A falta de sentido da vida sempre nos força a criar significados. E, também, se algo pode ser escrito ou pensado, pode ser filmado.
–– Stanley
Kubrick em entrevista à revista "Playboy" em 1968.
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Alguns
dos maiores diretores da história do cinema iniciaram a produção
de seus filmes desenhando o “storyboard”, aquelas sequências
de instruções para filmagens muito parecidas com histórias em quadrinhos que, no formato em que é
hoje conhecido, foram desenvolvidas primeiro pelos estúdios de Walt Disney, no
começo da década de 1930, reunindo etapas de processos similares
utilizados em outros estúdios de Hollywood. Dentro e fora dos
Estados Unidos, o próprio Disney, além de Alfred Hitchcock,
Federico Fellini, Visconti, Glauber Rocha, Akira Kurosawa ou Jean Renoir, entre vários
outros, produziram surpreendentes obras-primas em desenhos e pinturas
para seus storyboards.
Para
outros grandes cineastas, a produção tem início através de longos
e obstinados testes em estudos fotográficos que, passo a passo, vão
mapeando cenários, enquadramento de atores, movimentos de câmera,
sequências e elipses dramáticas. Stanley Kubrick pertence a este
segundo grupo. Cineasta do drama futurista “Laranja Mecânica”,
da ficção científica “2001 – Uma Odisseia no Espaço” e do
thriller de horror “O Iluminado”, entre outros clássicos em
diversos gêneros, sempre citados entre os melhores de todos os
tempos, Kubrick era o que se pode chamar de fotógrafo profissional.
Tanto que, antes da consagração no cinema, trabalhou como fotógrafo
da conceituada “Look Magazine”, em Nova York, entre 1945 e 1950.
Kubrick
era um adolescente de apenas 17 anos quando vendeu sua primeira
fotografia para a revista. Recebeu 25 dólares pelos direitos de
publicação da imagem, que retratava a reação de desalento de um
vendedor de jornais ao saber da notícia da morte do presidente
norte-americano Franklin D. Roosevelt. Foi o mais jovem fotógrafo
contratado pela “Look” e exercitou diariamente, durante cinco
anos, seu estilo, perfeccionista e repleto de complexas composições
– que transparecem tão bem em cada um dos 13 grandes filmes que
realizaria nas cinco décadas seguintes.
Sempre
citadas pelos biógrafos, por conta das correlações com
enredos, ambientações e personagens dos filmes do cineasta, as
muitas séries de fotografias, algumas delas premiadas, que o
jovem fotógrafo Stanley Kubrick produziu para a revista “Look”, permaneciam
como enigmas para a maioria do público. Estavam fora de circulação desde a
década de 1950 e, desde 1971, com a extinção da revista, todo o
acervo permanecia inacessível.
O mistério se desfez há poucos meses, graças às pesquisas do alemão Rainer Crone, jornalista e professor de História da Arte. As pesquisas de Crone levaram à descoberta de todo o acervo das milhares de fotografias do jovem Kubrick: estavam arquivadas e esquecidas, há décadas, na Biblioteca do Congresso norte-americano, em Washington, e no Museum of the City of New York.
O mistério se desfez há poucos meses, graças às pesquisas do alemão Rainer Crone, jornalista e professor de História da Arte. As pesquisas de Crone levaram à descoberta de todo o acervo das milhares de fotografias do jovem Kubrick: estavam arquivadas e esquecidas, há décadas, na Biblioteca do Congresso norte-americano, em Washington, e no Museum of the City of New York.
A
foto enquanto storyboard
Para
os fãs do cineasta e os pesquisadores de história da fotografia e
do cinema, duas boas notícias: a primeira é que a editora Phaidon Press de Nova York publicou um catálogo com uma seleção das fotografias realizadas entre 1945 e 1950 pelo jovem Stanley Kubrick. A segunda boa notícia é que o Museum of
the City of New York abriu uma exposição permanente (veja o link para uma visita virtual no final deste artigo) com mais de 200 fotografias feitas por Kubrick para a
“Look Magazine”, a grande maioria totalmente inédita desde a publicação
original nas páginas da revista, incluindo também aquelas que nunca foram publicadas.
As imagens, também publicadas em um catálogo editado pela Taschen, foram selecionadas pela curadoria, a cargo de Rainer Crone, entre mais de 12 mil negativos produzidos pelo futuro diretor e localizados dentro de sacos plásticos, cobertos de pó, nos arquivos em Washington e Nova York. No site do museu, há algumas fotografias produzidas por Kubrick que estão à venda e muitas delas também estão disponíveis para visualização ou download gratuito.
As imagens, também publicadas em um catálogo editado pela Taschen, foram selecionadas pela curadoria, a cargo de Rainer Crone, entre mais de 12 mil negativos produzidos pelo futuro diretor e localizados dentro de sacos plásticos, cobertos de pó, nos arquivos em Washington e Nova York. No site do museu, há algumas fotografias produzidas por Kubrick que estão à venda e muitas delas também estão disponíveis para visualização ou download gratuito.
Na apresentação à exposição no Museum of the City of New York, Rainer Crone, que publicou em 2006 a obra biográfica “Stanley Kubrick: Drama and Shadows”, destaca que o perfeccionismo, as características marcantes de Kubrick como diretor já estavam presentes em suas fotografias. E não apenas isso, mas também o fato de Kubrick relacionar-se com a fotografia de uma forma "cinematográfica". Segundo Crone, Kubrick inventou um conceito na época totalmente novo, que consiste em contar histórias com imagens fixas. Era como se ele já fosse, desde então, um cineasta. Na exposição, a maioria das fotos surge como verdadeiros storyboards.
As
fotografias do jovem Kubrick foram divididas em oito segmentos,
retratando imagens separadas e séries específicas. Alguns temas se
destacam na variedade porque contam histórias completas: uma
reportagem fotográfica sobre uma viagem a Portugal em 1948, na qual o fotógrafo tenta demonstrar que o patrimônio histórico e cultural português saiu ileso da Segunda Guerra; o trabalho infantil no dia-a-dia de
um pequeno engraxate do Brooklin chamado Mickey; os artistas e os animais de um
circo mambembe, dos quais emana um suave tom de melancolia, de algo
em vias de extinção, com os dias contados; a perseguição e a captura de criminosos
pela polícia de Nova York; e uma instituição privada dedicada a abrigar meninos e meninas órfãos
de guerra.
Outros
temas que chamaram minha atenção, na variedade das fotografias feitas pelo jovem Stanley Kubrick, são as imagens que
encerram complexidades por trás de uma certa simplicidade apenas
aparente, que sobressai à primeira vista – caso dos retratos da
velha guarda dos músicos de jazz, do ensaio sobre uma jovem
celebridade do Pós-Guerra (a precoce Betsy von Fürstenberg,
bailarina aos 7 anos, modelo aos 14, em Paris, e atriz de sucesso aos
18) ou os estudantes no campus da Universidade de Columbia, um espaço reservado
aos herdeiros das elites.
Crone, no breve texto de apresentação ao livro, também reconhece na maioria das fotografias esta complexidade que poderia ser trivial ou simples para um olhar de principiante e diz que se empenhava em uma pesquisa séria sobre a fase de fotógrafo
do cineasta quando, em 1998, procurou o próprio Kubrick, em Londres,
em busca de ajuda. Mas Kubrick revelou, para espanto de Rainer Crone,
que não possuía nenhuma das imagens feitas sob encomenda da “Look”
e que não tinha ideia de onde se encontravam os negativos. Não sabia nem mesmo
se todas aquelas fotos ainda existiam. No ano seguinte, Kubrick morreu, deixando como
legado seu último filme, “De Olhos Bem Fechados”, baseado na
obra de Arthur Schnitzler, “Breve Romance de Sonho”. Desde aquele encontro, Crone, por mais de uma década, continuou dedicado à árdua missão de localizar o paradeiro
do acervo.
O cineasta contido no fotógrafo
A
maior parte das fotos sob encomenda da “Look” foi feita com uma
mesma câmera Rolleiflex, com negativo no formato 6 X 6, o que dá origem a algumas
reproduções no formato quadrado e não retangular. O biógrafo Rainer Crone explica, como apresentação à obra do repórter fotográfico Stanley Kubrick, que ele aproveitou de maneira
muito hábil a exigência da revista de dispor as fotos em sequência
narrativa, para ilustrar reportagens e editoriais sobre os mais diversos assuntos.
“A revista queria séries sobre a cidade e sobre pessoas anônimas", explica Crone, no texto de apresentação à exposição no Museum of the City of New York. "Queriam imagens inéditas, sem nenhuma exigência de qualidade ou limitação de assunto. O objetivo era criar um banco de imagens para ilustrar reportagens sobre as questões cotidianas de Nova York e dos Estados Unidos no Pós-Guerra. E Kubrick, apesar de muito jovem, foi muito hábil e conseguiu transformar imagens estáticas (still pictures, próprias da fotografia) em sequências que davam lugar a verdadeiras histórias, espécie de ‘contos’ fotográficos tão fascinantes como aqueles que ele viria a realizar mais tarde com imagens em movimento”.
“A revista queria séries sobre a cidade e sobre pessoas anônimas", explica Crone, no texto de apresentação à exposição no Museum of the City of New York. "Queriam imagens inéditas, sem nenhuma exigência de qualidade ou limitação de assunto. O objetivo era criar um banco de imagens para ilustrar reportagens sobre as questões cotidianas de Nova York e dos Estados Unidos no Pós-Guerra. E Kubrick, apesar de muito jovem, foi muito hábil e conseguiu transformar imagens estáticas (still pictures, próprias da fotografia) em sequências que davam lugar a verdadeiras histórias, espécie de ‘contos’ fotográficos tão fascinantes como aqueles que ele viria a realizar mais tarde com imagens em movimento”.
Três conclusões importantes de Crone: 1) as qualidades do Kubrick cineasta estavam já contidas no Kubrick fotógrafo; 2) as fotografias de Kubrick, antes de tudo, belíssimas, desenham uma linha evolutiva que leva do fotógrafo ao cineasta; 3) adivinha-se, na disposição estética das séries e em cada fotografia, em separado, uma “poética” da imagem que busca uma certa ambiguidade. O curador e biógrafo busca seu argumento nas evidências das imagens em exposição e nas palavras que ouviu do próprio Kubrick:
“Sempre
pensei que uma ambiguidade crível, realística de verdade, constitua
a melhor forma de expressão”, declarou o cineasta ao biógrafo, em
1998, quando ainda filmava “De Olhos Bem Fechados”. “Isso por
diversas razões. Primeiro de tudo, ninguém gosta que as coisas venham explicadas, ninguém gosta que a verdade do que está
acontecendo chegue mastigada. E segundo, coisa ainda mais importante,
ninguém sabe de verdade o que seja o real ou o que esteja
de fato acontecendo”.
“Acredito
que uma verdadeira, perfeita ambiguidade", prossegue Stanley Kubrick, "seja alguma coisa que pode
ter diversos significados, cada um dos quais detendo algum aspecto da
realidade, e cada um, ao mesmo tempo, induzindo o observador a
mover-se emocionalmente na direção em que desejamos que ele se
mova. Creio que uma asserção clara, literal e ‘objetiva’ seja
em si mesma falsa e não terá jamais o poder de uma
perfeita ambiguidade.”
Da
ficção científica ao drama histórico
Nos
melhores filmes de Kubrick – e Crone faz questão de destacar que,
no caso de Kubrick, os melhores são quase todos – reencontra-se
essa característica da ambiguidade, que já podem ser intuídas pelo
observador das fotos. A imagem costuma ser clara e misteriosa ao mesmo
tempo, como se Kubrick trabalhasse nos limites do hiper-realismo. Em
cada um de seus filmes, a ambiguidade transparece, independente do
tema – seja na ficção alucinante de “Laranja Mecânica”, no
humor negro sobre a ameaça nuclear de “Dr. Strangelove”, com o
comediante Peter Sellers, ou num drama histórico e amoroso como
“Barry Lyndon”.
Na
variedade de fotografias em preto e branco, entre assuntos que vão do
mais poético e banal ao retrato mais surpreendente, difícil apontar
uma preferência. Observando a cronologia do catálogo virtual do
City Museum, fica uma forte impressão de que estão nos primeiros trabalhos
de Kubrick para a revista “Look” as características mais enigmáticas –
como se o fotógrafo adolescente estivesse mais criativo e espontâneo
no começo de sua relação com o mundo através das lentes da
câmera, surpreso com “a mais perfeita ambiguidade e com seus
diversos significados”. Entre as centenas de fotos disponíveis, prendem mais minha
atenção os longos ensaios sobre o metrô, intitulada “Stanley Kubrick,
Life and Love on the New York City Subway”.
São
cenas registradas pelo jovem Kubrick dentro dos trens e estações do
metrô de Nova York, sua cidade-natal, e que nunca foram publicadas
pela revista. Por certo influenciado pelas lendárias
fotorreportagens de Walker Evans – que uma década antes, em 1938,
marcou época ao registrar no mesmo metrô a série “Many Are
Called” (“muitos são chamados”), com retratos impressionantes
de anônimos que, na quase totalidade dos casos, estavam tão
absortas na vida que sequer percebiam que naquele momento estavam
sendo fotografados (veja mais sobre Walker Evans em Semióticas: Homens ilustres) – o olhar de
Kubrick também encontra entre os passageiros, através das lentes de
sua câmera, flagrantes de cansaço, de momentos solitários nas
plataformas, alguns beijos e carícias furtivas trocadas pelos
namorados.
O observador mais atento vai perceber, em cada foto do
metrô, que há uma estranha simetria entre as muitas histórias e
personagens, como se fossem cenas de um mesmo filme. “As
pessoas que andam de metrô tarde da noite são menos inibidas do que
aquelas que andam durante o dia. Casais fazem amor abertamente, bêbados
dormem pelo chão e outras atividades pouco comuns ocorrem tarde da
noite no metrô”, declarou Kubrick a Crone, sobre a série no metrô de Nova York, que também estava entre suas preferidas.
Fotografias da madrugada
Fotografias da madrugada
Kubrick revelou as artimanhas para esconder a câmera e disse que,
para cumprir a pauta de trabalho da "Look Magazine" e tirar fotos com mais liberdade, embarcou para viagens de metrô
por duas semanas, em 1946, registrando imagens na madrugada, entre
meia-noite e seis da manhã. No depoimento a Crone, Kubrick
também reconheceu que, na aventura do metrô, algumas das que
poderiam ter sido suas melhores imagens se perderam na última hora,
ou por causa de um tremido no vagão, ou porque outro passageiro
esbarrou nele e desfez o enquadramento minuciosamente planejado, ou
porque alguém andou de repente na frente da câmera e seu assunto
deixou o trem.
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Repetindo
a estratégia das incursões de Walker Evans, que sempre usava casaco
ou sobretudo para esconder a câmera e registrar os anônimos nos
trens e estações, Kubrick investiga olhares
e atitudes, sem que nenhum dos passageiros perceba sua presença. Mais de meio século depois, proporciona um encontro às escondidas para que possamos descobrir, no instantâneo, a privacidade de homens e mulheres de outros
tempos.
São
muitos personagens: a moça que viaja em pé, nitidamente contrariada
com seu desconforto, enquanto alguns marmanjos sentados, distraídos a conversar, não parecem
muito dispostos a ceder um lugar a ela; as duas senhoras que observam
de soslaio o passageiro musculoso e sedutor; o rapaz que segura o
buquê de flores no vagão lotado; o bebezinho que dorme no colo da
mãe, espremida entre outros passageiros. Em
mais de 60 anos, os costumes não mudaram muito, a não ser, talvez,
por detalhes do vestuário e pela frequência de jornais e revistas
impressos que, em nossa época, no metrô como em outros espaços da
vida cotidiana, cada vez mais são substituídos por telefones
celulares e toda variedade de dispositivo eletrônico portátil
individual.
Kubrick decidiu romper seu contrato de repórter
fotográfico com a revista “Look” em 1951, aos 22 anos, e naquele
mesmo ano, incentivado pelo pai, estrearia como cineasta, com três
documentários de curta-metragem em 16mm – “Day of the Fight”,
“Flying Padre” e “The Seafarers”. Teria ainda uma temporada
trabalhando na TV, antes de conseguir realizar seu primeiro longa-metragem, “Medo e Desejo" ("Fear and
Desire”, 1953), produção que o perfeccionismo de Kubrick
transformou em drama biográfico: o pai financiou o filme, depois de
penhorar a casa em que a família morava para conseguir um empréstimo, mas um tio rico do jovem Kubrick terminou por cobrir o orçamento de R$ 13 mil, ampliado depois com os custos de sonorização e montagem. Contudo, o cineasta estreante e perfeccionista avaliou o
trabalho como amador e, mesmo com o filme recebendo boas críticas,
tratou de retirá-lo de circulação. Até hoje “Fear and Desire”
permanece fora de catálogo, conhecido por poucos.
Logo
após, na filmografia de Kubrick, outro sucesso de crítica, premiado como melhor diretor no Festival de Locarno, Suíça, mas
ignorado pelo público: “Killer's Kiss” (“A Morte Passou por
Perto", 1955), trama intrincada, na tradição do gênero "criminal noir", sobre um boxeador fracassado e
apaixonado pela vizinha, uma dançarina que namora o patrão criminoso. Seu terceiro filme é “The Killing” (“O
Grande Golpe”), de 1956, thriller policial impecável sobre os
planos de um grande assalto que estabeleceu para Kubrick um ritual de passagem: de fotojornalista e cineasta independente quase desconhecido, passaria ao primeiro time dos grandes estúdios,
aclamado já a partir do próximo filme, o drama de guerra e contra a guerra "Glória Feita de Sangue" ("Paths of Glory", 1957), como autor de obras-primas incontestáveis, entre as mais sérias e mais importantes realizações do cinema na segunda metade do século
20.
por
José Antônio Orlando.
Como citar:
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Como citar:
ORLANDO,
José Antônio. Kubrick
no metrô.
In: Blog
Semióticas,
29
de setembro
de 2012.
Disponível no link
http://semioticas1.blogspot.com/2012/09/kubrick-no-metro.html
(acessado em .../.../...).
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