Durante
o período da Política da Boa Vizinhança, programa instaurado pelo
governo norte-americano para forçar uma aproximação política e econômica com a
América Latina, uma artista é escolhida como símbolo do
continente: Carmen Miranda – destaca Eneida Maria de Souza
em “Janelas Indiscretas – Ensaios de Crítica Biográfica”,
coletânea de ensaios publicada pela Editora UFMG. “Entre 1939
e 1945, Carmen participou de vários filmes de sucesso de Hollywood.
Como a construção estilizada de sua imagem guardava um pouco de
cada lugar da América, é até difícil vê-la hoje como
representante de uma autêntica cultura brasileira”, argumenta a autora, nesta entrevista que fiz com ela na véspera do lançamento do livro em Belo Horizonte, referindo-se aos ensaios dedicados à atriz e cantora coroada como primeira Rainha do Rádio na década de 1930 e que, em 1939, quando a Segunda Guerra estava no começo, partiu para os EUA para se tornar a “Brazilian Bombshell” (bomba brasileira), uma grande estrela da Broadway e presença marcante em filmes musicais de Hollywood de grande sucesso no mundo inteiro.
Na entrevista, Eneida também explica que o espectro investigativo e teórico reunido na nova seleção de ensaios inclui, além da
revisão dos estereótipos construídos sobre a estrela Carmen
Miranda, outras questões abrangentes que relacionam política, arte e literatura, como os diários de guerra de Guimarães Rosa ou os retratos
de mestres como Mário de Andrade e Cyro dos Anjos pintados pelos
grandes do Modernismo. O mosaico apresentado em “Janelas Indiscretas” também focaliza e questiona o papel do intelectual e a construção da
identidade em torno das complexidades da cultura brasileira, das primeiras às
últimas décadas do século 20, até chegar à atualidade.
Professora
emérita e titular da UFMG, pesquisadora do CNPq, autora de estudos
de peso publicados em livros de referência como “A Pedra Mágica do Discurso” (1999), “Crítica
Cult” (2002), “Pedro Nava: O Risco da Memória” (2004), “Tempo
de Pós-Crítica” (2007) e “Modernidades Alternativas na América
Latina” (2009), entre outros, Eneida também está entre os finalistas do Prêmio
Jabuti 2011, com o belo “Correspondência de Mário de Andrade &
Henriqueta Lisboa” (Editora Peirópolis). “Janelas
Indiscretas”, o novo livro, retoma algumas preocupações equacionadas em estudos anteriores para desvendar as intrincadas relações
entre biografia e ideologia, aprofundando análises críticas e demarcando novos limiares para questões historiográficas, conceituais e teóricas.
As
novidades do viés interpretativo apresentado por Eneida Maria de
Souza alcançam questões polêmicas e quase sempre rompem com o
lugar-comum tantas vezes estabelecido como fronteira – não apenas
na correlação entre vida e obra nos arquivos de medalhões do
Modernismo, mas também nas diferenças que configuram nomes
contemporâneos como Silviano Santiago e João Moreira Salles ou
Caetano Veloso e Chico Buarque, entre outros. Para além da sofisticação da
escrita e do repertório analítico, o resultado são reflexões
atualíssimas em que projetos políticos vêm abarcar projeto
autobiográfico e aventuras existenciais.
Enigmas da vida e da obra
Para
começar, a professora faz um alerta, avisando que é
ingênua aquela pesquisa que busca desvendar segredos e enigmas do
texto na vida dos escritores. “A escolha do método biográfico
impõe determinada disciplina e se afasta de aproximações ingênuas
e apenas causalistas operadas por adeptos da pesquisa biográfica como caça
aos segredos e enigmas que o texto revela”, destaca, na apresentação
a “Janelas Indiscretas”.
Abordagens críticas sobre o texto, o livro, o filme e as canções surgem em cada ensaio de
"Janelas Indiscretas" não pela via da explicação causal,
que vê a obra como espelho da existência, mas pela elucidação de
propostas poéticas, entre questões teóricas e contextuais. “O
mundo midiático fez nascer um novo fenômeno que deve ser
considerado pela crítica: o autor se converteu em personagem de si
mesmo. Assim, os acervos literários se tornaram uma janela para
compreensão dessas relações em que o escritor mistura a ficção e
a realidade”, explica Eneida.
Nesta
entrevista, concedida às vésperas do lançamento do livro em Belo
Horizonte, a autora de "Janelas Indiscretas" destacou
certos aspectos em que a biografia se traduz em arte e literatura a
partir das questões de identidade nacional como projeto
autobiográfico, introduzidas pelos modernistas no Brasil da década
de 1920. São questões que permanecem atuais, segundo Eneida.
“A
questão de identidade nacional representava um projeto mais
coletivo, por defender a necessidade de construção da nacionalidade
cultural brasileira”, aponta. “Somente mais tarde é que os
modernistas, como Drummond, Pedro Nava, Oswald de Andrade e Murilo
Mendes escreveram suas memórias. Mário de Andrade escreveu milhares
de cartas, logo, contribuiu para a sua autobiografia.”
Questionada sobre a natureza da obra de arte, que sempre coloca em suspenso a verdade biográfica, Eneida explica que a biografia nunca precede a obra. “Esta posição diz respeito à antiga crítica biográfica. Hoje, a obra é que restaura a biografia, pelos elos metafóricos entre os dois registros. Não importa, também, se o que está sendo articulado como autobiografia tenha realmente acontecido, ou se pertence a uma verdade biográfica. O critico joga com os dois polos, a obra e a vida, por isso não se deve dar mais valor a cada um dos dois registros”, completa.
A 'morte do autor'
Sobre a “morte do autor” defendida nos anos de 1970 pelo pensador francês Roland Barthes (1915-1980), como uma das condições para que a crítica pudesse alcançar a complexidade da obra de arte, Eneida alerta que, nos ensaios do novo livro, as reflexões sobre autoria não abandonam as célebres teorias lançadas por Barthes. Tais pressupostos são, na verdade, retomados em novos contextos sob as coordenadas de questões de política, de arte e de literatura que em nossa atualidade estão em evidência.
“Considero principalmente as reflexões que seguem o que, na década de 1970, Roland Barthes entendeu como a volta do autor”, explica Eneida. “Esta volta do autor, ou seja, o autor tomado como personagem, retoma e amplia o lugar teatral e distanciado do autor em relação ao seu texto original. Só que acrescentada com sua presença enunciativa, com a escrita do corpo e o apelo ao leitor”.
Janelas
Indiscretas: o pensador francês
Roland
Barthes fotografado em ação,
na
sala de aula, no Collège de France,
em Paris,
no ano de sua morte, 1980.
Abaixo, Macunaíma de Andrade, uma versão do personagem da literatura de Mário de Andrade recriado pelo traço do artista Arlindo Daibert |
O título do livro, "Janelas Indiscretas", remete inevitavelmente a uma das obras-primas de Alfred Hitchcock, um dos principais ilusionistas da história do cinema e autor de uma filmografia sempre pontuada por referências autobiográficas. O título foi escolhido para uma relação intencional, segundo a autora. “O titulo remete sim ao filme de Hitchcock”, reconhece Eneida, esclarecendo uma sutileza que vai além da mera semelhança. “Só que o título do livro está no plural e tende a ser tanto as janelas abertas do mundo virtual da Web como a posição da análise crítica em esmiuçar, pela janela do texto, a obra e a vida dos escritores. Mas sem a preocupação jornalística de desvendar segredos ou de apontar verdades escondidas dos mesmos. Essas janelas têm, inclusive, a possibilidade de fornecerem lentes de aumento como o zoom das câmeras da fotografia e do cinema”, completa.
Entre tantos enfoques e gêneros que os ensaios reunidos em “Janelas Indiscretas” alcançam, há autores e obras que definem a atualidade da “crítica biográfica”. “Há, entre outros, Silviano Santiago, que sempre pautou sua obra pela relação com a ficção de sua vida. Daí a autoficção construída com os restos e o jogo malicioso entre dados pessoais e recriação ficcional”, explica a professora. “Muitos dos livros de Silviano Santiago brincam com essa relação deslizante entre os polos da arte e da vida. Sem esquecer, é claro, a presença e a importância de Jorge Luis Borges, o escritor que mais burilou e inventou associações falsas e verdadeiras entre os dois registros da arte e da vida”.
Janelas Indiscretas: dois registros latino-americanos na abordagem dos ensaios reunidos por Eneida no livro, com um certo Jorge Francisco Isidoro Luis Borges Acevedo (acima) e, abaixo, a estrela Carmen Miranda em cenas de Down Argentine Way, filme de 1940 que marca sua estreia em Hollywood e que no Brasil foi lançado nos cinemas como Serenata Tropical. Também abaixo, a professora Eneida Maria de Souza em 2010, fotografada por Maria Tereza Correia |
Há
também em “Janelas Indiscretas” ensaios dedicados a Mário de Andrade e a seu “Macunaima” (entre eles “Macunaima: quem é você?”, sobre as qualidades da personagem apresentada no livro de 1928, e “Macunaima de Daibert”, sobre os desenhos do artista Arlindo Daibert inspirados no livro e sobre outras ilustrações baseadas na personagem elaboradas por Carybé, Rita Loureiro, Pedro Nava) e referências saborosas
à citação do modernista Oswald de Andrade e seu trocadilho sempre
repetido – “a massa ainda comerá do biscoito fino que eu
fabrico”, sem esquecer o destaque para a figura emblemática de Carmen Miranda, personalidade que aparece
em foco nos ensaios “Do kitsch ao cult” e “O tic-tac do meu
coração”. As análises de Eneida destacam na imagem pública de Carmen Miranda várias metamorfoses. Há a fase
brasileira da cantora, que também participou de filmes e compreende
os 10 anos entre a sua primeira gravação (1929) e a partida para os
Estados Unidos (1939). Nesta primeira fase destaca-se especialmente a
ênfase na brasilidade e a importância de Carmen na popularização
do samba e do carnaval.
E
há a fase “americanizada” de Carmen, que por força das críticas pesadas e
frequentes na imprensa do Brasil terminou estigmatizada na memória
do público, mas nem por isso menos popular. Hoje em dia, mais de meio século anos depois de sua morte, sobrevivem na mídia sobretudo a imagem
festiva e carnavalesca da estrela Carmen Miranda, carregada de clichês visuais como
as bananas e abacaxis na cabeça, os turbantes exóticos e os
vestidos de baiana estilizados, de cores fortes, que apresentava nos
filmes de Hollywood. Carmen viveu por 16 anos nos
Estados Unidos e foi – durante muito tempo, a artista mais bem
remunerada do país e a maior pagadora de imposto de renda da
América.
O argumento que conclui a análise sobre Carmen Miranda destaca, na presença emblemática do sucesso duradouro da estrela tanto na cultura brasileira como na cultura pop de diversos países, os modos e gradações através dos quais ela profetiza
uma convivência conflitiva, e ao mesmo tempo salutar, entre questões da arte e questões do mercado. Segundo Eneida, se hoje a academia em geral aceita, com
certa naturalidade, as lições que a música popular pode oferecer
às nossas mentes ilustradas, tal fato se deve à contaminação
dessas manifestações artísticas, até pouco tempo atrás consideradas de menor importância, espúrias ou mesmo inadequadas, no universo nem tão puro da arte e da literatura.
por José
Antônio Orlando.
Como
citar:
ORLANDO,
José Antônio. As janelas indiscretas. In: Blog
Semióticas,
30 de setembro de 2011. Disponível no link
http://semioticas1.blogspot.com/2011/09/janelas-indiscretas.html
(acessado em .../.../…).
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Janelas Indiscretas: uma tradução do
Brasil na imagem de 1928, ano em que
Tarsila do Amaral pintou o Abaporu,
quadro a óleo batizado pelo poeta
Raul Bopp e por Oswald de Andrade
(namorado de Tarsila na época) e que iria
inspirar o Movimento Antropofágico.
Vinculada ao Movimento Modernista,
a Antropofagia queria deglutir, engolir
a cultura europeia, que era a cultura até então dominante no Brasil, para então transformá-la em algo bem brasileiro. O Abaporu, que segundo Tarsila era uma representação dos monstros das histórias que as amas negras contavam para ela em sua infância, é a mais valorizada pintura brasileira: em 1995, em um leilão da Christie's, em Nova York, foi comprada por U$ 1,5 milhão pelo colecionador argentino Eduardo Constantini, criador do Malba, o Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires
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