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A história, disse Stephen, é um pesadelo do qual estou tentando acordar. –– James Joyce, “Ulisses”. ............................................ |
O argentino Jorge Luis Borges, uma referência da literatura do século 20, ficaria cego, gradualmente, a partir dos 55 anos, devido a uma condição hereditária, provavelmente glaucoma ou uma doença degenerativa da retina. Apesar da perda da visão, Borges continuou a produzir obras literárias até o fim da vida, quando morreu em Genebra, na Suíça, em 1986, aos 88 anos. Ele sempre soube que perderia a visão, pois o destino da cegueira era hereditário: seu pai, seu avô e seu bisavô também ficaram cegos. Lembro de Borges porque a data de hoje, dia 16 de junho, remete a outra referência incontornável da literatura universal: é a data do Bloomsday, em que os amantes da literatura, e da literatura de James Joyce, em especial, celebram Leopold Bloom, protagonista de “Ulisses”, romance de Joyce que se passa em 16 de junho de 1904.
O
fascínio de Borges por Joyce, e mais ainda por “Ulisses”, por
certo vem de algumas coincidências existenciais e da força capital
que o tempo e a eternidade, em seus componentes de circularidade e
repetição, têm na literatura de Borges e também em James Joyce.
Borges menciona o autor irlandês muitas vezes em seus escritos e
dedicou a ele diversos artigos e ensaios. Quando se consulta as
versões on-line do Catálogo Bibliográfico Completo e do Catálogo
de Artigos na Imprensa, organizados pela La Maga: Associación
Borgesiana de Buenos Aires, é possível encontrar muitos textos de
Borges em que Joyce é o tema central ou está citado no argumento
das abordagens sobre outros autores.
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Páginas de 'Ulisses'
Os
artigos de Borges trazem referências muito poéticas sobre suas
leituras da obra de Joyce – com destaque para os que foram
publicados na revista semanal El Hogar, na qual Borges foi colunista
entre 1936 e 1939. Na seção “Libros y autores extranjeros: Guía
de lecturas”, Borges publicava artigos, resenhas e traduções
fragmentadas de autores de outros idiomas além do espanhol. Joyce já
havia sido abordado por ele em textos publicados em outros
periódicos, os primeiros deles em Proa, revista literária fundada
pelo próprio Borges em 1922, ano da publicação do “Ulisses” de
Joyce. Os longos artigos em Proa, com os títulos “El ‘Ulises’
de Joyce” e “La última hoja del ‘Ulises’”, foram
publicados na mesma edição, em janeiro de 1925, apenas três anos
após a primeira edição do romance pela Shakespeare & Company,
com sede em Paris.
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Crônica
do Bloomsday: acima, James Joyce |
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Sobre Joyce, na El Hogar, Borges publicou “Joyce e Yeats” (em outubro de 1936); “James Joyce” (em fevereiro de 1937); “Ulysse”, sobre a tradução do romance de Joyce para o francês (em fevereiro de 1938); e “El último libro de Joyce”, sobre o lançamento de “Finnegans Wake” (em junho de 1939). Na mesma época, Borges publicaria artigos sobre Joyce na Sur, revista fundada em 1931 por sua amiga muito próxima, a escritora Victoria Ocampo. Sobre Joyce, na Sur, Borges publicou “Joyce e los neologismos” (em novembro de 1939) e “Fragmento sobre Joyce” (em fevereiro de 1941).
Obra de muitas gerações
Os
dois artigos mais poéticos de Borges sobre Joyce estão na El Hogar.
No primeiro, em fevereiro de 1937, Borges escreveu: “Mais do que a
obra de um só homem, ‘Ulisses’ parece de muitas gerações” –
concluindo com uma confissão muito pessoal e definitiva: “A
delicada música da prosa de Joyce em ‘Ulisses’ é incomparável.”
O segundo artigo, publicado em junho de 1939, aborda “Finnegans
Wake”, mas faz citações a “Ulisses”, em tom de profunda
melancolia, quase que anunciando o horror da Segunda Guerra Mundial,
que já se desenhava no horizonte, com as tropas da Alemanha Nazista
ocupando a Polônia em 1º de setembro de 1939 e invadindo mais 11
países nos meses seguintes, transformando o conflito local em uma
guerra mundial.
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Crônica
do Bloomsday: acima, James Joyce |
Às vésperas da Segunda Guerra, Joyce foi viver para França. “Ulisses” trouxe fama internacional, mas não impediu que o autor vivesse angustiado e com destino de navegador errante por diversos países e endereços, numa jornada que remonta a referências da Antiguidade Clássica do personagem de Homero, do qual ele se apropriou em seu romance. Em uma das cartas a sua amada Nora Barnacle, Joyce definiu a si mesmo como “um homem solitário, insatisfeito, orgulhoso”. Diziam os amigos que, em público, ele era silencioso, lacônico, distante, com hábitos simples e rígidos na vida cotidiana que o levavam a comer sempre o mesmo prato, no mesmo restaurante, no mesmo horário, todos os dias.
Pavor de raios e trovões
Joyce
também tinha problemas nos olhos e fez várias cirurgias que não
foram suficientes para evitar o avanço do glaucoma. Seu
drama com o avanço da cegueira é um dos temas de “Pomes
Pennyeach” (Poemas, um tostão cada), publicado em 1927.
Também
era supersticioso, além de ter pavor incontrolável diante de raios
e trovões, e
teologia era um dos assuntos que, invariavelmente, despertavam seu
interesse.
Talvez por tudo isso certas
críticas negativas provocassem nele
imensa
tristeza – críticas
negativas tais como
a de Virgina Woolf, que
classificou “Ulisses” como “uma catástrofe memorável; imenso
em atrevimento, terrível como um desastre” e recusou
publicá-lo na The Hogarth Press. No
artigo
de
junho
de 1939 na El Hogar, Borges
escreveu: “James Joyce, agora, vive num apartamento em Paris, com a
sua mulher e os seus dois filhos. Vai sempre com os três à ópera,
é muito alegre e muito conversador. Está cego.”
James Joyce nasceu em Dublin em 2 de fevereiro de 1882, o mais velho de 10 crianças em uma família que passou rapidamente da riqueza à pobreza. Apesar das dificuldades, teve educação privilegiada como bolsista em uma escola jesuíta e no University College de Dublin. Sua estreia como autor foi aos 17 anos, quando publicou na Fortnightly Review o ensaio “The New Drama”, estudo sobre a obra do dramaturgo norueguês Henrik Ibsen. Três anos depois, aos 20 anos, foi para Paris, com a intenção de estudar medicina, mas acabou trocando as ciências médicas pela dedicação à literatura e à leitura de seus autores preferidos naquela época, Dante, Shakespeare, Homero e Aristóteles.
As confissões eróticas
Em
1903, regressou
a Dublin, por causa da doença da mãe, que faleceu logo depois. No
verão de 1904, ainda
em Dublin,
Joyce
conheceu
seu grande amor, Nora Barnacle, que
se tornou sua companhia inseparável. Joyce
tinha 22 anos; Nora, 20. A
data da
primeira vez que
fizeram sexo é
o dia 16
de junho de 1904, escolhida
para
a trama de “Ulisses”, sendo Nora sua inspiração para a personagem
Molly Bloom. Pouco
tempo depois, Joyce e Nora
fogem de
Dublin e saem
em uma longa viagem pelo continente. Passaram
alguns meses em Pula,
na
atual
Croácia, e no ano seguinte foram morar em Trieste, na Itália, onde
viveram até 1915, com
Joyce no
trabalho
ocasional como professor de inglês. Tiveram
dois filhos, registrados
com nomes italianos, Giorgio e Lucia,
e estiveram separados apenas por breves períodos em que Joyce viajou
a Dublin. As cartas de Joyce para Nora, cheias
de confissões eróticas, foram
escritas nestas ocasiões.
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Crônica
do Bloomsday:
acima, o casal Joyce e Nora ![]() |
O
primeiro livro de poemas de Joyce, “Música de Câmara”, foi
publicado em Londres em 1907. “Dublinenses”, seleção
de 15 contos com ambientação em Dublin, teve primeira edição em
1914, no início da Primeira Guerra, época em que começou a
escrever os rascunhos para
“Ulisses”.
A participação da Itália na guerra levou o
casal a fugir novamente, em 1915, de
Trieste para
várias
cidades da Suíça, até fixarem residência em Zurique, onde
permanecem
até 1919. Em
Zurique, Joyce publica
dois livros: “Retrato do artista quando jovem”, em 1916, e “Exílados”, em 1918.
"Retrato do artista quando jovem" pode ser definido como um romance de
formação (Bildungsroman), pontuado de referências autobiográficas, sobre o amadurecimento existencial do personagem que iria retornar em "Ulisses", Stephen
Dedalus, alter ego do autor, em sua trajetória da infância à
idade adulta. O segundo livro trazia uma peça de teatro, a única que escreveu – uma reflexão sobre a formação de um triângulo amoroso entre um artista de vanguarda, Richard Rowan, um jornalista, Robert Hand, e a mulher de Richard, Bertha, que vai relatando ao marido cada passo das investidas do rival. "Exilados" (também traduzida para o português como "Exílios") remete, entre simetrias e alusões, a “Os mortos”, último conto de “Dublinenses”, e também a “Ulisses”.

Fluxos de consciência
“Ulisses”, a obra magna de Joyce, foi editada e lançada por sua amiga Sylvia Beach na Shakespeare & Company em 2 de fevereiro de 1922, dia do aniversário de 40 anos do autor. Repleto de referências à obra de Homero e de alusões a Shakespeare, à Bíblia e a outros clássicos, o romance recria um dia na cidade de Dublin, aquele dia 16 de junho de 1904, narrando a vida cotidiana de Leopold Bloom, um vendedor de anúncios publicitários. Ao longo de 24 horas, que a narração divide em 18 episódios, Bloom é comparado ao herói grego Ulisses, experimentando encontros, desencontros e reflexões em fluxos de consciência que elevam o trivial do cotidiano a um nível épico. O enredo, que segue a estrutura da "Odisseia" de Homero, apresenta como personagens centrais Leopold Bloom, seu amigo Stephen Dedalus, jovem intelectual, e Molly Bloom, esposa de Leopold, que está envolvida em um caso extraconjugal.
Um dos motores
da narrativa é a interação entre Leopold e Stephen, que o
influencia em relação à arte e ao pensamento, sintetizando o
encontro de duas gerações e duas formas distintas de entender o
mundo. A
relação entre Leopold e Stephen, complexa e multifacetada, surge
como uma jornada de descoberta mútua e uma busca de sentido espiritual. Leopold
Bloom é um homem de meia-idade, enquanto Stephen é um jovem escritor e artista, ambos vivendo em Dublin. A narrativa os une
através de uma série de encontros fortuitos, com Bloom vendo em
Stephen um filho substituto e Stephen encontrando em Bloom um pai
ausente, em aproximações com a relação entre Odisseu e Telêmaco
na mitologia grega. Em contraponto, Molly Bloom traz um paralelo irônico
com a Penélope da “Odisseia”, a esposa fiel do Ulisses de
Homero.
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A
edição de
“Ulisses” em
inglês, considerada pelas autoridades oficiais uma obra
pornográfica, foi proibida na Inglaterra, nos Estados Unidos e nos
países anglo-saxônicos, o que contribuiu para Joyce se
tornar o assunto principal dos
círculos intelectuais e terminar reconhecido como o autor mais
célebre de sua época. O
livro se tornaria uma referência para toda a literatura
modernista, mas só teve autorização para publicação nos Estados Unidos em 1933. Na Inglaterra, só foi publicado em
1936. Na Irlanda, terra natal do autor, nunca foi oficialmente proibido, mas a censura alfandegária impediu sua ampla circulação até a década de 1960. O leitor brasileiro também teve que esperar durante décadas pela primeira edição do livro de James Joyce, o que só aconteceu em 1966, com a tradução feita por Antônio Houaiss para publicação pela Civilização Brasileira.
“Ulisses” teve mais duas edições no Brasil. Em 2005, Bernardina da Silveira
Pereira fez a segunda tradução, publicada pela Editora Objetiva. A
terceira tradução foi feita por Caetano Galindo e publicada em 2012
pela Companhia das Letras em parceria com a Penguin Classics, que teve revisão e nova edição em 2022. Há, também, uma nova edição com 18 tradutores, um para cada capítulo, anunciada pela Ateliê Editorial. Além
das traduções integrais, fragmentos de “Ulisses” foram
traduzidos por outros autores, entre eles Pagu, Erasmo Pilotto, Haroldo de Campos e Augusto de Campos. O livro de Joyce também mereceu análises
dos principais nomes da intelectualidade no Brasil desde o primeiro
momento. O primeiro foi Mário de Andrade, que escreveu sobre sua
leitura de “Ulisses” no artigo “Da fadiga intelectual”,
publicado na Revista do Brasil, em junho de 1924. Meses depois, em
dezembro, Gilberto Freyre publicou no Diário de Pernambuco um artigo
com o título “Ulisses”, no qual descreve o romance de James
Joyce como “reportagem taquigráfica de flagrantes mentais”.
Joyce estava aclamado como escritor quando morreu em Zurique, em 1941, prestes a completar 59 anos. Nora, desde então, passou a viver reclusa, na solidão, e também morreu em Zurique, em 1951. Para concluir, vale lembrar que depois de tantos textos e de tantas análises, de Borges e de tantos leitores, anônimos ou célebres, o melhor mapa de leitura de "Ulisses" talvez ainda seja o esquema elaborado pelo próprio Joyce para ajudar um amigo, o escritor e tradutor italiano Carlo Linati, no entendimento e na interpretação de sua obra monumental. O certo é que a literatura nunca mais seria a mesma depois daquele dia 16 de junho de 1904.
por
José Antônio Orlando.
Como citar:
ORLANDO, José Antônio. Crônica do Bloomsday. In: Blog Semióticas, 16 de junho de 2025. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2025/06/cronica-do-bloomsday.html (acesso em .../.../…).
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