O
que me interessa é o papel que tem o Candomblé ao
conferir dignidade aos descendentes dos escravos. Aqui eles chegaram a ser gente mesmo, gente respeitada
por suas próprias tradições.
–– Pierre
Verger (1902-1996). |
Um acervo surpreendente com cerca de 200 fotografias inéditas que registram o Candomblé da Bahia nas décadas de 1930 e 1940 foi localizado esta semana em Pernambuco. O valor da descoberta impressiona ainda mais depois da revelação da identidade do autor das fotografias – o alemão Thomás Kockmeyer, que era frei da Ordem dos Franciscanos da Igreja Católica e foi ordenado em 1938 no Brasil, onde viveu durante cinco décadas.
Kockmeyer,
entusiasta da fotografia, driblou a intolerância racial e religiosa
da época e registrou as belas imagens de comunidades negras e seus
rituais de Candomblé no Recôncavo Baiano. Fotografias, objetos e outros
documentos foram encontrados no Recife, em Pernambuco, pela equipe do
Arquivo Provincial Franciscano que desde 2014 trabalha no projeto Resgate
Documental da Província Franciscana de Santo Antônio do Nordeste do
Brasil.
As
200 fotografias no formato 5 x 7 cm, ao que tudo indica, estavam guardadas há décadas
no Recife, no Convento de Santo Antônio, em uma pequena caixa de
madeira com os dizeres “Candomblé – Fotografias de Frei Thomás
Kockmeyer”. São imagens de grande valor documental que registram os moradores de comunidades negras da região do Recôncavo Baiano, alimentos, indumentárias e rituais religiosos de matriz africana. O projeto Resgate Documental, que tem patrocínio da Petrobras, pretende
recuperar arquivos históricos de documentos e objetos relacionados
aos quatro séculos da história da Ordem Franciscana da Igreja
Católica no Brasil.
O
trabalho da equipe do projeto Resgate Documental teve início em 2014
por iniciativa do coordenador de Patrimônio da Província
Franciscana, frei Roberto Soares. O objetivo do projeto é reunir os
acervos de raridades históricas que incluem imagens, manuscritos,
cartas, certidões, livros, fotografias, fitas cassetes, discos em vinil,
partituras e filmes que retratam a vivência religiosa, social,
cultural e administrativa dos franciscanos no Brasil.
Cenas
e personagens anônimos
A
pesquisa e coleta do material, que resultou na descoberta das
fotografias feitas pelo frei Kockmeyer, acontece em mais de 40
localidades que, desde o início do século 16, abrigam ou abrigaram
conventos e igrejas da Ordem Franciscana nos estados de Pernambuco,
Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará, Alagoas, Sergipe, Bahia e
Pará. A previsão é que nos próximos meses o acervo esteja
restaurado, organizado e aberto ao público para consulta no Recife,
no Arquivo Provincial Franciscano, e também através da Internet.
As
cenas e personagens anônimos fotografados pelo frei Thomás Kockmeyer, além
de despertar interesse por seu ineditismo e pela identidade inusitada
do fotógrafo, revelam detalhes importantes sobre a religião e os
hábitos cotidianos de comunidades negras da Bahia, suas festas,
vestimentas, objetos sagrados e movimentação nos rituais. Além dos
registros sobre o Candomblé, durante os quase 50 anos em que esteve
no Brasil o frei franciscano também se dedicou a pesquisas sobre
história e sobre os povos indígenas.
De
acordo com o informe publicado pela coordenação do projeto Resgate
Documental, também foram localizados no Recife documentos diversos e outras fotografias
relacionados aos estudos de frei Kockmeyer, incluindo registros de
duas expedições de pesquisa de campo que o religioso realizou, em
1950 e em 1958 – quando ele passou uma temporada de sete meses com
os índios Tiriyó, no estado do Pará. Frei Thomás Kockmeyer morreu
em 1978, aos 65 anos, em um acidente de carro, e foi enterrado em Rio
Formoso, cidade do interior de Pernambuco onde ele exercia as funções
de vigário.
América Negra
Antes
desta descoberta do acervo no Recife, as únicas referências sobre
as pesquisas etnográficas e as fotografias do frei Thomás Kockmeyer
estavam nos livros publicados pelo sociólogo francês Roger Bastide
(1898-1974), que a partir de 1938 fez parte da missão de professores
europeus na então recém-criada Universidade de São Paulo (USP).
Roger Bastide morou durante 20 anos no Brasil, atuando na USP, em substituição ao professor Claude Lévi-Strauss, e também morou no Rio
de Janeiro e em estados do Norte e do Nordeste.
Dedicado
a estudos sobre religiosidade e misticismo, Bastide é reconhecido
como um dos principais pesquisadores sobre as religiões
afro-brasileiras e chegou a se tornar um iniciado no Candomblé. Na
década de 1940, conheceu na Bahia o trabalho do frei Kockmeyer sobre
o Candomblé e os rituais religiosos de matriz africana, que posteriormente seria descrito e citado como
referência na tese de doutorado de Bastide na Universidade de Paris-Sorbonne, “O
Candomblé da Bahia –
Transe e Possessão no Ritual do Candomblé” (1957), e também em “Brasil, Terra dos
Contrastes” (1957), “As Religiões Africanas no Brasil” (1958)
e “As Américas Negras” (1967), entre outros livros publicados
pelo sociólogo.
Outro cidadão francês que ficou impressionado com os rituais religiosos de origem africana no Brasil foi o escritor Albert Camus, Prêmio Nobel de 1957. Em visita ao Brasil, em 1949, tendo por companhia dos escritores Oswald de Andrade e Murilo Mendes, Camus assistiu as festas em louvor ao Senhor Bom Jesus em Iguape, no litoral de São Paulo, e também visitou o Rio de Janeiro, a Bahia e o Ceará. O escritor ficou especialmente interessado nas questões religiosas: acompanhou procissões católicas e participou de rituais de umbanda e candomblé, nos quais encontrou semelhanças com sua terra natal, a Argélia, país também habitado por europeus e africanos. As lembranças do Brasil são citadas com frequência na obra de Camus, com destaque em "Diário de Viagem" e em "A pedra que cresce", do livro "O Exílio e o Reino", com a história de um engenheiro europeu que viaja ao Brasil para construir uma represa em Iguape.
O
babalaô “Fatumbi”
Além
de Roger Bastide e Albert Camus, outro cidadão francês que conheceu em meados do século 20
as pesquisas e fotografias de frei Thomás Kockmeyer foi Pierre Verger
(1902-1996), fotógrafo e antropólogo francês que adotou Salvador
como residência a partir da década de 1940. Verger dizia em entrevistas que se
apaixonou pela Bahia ao ler “Jubiabá”, romance de Jorge Amado publicado em 1935. Jorge Amado e o artista plástico Carybé, anos depois, fariam parte do grupo dos grandes amigos de Verger em terras brasileiras.
A aproximação com Roger Bastide e Pierre Verger também levaria os amigos Jorge Amado e Carybé a receberem como convidados, em Salvador, outros importantes escritores, artistas e filósofos de outros países – entre eles os franceses Simone de Beauvoir, Jean-Paul Sartre e Jorge Semprún; os argentinos Julio Cortázar e Ernesto Sabato; os italianos Umberto Eco e Alberto Morávia; e pelo menos três vencedores do Prêmio Nobel de Literatura: o colombiano Gabriel García Márquez, o chileno Pablo Neruda e o português José Saramago – todos de passagem pelo Brasil e interessados em conhecer a Bahia, o Candomblé e os cultos de matriz africana dedicados à fé nos orixás.
A aproximação com Roger Bastide e Pierre Verger também levaria os amigos Jorge Amado e Carybé a receberem como convidados, em Salvador, outros importantes escritores, artistas e filósofos de outros países – entre eles os franceses Simone de Beauvoir, Jean-Paul Sartre e Jorge Semprún; os argentinos Julio Cortázar e Ernesto Sabato; os italianos Umberto Eco e Alberto Morávia; e pelo menos três vencedores do Prêmio Nobel de Literatura: o colombiano Gabriel García Márquez, o chileno Pablo Neruda e o português José Saramago – todos de passagem pelo Brasil e interessados em conhecer a Bahia, o Candomblé e os cultos de matriz africana dedicados à fé nos orixás.
Quando passa a morar em Salvador, em 1946, Pierre Verger inicia suas
pesquisas sobre a religião e a cultura negra da África e do Brasil,
o que o levaria aos primeiros contatos com o trabalho do frei Kockmeyer.
Verger, que se tornaria um dos grandes estudiosos dos cultos aos
Orixás, recebeu em 1953 o nome ritualístico “Fatumbi” e foi
iniciado como babalaô, um adivinho através do jogo de búzios do
Ifá, com acesso às sagradas tradições orais da cultura Iorubá.
Em
1988, o próprio Pierre Verger transformou a casa em que morava, na Ladeira da Vila América, em Salvador, na sede da Fundação Pierre Verger, que passou a abrigar
uma preciosa biblioteca sobre as religiões africanas no Brasil, um acervo com obras de arte e mais de 60 mil fotos de sua
produção, em grande parte dedicada ao Candomblé. Não por acaso, o
antropólogo Raul Lody, atual curador da Fundação Pierre Verger,
também faz parte da equipe de pesquisa do Arquivo Provincial Franciscano que
localizou, no Convento de Santo Antônio, no Recife, o acervo de
documentos e fotografias sobre o Candomblé registrados pelo frei
Thomás Kockmeyer.
por
José Antônio Orlando.
Como
citar:
ORLANDO,
José Antônio. Olhar estrangeiro no Candomblé. In: Blog
Semióticas,
11 de abril de 2015. Disponível no link
http://semioticas1.blogspot.com/2015/04/olhar-estrangeiro-no-candomble.html
(acessado em .../.../...).
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