O fotógrafo brasileiro aclamado como mestre do preto e branco, em seu metódico e sublime trabalho sobre as incomensuráveis belezas da natureza e as terríveis violências que os homens infligem a ela, anuncia sua aposentadoria do trabalho de campo, mas vai continuar com dedicação intensiva ao processo de edição de seu arquivo fotográfico que contém mais de 500 mil imagens. Sebastião Salgado é, sempre, sinônimo de imagens de impacto: pode ser o formigueiro humano em Serra Pelada, na floresta amazônica do Brasil, ou os campos de petróleo no Kuwait que parecem saídos da ficção científica, os trabalhadores sem terra do Brasil em assembleias nos acampamentos do MST, as culturas mais tradicionais nos grotões da América Latina, as manadas de elefantes selvagens lutando contra a extinção nas savanas da África, milhares de pinguins amontoados nas paisagens de gelo da Antártida ou famílias nômades que sobrevivem isoladas em confins remotos da Ásia. Em todos os cenários, os enquadramentos poéticos e melancólicos de Sebastião Salgado impressionam.
Seu projeto mais monumental foi “Gênesis”, uma expedição que viajou durante anos pelos últimos recantos da natureza mais remotos e ainda preservados no planeta. O projeto gerou em 2013 um fotolivro que bateu recordes de vendas, mesmo sendo uma edição de luxo em capa dura, e uma exposição de fotografias que levou multidões aos grandes museus e aos principais espaços de cultura no Brasil e em vários países. Mas agora veio “Amazônia”, a nova investida de Sebastião Salgado, que parece tão colossal como foi “Gênesis”. O novo projeto surgiu como resultado de sete anos de expedições fotográficas pelo interior da maior floresta tropical do mundo, com Salgado e sua equipe indo ao encontro dos povos indígenas e do território que abriga aquele ecossistema extraordinário da imensidão verde com exuberante vegetação nativa.
Luz e sombras
Trabalhadas em variações de luz e sombras, as fotografias de “Amazônia”, assim como aconteceu com o projeto “Gênesis”, deram origem a um fotolivro em formato pôster de mais de 500 páginas, publicado pela editora Taschen, e ontem foram apresentadas, pela primeira vez, em uma grande exposição que reabriu para o público, depois de um ano de fechamento pela pandemia de covid-19, as luxuosas galerias do Parc de la Villette da Philharmonie de Paris (veja o link para uma visita virtual no final deste artigo). De acordo com o extenso dossiê sobre o projeto distribuído à imprensa, as imagens de “Amazônia” nasceram de uma intenção política de Sebastião Salgado, que procura celebrar o que ainda resta da imensa floresta tropical para conseguir protegê-la.
Depois da temporada em Paris, onde permanecerá até 31 de outubro, a exposição já tem um roteiro itinerante programado até o final de 2022 para outros espaços nos cinco continentes, começando por Londres, depois Roma, incluindo também São Paulo, Rio de Janeiro e outras cidades. As primeiras reportagens com destaque na imprensa estrangeira apontam que “Amazônia” surge como o trabalho mais pessoal e mais reivindicativo de Sebastião Salgado, atualmente com 77 anos. O fotógrafo chegou a anunciar que convidaria, para a abertura da exposição em Paris, lideranças indígenas do Brasil, para fazer ouvir suas vozes contra a destruição da floresta e suas mensagens de alerta sobre as consequências que isso traz para o planeta. Por causa da pandemia, os convites foram descartados, mas a presença e as mensagens dos povos indígenas ressoam na exposição em fotografias magníficas e também em gravações de vídeo e no áudio de canções de seus rituais.
Na cenografia da exposição “Amazônia” apresentada nas galerias da Philharmonie de Paris, o visitante é convidado a penetrar na penumbra e nas sombras para observar as imagens capturadas e ampliadas pelo fotógrafo. A viagem do visitante pelas galerias, seguindo os enquadramentos registrados por Sebastião Salgado, também é acompanhada por temas musicais criados para a exposição pelo francês Jean-Michel Jarre, um dos pioneiros da música eletrônica, que utilizou, para a criação e as mixagens de suas composições, os arquivos de sons da Amazônia que integram o acervo do Museu Etnográfico de Genebra, na Suíça.
Há, também, duas salas especiais anexadas à exposição que apresentam projeções em alta definição de mais de uma centena de fotos, com acompanhamento de gravações sinfônicas para “O Mito da Criação do Rio Amazonas”, composição de Heitor Villa-Lobos, e de melodias de acordes incidentais criados pelo músico Rodolfo Stroeter. Nas galerias e nas salas especiais, a natureza exuberante da imensidão verde surge em variações de preto e branco, nas grandes panorâmicas e nos detalhes do ecossistema que ocupa quase um terço do continente sul-americano, envolvendo o Brasil e mais oito países. “A Amazônia é a pré-história da Humanidade, o paraíso na Terra”, destaca Sebastião Salgado no breve texto sobre a mostra distribuído à imprensa.
Gaia: Amazônia por Sebastião Salgado: acima, a preparação para um ritual do povo Yawanawá. Abaixo, imagem da aldeia Yawanawá no território do Vale do Javari, a segunda maior reserva indígena do Brasil; o arquipélago fluvial de Mariuá, localizado no rio Negro; e uma panorâmica do rio Ituí, no Vale do Javari |
Agronegócio criminoso
A abertura da exposição em Paris acontece em um momento de urgência de ações políticas em defesa da região amazônica e do meio ambiente no Brasil. O Congresso Nacional está discutindo e votando um projeto de lei polêmico que altera de forma significativa o controle ambiental e dispensa licenciamento de diversos setores, entre eles as atividades agropecuárias ou obras de infraestrutura e de saneamento básico. Há também inúmeras ações irregulares do governo federal sob o comando das milícias de Bolsonaro, que têm cada vez mais posicionamento explícito pelo desmatamento da Amazônia, do Pantanal de Mato Grosso e de outras áreas de conservação, atuando para reduzir a fiscalização, para burlar as normas e para dar todo estímulo a atividades ilegais de exploração dos recursos naturais. Sebastião Salgado declarou que a ofensiva do desmonte das instituições ambientais é provisório e acabará com o fim do governo Bolsonaro, mas até as próximas eleições, em novembro de 1922, a destruição avança em larga escala.
No dia 19 de maio, véspera da abertura da exposição em Paris, enquanto Sebastião Salgado e sua esposa Lélia Wanick, parceira de todos os projetos, participavam de entrevistas coletivas na França, chegava do Brasil mais uma notícia grave sobre o desmonte premeditado das políticas de proteção ambiental e o envolvimento da gestão Bolsonaro em ações criminosas: uma grande operação foi deflagrada pela Polícia Federal, autorizada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), visando o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, servidores como o presidente do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), Eduardo Bim, e empresários do setor madeireiro, todos envolvidos com esquemas fraudulentos de exportação ilegal de madeira e contrabando de produtos florestais.
“As entidades e uma parte do aparato de fiscalização e proteção do meio ambiente no Brasil estão temporariamente paralisadas trabalhando para o lado mau da nação”, denunciou Sebastião Salgado, que também se diz confiante de que, em breve, as entidades e o aparato de proteção ambiental voltarão a ser o que sempre foram, cumprindo suas funções dentro da lei e não atuando em cumplicidade com ações criminosas. “Vejam por exemplo a Funai, Fundação Nacional do Índio, que sempre foi uma instituição de proteção à população indígena e era dirigida por antropólogos e sociólogos da maior seriedade. Hoje a Funai protege o agronegócio destruidor e é comandada por um policial sem nenhuma qualificação para o cargo”, alertou Salgado, acrescentando que o mesmo ocorre com o Ibama, uma entidade que sempre teve um papel fundamental nas questões ambientais e que no cenário catastrófico provocado pelo atual governo “não tem mais nenhuma capacidade de pressão e controle”.
Governo predador
Questionado pelos jornalistas, Sebastião Salgado classificou o atual governo brasileiro como “predador”. “O governo Bolsonaro é mau. As propostas dele são todas ruins, seja contra negros, mulheres, indígenas ou ainda a proposta absurda de armar o povo brasileiro. São todas propostas profundamente violentas. Espero que esse mal seja curado nas próximas eleições”, ressaltou o fotógrafo, alertando que a destruição das florestas brasileiras acontece por causa dos hábitos da sociedade de consumo. Segundo Salgado, grande parte da destruição da Amazônia acontece para produzir carne para o mercado externo e também para o cultivo da soja, que é exportada por grandes empresários do agronegócio para alimentar vacas e porcos “franceses, chineses e russos”. “Nós precisamos do apoio do planeta, da pressão política de todos os países, da pressão econômica sobre o governo Bolsonaro para proteger a Amazônia”, completou, convocando as autoridades internacionais a se posicionarem contra a gestão criminosa do governo Bolsonaro.
acima, imagem das instalações na exposição
Sebastião Salgado, que iniciou em 2013 suas expedições para o projeto “Amazônia”, também reconheceu que a mostra atual pode ser considerada uma continuidade do trabalho que ele desenvolveu e apresentou em “Gênesis”, que também mostrava áreas do planeta ainda não afetadas pela civilização e que já incluía imagens da floresta amazônica e dos povos indígenas. Sob o olhar estético personalíssimo de Salgado, o visitante da nova exposição é conduzido pelas belezas do ecossistema tropical que permanece, em grande parte, em sua forma original. Os primeiros painéis que o visitante encontra, nas galerias da Philharmonie de Paris, trazem mapas em grande escala e imagens de satélites que destacam as áreas de reservas indígenas, as terras da União, as unidades de conservação e as zonas atualmente desmatadas e degradadas, que já representam cerca de 20% do território total que recebe o nome de Amazônia.
No mapeamento das reservas dos povos indígenas, Sebastião Salgado apresenta os dez grupos com os quais conviveu durante sua jornada de sete anos, além de outras viagens pontuais que fez à região, a última em fevereiro deste ano. Durante as temporadas com cada tribo, incluindo yanonamis, marúbos, yawanawás, o fotógrafo aguardou autorização para cada contato e repetiu um mesmo ritual entre as árvores: pendurava um lençol branco e abria um largo tapete de plástico no chão, pronto para ser enrolado quando chegasse a chuva que cai quase diariamente em toda a região amazônica. Os povos indígenas com os quais Salgado conviveu durante as expedições, incluindo suas principais lideranças, estão registrados nas imagens em exposição, em fotografias para as quais se prepararam pintando o corpo e enfeitando-se com o cocar das cerimônias.
Hipótese de Gaia
“Amazônia”, a exposição, tem sido classificada como uma experiência mística pela imprensa estrangeira e pelos visitantes. Observando as imagens, a impressão que se tem é que Sebastião Salgado realmente conseguiu registrar e traduzir a beleza e os mistérios da última grande floresta tropical do planeta Terra. A experiência transcendental que emana de suas fotografias tem implicações filosóficas e até teológicas, mas trata-se de um acervo documental de importância política e estética em uma magnitude que ainda não havia sido realizada sobre a imensidão do ecossistema amazônico. E talvez seja, também, um dos melhores exemplos da ecologia profunda – aquele conceito que surgiu desde a década de 1970, a partir da teoria científica conhecida como “hipótese de Gaia”, proposta pelo ambientalista britânico James Lovelock e nomeada em referência ao ser da mitologia grega, Gaia, uma divindade que personificava a Mãe-Terra em suas potencialidades primordiais.
Lovelock, que desde a década de 1960 trabalhava nos comitês científicos da NASA que analisam os parâmetros e possibilidades de vida fora do nosso planeta, passou a desenvolver e defender a teoria segundo a qual a Terra, sua biosfera e seus componentes físicos (atmosfera, criosfera, hidrosfera, litosfera), fazem parte de um complexo e monumental organismo vivo, integrado, planetário e interagente, que mantém as condições climáticas e biogeoquímicas para garantir de forma cooperativa a sobrevivência de todos os seres, incluindo todo o reino vegetal, todo o reino animal e nossa espécie humana. Segundo Lovelock, essa “entidade viva” que é a Terra, que o senso comum também chama de “natureza”, representa nosso mundo físico como uma metáfora para todos os processos biológicos atuantes no planeta.
A teoria de Lovelock foi descrita por ele em suas célebres conferências, em diversos artigos científicos e no livro “Gaia: Um novo olhar sobre a vida na Terra”, publicado em 1979 e, desde então, considerado um dos marcos principais do movimento ecológico que surgia naquela época. Segundo os estudos de Lovelock e de seus colaboradores, todos especialistas em diversas áreas do conhecimento, também os componentes inorgânicos do nosso planeta Terra, como as águas e a atmosfera, devem ser considerados parte da biosfera porque são fundamentais e definitivamente integrados, atuando em equilíbrio e tornando possíveis os processos evolutivos que nos habituamos a chamar de “vida”. A conclusão, como alerta Sebastião Salgado, com urgência e gravidade, é inevitável: a destruição de um ecossistema da magnitude da Amazônia, em última instância, provocará o rompimento desse equilíbrio cooperativo que garante a sobrevivência de todos os seres que habitam nosso planeta. Inclusive dos seres humanos.
por José Antônio Orlando.
Como citar:
ORLANDO, José Antônio. Gaia: Amazônia por Sebastião Salgado. In: Blog Semióticas, 20 de maio de 2021. Disponível no link https://semioticas1.blogspot.com/2021/05/gaia-amazonia-por-sebastiao-salgado.html (acessado em .../.../…).
Para uma visita virtual à exposição na Philharmonie de Paris, clique aqui.
Para comprar os fotolivros Amazônia e Gênesis, clique aqui.
Para comprar Gaia: Um novo olhar sobre a vida na Terra, clique aqui.
Um amigo que muito respeito enviou um link para esta postagem e me avisou que era o melhor blog que eu poderia visitar. Cá estou para registrar que meu amigo estava completamente certo.
ResponderExcluirEsta postagem espetacular sobre Sebastião Salgado e a Amazônia, com todas as imagens identificadas e dialogando com o texto, é uma das melhores reportagens que já encontrei sobre o fotógrafo. Vai direto para minhas referências bibliográficas da dissertação de tese que vou apresentar no final do semestre na UFMG.
Gostei imensamente deste blog Semióticas porque tudo aqui é surpreendente e belo. Muito obrigado por compartilhar.
Gilberto Pereira Silva
Muito bem escrita, muito bem editada, muito correta e atual na crítica política e na beleza a toda prova. Que matéria! Parabéns de novo.
ResponderExcluirParabéns de novo. Texto perfeito, profundamente político, como é o trabalho do mestre Sebastião Salgado, e imagens maravilhosas demais. Muito obrigada por me trazer esta beleza.
ResponderExcluirAnna Gutiérrez
Não sou de registrar comentários nos sites que visito, mas no seu caso preciso de novo quebrar o hábito. Porque tudo o que encontro aqui é muito bom mesmo!
ResponderExcluirHoje fiquei emocionada porque esta matéria com Sebastião Salgado é muito maravilhosa em tudo, seu texto político e coerente e estas imagens que até parecem um filme de documentário. Amei, amei. Sebastião Salgado é um ser iluminado e você também, por nos proporcionar beleza e sabedoria
Linda seleção de imagens! Sou fã do Artista da Fotografia, a textura e sensibilidade de suas imagens é inigualável. E grande admirador da fundação que ele desenvolve, o Instituto Terra.
ResponderExcluirTexto sensacional, de ler com os olhos e coração. Parabéns. Continue!
ResponderExcluirAcho que este blog Semióticas é o melhor de todos os que já visitei e esta matéria, junto com a outra deste blog, "Gênesis por Sebastião Salgado", são as melhores que já encontrei sobre o fotógrafo: bem escritas, bem documentadas e muito bonitas na edição de imagens. Só agradeço. Parabéns de novo!
ResponderExcluirMuito obrigada por esta matéria tão importante e pela beleza da postagem. Parabéns pelo comprometimento político, pelo alto nível e pela generosidade em compartilhar sabedoria.
ResponderExcluirFátima Soares
Conheci Tião, como assim é chamado o mestre por familiares e amigos mais íntimos, que não meu caso, através de um amigo dele que a época era presidente do Movimento Pro-Rio Doce localizada em Governador Valadares e onde estava eu começando minha vida de Fotógrafo. De lá pra cá nunca mais o vi, mas sigo seu trabalho como verdadeiro discípulo. E agora sigo este blog como verdadeiro leitor, pesquisador e amante da fotografia. Indicarei a meus alunos e colegas da área. Parabéns, excelente trabalho.
ResponderExcluirMaravilha de imagens e de texto.
ResponderExcluirMuito obrigada por você sempre compartilhar beleza e sabedoria.
Este blog Semióticas é um espetáculo. Adoro.
Jesse Gadelha
Parabéns pelo alto nível. Imagens lindas, identificadas em tudo, e texto impecável em todos detalhes. Blog Semióticas é um dos melhores que já visitei.
ResponderExcluirVinicius Barros
Esta postagem atualizou minha percepção sobre o valor de Sebastião Salgado, sobre a arte da fotografia e sobre as questões ambientais. Tudo isso e mais uma dose extra de emoção.
ResponderExcluirParabéns pela postagem e por seu texto ao mesmo tempo poético, didático e impecável, que me levou a lugares maravilhosos. Aprendi muito sobre coisas que eu nem suspeitava. Parabéns pelo alto nível.
Liana Mendes