhecia como
“Cortina de Ferro”: trabalhadores, homens e mulheres em
cenários indistintos, crianças em salas de aula, pais brincando com
os filhos, adolescentes em momentos de lazer, o movimento urbano de
ruas e praças. O intervalo de tempo que a exposição
acompanha, de 1956 a 1991, tem quase a mesma extensão da chamada
“Guerra Fria”, deflagrada no pós-guerra, no final da década de
1940, quando Estados Unidos estabelecem a “Doutrina Truman”
como tentativa de travar a expansão soviética e intensificam o
conflito mundial pela influência ideológica –– mas o tema da
“Guerra Fria” parece ter sido sistematicamente excluído das
imagens selecionadas.
Ausências
e esquecimentos
Como
muitas vezes acontece, contudo, nem sempre o retrato é fiel e
completo em relação ao que é retratado. Também estão
ausentes da exposição "A União Soviética através da
câmera”, entre outras questões e acontecimentos que fizeram
a História, imagens ou referências às multidões em
mobilizações políticas ou mesmo às grandiosas campanhas
militares da expansão da URSS, que formou o país de dimensões
continentais, assim como foram sintomaticamente esquecidas nos
acervos pesquisados pela curadoria todas as cenas de comoções
populares diante das surpreendentes investidas da União
Soviética durante a corrida pela conquista do Espaço
Sideral.
Há
somente uma única menção direta às imagens heroicas e
lendárias do período em que os soviéticos tomaram a dianteira
frente aos norte-americanos e enviaram para além da atmosfera
terrestre as primeiras espaçonaves que no imaginário popular
pareciam saídas da imaginação mirabolante de artistas da ficção
científica. São ignoradas imagens lendárias do primeiro satélite
artificial, o Sputnik 1 (de 1957), do primeiro animal a orbitar o
Planeta Terra, a cadela Laika (em 1957), e da primeira
nave que fez um pouso na Lua, a sonda Luna E-6M (em 1966). A
única referência à corrida espacial está em uma imagem
do primeiro homem a viajar pelo espaço – o
astronauta Yuri Gagarin, fotografado por Leonid Lazarev em
1961, na Praça Vermelha, em Moscou, com o secretário geral do
Partido Comunista, Nikita Khrushchov. As cenas que marcaram época com as reações das multidões,
perplexas ou incrédulas, que segundo relatos célebres de muitos
historiadores assistiram aos acontecimentos, em projeções em
teatros, em televisores instalados em pontos comerciais e em desfiles
organizados com toda pompa e circunstância, foram solenemente
ignoradas pela curadoria.
Vladimir
Lagrange, talvez o mais conhecido dos seis fotógrafos reunidos na
exposição, por conta da comercialização desde 1963 de seu
trabalho como fotojornalista por publicações alemãs como a
revista “Freie Welt”, tem um pequeno mas revelador
depoimento sobre a vida cotidiana na “Cortina de Ferro” da
URSS exibido ao lado de uma de suas fotografias. “Havia uma
vida pessoal: pais, casa, trabalho, amor, filhos, amigos”, relata
Lagrange. “E a vida do país: slogans, reuniões, obrigações,
condecorações, planos do partido e do povo. Não ficávamos
surpresos, pois éramos habituados a viver assim. Não conhecíamos
outra vida. Pensavam por nós, nos privavam de qualquer
autonomia, tudo era familiar, cada um fazia o seu trabalho. E sempre
recordo de algumas palavras que faziam parte de nossa vida cotidiana:
Stalin, queda de preços (o que todos esperávamos), querosene,
abrigo antiaéreo, jornal Pravda, lenha, filas e assim
por diante”.
Pessoas comuns e mudanças de hábitos
Os
seis fotógrafos reunidos na mostra “A União Soviética através
da câmera” pertencem à mesma geração, nascidos após a
Revolução de 1917, nas décadas de 1920 e 1930, e
todos conquistaram prêmios importantes dentro e fora das
fronteiras da Rússia. O mais velho, Yuri Krivonossov, que
nasceu em Moscou, em 1926, ganhou notoriedade exatamente em 1953, ano próximo do período inicial da mostra, quando publicou na
revista soviética “Ogonek” uma fotografia histórica
que retrata o funeral de Stalin. Leonid Lazarev e Vladimir
Bogdanov nasceram em 1937, Victor Akhlomov e Vladimir Lagrange em 1939. O único dos
seis fotógrafos que não nasceu na Rússia foi também o
mais censurado: Antanas Sutkus nasceu em 1939 na Lituânia
e, assim como todos os outros, permanece na ativa, à exceção de
Akhlomov, morto em 2017.
Considerado
o fotógrafo mais importante de seu país, Sutkus mantém, desde
1976, entre outros projetos, uma série contínua e monumental de
referência em estudos de antropologia, ainda sem similares em outros
países. Intitulada “Pessoas da Lituânia”, o projeto de Sutkus
registra cidadãos comuns em uma proposta de estudo comparado para
documentar as pessoas e as mudanças de hábitos cotidianos. Ao que
se sabe, Antanas Sutkus teve durante décadas seu
trabalho sistematicamente arquivado e não autorizado para
publicação na URSS, exatamente porque registrava sempre
pessoas comuns em cenas prosaicas, ao invés dos
trabalhadores e dos cidadãos tidos como modelos idealizados pelo regime
soviético. Nos últimos anos as fotografias de Sutkus ganharam
retrospectivas no Victoria & Albert Museum da Inglaterra e em outros grandes museus da França, Dinamarca e Estados Unidos.
O
diferencial
da cor e o “choque cultural”
Assim
como os seis veteranos reunidos na primeira mostra, Serguei
Maksimishin retrata cenas da vida cotidiana na exposição “O
último império”, também sob curadoria de Luiz Gustavo
Carvalho e Maria Vragova. Nascido na Rússia, em 1964, e considerado
um dos principais fotógrafos das novas gerações de seu país,
Maksimishin estreou na fotografia com publicações em jornais e
revistas da Rússia e de outros países no começo da década de
1990, assim que concluiu seus estudos na Universidade de
São Petersburgo, simultaneamente aos novos tempos
da Perestroika instituída por Mikhail Gorbatchov. Com
o diferencial da cor, as 65 fotografias selecionadas também revelam cenas com pessoas comuns em situações aparentemente corriqueiras –– mas destacam a performance de virtuose do fotógrafo em
composições, luminosidades e enquadramentos que impressionam à
primeira vista.
As
diferenças culturais do país continental em relação aos hábitos
mais comuns dos países do Ocidente também sobressaem no
trabalho de Maksimishin. O fotógrafo esteve no Brasil para a
abertura de sua primeira exposição na América
Latina, em maio, na Caixa Cultural de São Paulo, e surpreendeu
quando declarou, em várias entrevistas, que em sua
formação como fotógrafo e no “choque cultural” representado pelas imagens selecionadas de seu país, ele reconhece apenas um
professor principal de fotografia: o escritor Nikolai Gogol
(1809-1854), autor de grandes clássicos da literatura
universal, publicados pela primeira vez exatamente na mesma época em que, por coincidência histórica, também surgiam os primeiros
experimentos de registros fotográficos. Entre estes grandes clássicos que Gogol escreveu e publicou estão romances, contos e peças de teatro, tais como “Almas
Mortas” (1842), “O Inspetor Geral” (1836), “Taras Bulba” (1934), “O Diário de um
Louco” (1835), “O Capote” (1942), “O Retrato” (1842) e outras obras-primas.
Se
considerarmos que a literatura de Gogol inaugurou o realismo no
Império da Rússia do século 19, influenciando todos os
escritores que vieram depois dele, inclusive de outras línguas
e de outras nacionalidades, como o brasileiro Machado de Assis, com rasgos
de absurdo, de humor amargo e de uma percepção onírica
da vida em sociedade que seriam retomados como uma das
principais influências do surrealismo, a referência de Maksimishin
parece bastante adequada –– com os detalhes imprevisíveis de temas e de composições que suas fotografias revelam. Em
uma delas, para ser mais preciso na descrição, o que vemos em
primeiro plano é uma pessoa vestida como um personagem do
programa infantil de TV Teletubbies, produzido pela BBC de Londres no final da década de 1990, em frente a uma pequena
igreja isolada em um povoado do interior da Rússia. O
Teletubbie, vestido de vermelho, está em destaque no centro da
fotografia; à direita, saindo do enquadramento, uma longa fila de
mulheres e crianças caminha para a entrada da igreja em ruínas.
por
José Antônio Orlando.
Como citar:
ORLANDO,
José Antônio. Retratos da União Soviética. In: Blog
Semióticas,
9 de agosto de 2018. Disponível no link
http://semioticas1.blogspot.com/2018/08/retratos-da-uniao-sovietica.html
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