Depois da existência da fotografia e do cinema, a reprodução desenhada ou pintada da verdade não interessa nem vai interessar a mais ninguém. –– Giacomo Balla (1871–1958). |
Boas
e más notícias trouxeram de volta à mídia o nome de Marc Ferrez
(1843-1923), um dos mais importantes fotógrafos brasileiros de todos
os tempos. As boas notícias: uma parte considerável da obra
completa de Ferrez foi adquirida pelo Instituto Moreira Salles (IMS),
que lançou no Brasil e na França um catálogo impecável reunindo
ensaios escritos por especialistas e uma coleção de 160 imagens
primorosas do final do século 19 e do começo do século 20.
Além
das fotografias reunidas na edição, há também um acervo de mais
de 300 imagens originais de Ferrez, a maioria belas panorâmicas em
negativos de grande formato (40cm X 110cm), que permanece em
exposição itinerante nas sedes do IMS e em outros espaços no
Brasil e no exterior. Parte do acervo também está aberta ao público no site que o IMS mantém na internet. Tanto o catálogo
impresso como a mostra itinerante e as imagens disponíveis no site
revelam a arte grandiosa de Ferrez, que criou no Brasil, antes de
qualquer outro pioneiro da fotografia, uma linguagem que se tornaria
universal e quase obrigatória em livros e reportagens de turismo e
no formato de cartões postais.
Também
há más notícias: o nome de Marc Ferrez frequentou as páginas
policiais por conta de um grande roubo no acervo da Biblioteca
Nacional, no Rio de Janeiro, registrado em 2005, quando desapareceram
cerca de 150 de suas fotografias mais raras e celebradas. Um crime
perfeito, que não deixou pistas, aparentemente realizado sob
orientação de especialistas: além das séries valiosas de Ferrez,
também furtaram fotografias e negativos originais de importantes e
pioneiros fotógrafos do século 19, entre eles August Stahl
(1828-1877), Guilherme Liebenau (1838-1900) e Benjamin Mulock
(1829-1863).
As
boas e as más notícias colocaram em evidência o gênio de Marc
Ferrez, nome fundamental da fotografia e do cinema brasileiro que, em
seus 80 anos de vida, registrou todo o Brasil em belas panorâmicas e
em retratos impressionantes, entre ilustres personalidades e anônimos
que encontrou em cada região do país. Filho de um casal de
escultores e gravadores franceses que vieram para o Brasil em 1816,
com a Missão Artística Francesa, Ferrez foi comparado aos grandes
pintores pelos intelectuais do Império e da primeira República, o
que era a mais nobre das distinções, numa época em que o trabalho
de fotografar estava longe de ser considerado uma arte.
Arauto da
Modernidade
O
livro, na verdade um belo catálogo fotográfico intitulado “O
Brasil de Marc Ferrez”, traz detalhada biografia, cronologia de
seus principais trabalhos e ensaios de Françoise Reynaud, curadora
do Museu Carnavalet, em Paris, e dos pesquisadores Maria Inez
Turazzi, Pedro Karp Vasquez, Laurent Gervereau, Frank Stephan Kohl,
Sérgio Burgi e Antônio Fernando De Franceschi, superintendente do
IMS. Com a publicação e a exposição itinerante do acervo, foi a
primeira vez que a obra de Marc Ferrez chegou ao público de forma
abrangente.
Nas
fotografias de Marc Ferrez, o que mais surpreende, junto com sua
demonstração de domínio da luz, é sua precisão na escolha do
ponto de vista para ressaltar no enquadramento a qualidade estética
das cenas registradas. São imagens comoventes, mesmo depois de todos
os avanços tecnológicos da maquinaria fotográfica. Como destaca De
Fraceschi em um dos ensaios do livro, abordando as singularidades da
obra de Ferrez e sua influência sobre pintores célebres que se
dedicaram às paisagens do Brasil:
“O
que interessa, cada vez mais, é compreender as relações passadas e
presentes entre a fotografia e a pintura, sobretudo agora, quando as
vanguardas contemporâneas parecem ter se desinteressado do mundo
objetivo, deixando para a fotografia a inteira responsabilidade de se
ocupar do real. Diante da obra monumental de Marc Ferrez, fica mais
fácil compreender porque se atribui às suas belas imagens,
produzidas na segunda metade do Oitocentos e nas primeiras décadas
do século 20, os primeiros registros sobre a entrada do Brasil na
Modernidade”.
Além
do privilégio da nomeação como primeiro (e único) Fotógrafo da
Marinha Imperial, Ferrez pôde percorrer o país como um dos
principais nomes da Comissão Geológica do Império, a partir de
1875, fotografando atividades econômicas, a construção das
principais estradas de ferro, as construções seculares da
arquitetura barroca, as minas de ouro e pedras preciosas em Minas
Gerais, as belas paisagens e os cenários desconhecidos das cidades,
das florestas e das fazendas, seus costumes e personagens dos salões,
das ruas, dos grotões.
Funcionário
dos mais destacados nos quadros do Segundo Império, primeiro entre
seus pares a visitar os confins do território nacional e
registrá-los em fotografias e documentos cartoriais, Marc Ferrez
também desenvolveu equipamentos próprios e introduziu experiências
técnicas como as fotografias coloridas, por ele batizadas de
autocromo, em aperfeiçoamento à invenção dos irmãos Lumière.
Observar a evolução temporal de sua arte equivale a uma leitura da
história do Brasil e da trajetória da fotografia, dos processos
químicos mais primitivos aos avanços da tecnologia das câmeras,
lentes e processos de revelação e reprodução.
Expedições do
Império
Filho
mais jovem do francês Zéphyrin Ferrez, contando com mais quatro
irmãs e um irmão, ficou órfão de pai e mãe no Rio de Janeiro aos
sete anos. Mandado para a França, onde estudou até a adolescência,
retornou ao Brasil em 1859 e passou a trabalhar na Casa
Leuzinger, uma papelaria e tipografia que tinha começado a trabalhar
com uma seção dedicada à fotografia. Na Casa Leuzinger, Ferrez
aprenderia as técnicas da arte de fotografar com o alemão Franz
Keller (1835-1890). Aos 21 anos, em 1865, investiu tudo que tinha
para abrir a firma Marc Ferrez & Cia., um estúdio fotográfico
que o colocou entre os principais profissionais da corte.
Em
1875, a trajetória de Ferrez mudou radicalmente quando ele recebeu
convite para integrar, como fotógrafo, a expedição chefiada pelo
geólogo canadense Charles Frederick Hartt (1840-1878) e financiada
pela Comissão Geológica do Império. Hartt faria história como
autor da primeira obra rigorosamente científica sobre a geografia do
Brasil – “Geology and Physical Geography of Brazil” (1870). A
Expedição Hartt percorreu várias regiões do país e acendeu em
Ferrez o gosto pela aventura de desbravar e registrar os confins de norte a sul do território nacional.
Depois
da experiência com a Expedição Hartt, Ferrez passa a investir
esforços nos estudos sobre geologia e geografia e, no ano de 1880,
decide encomendar na Europa a confecção de uma máquina fotográfica
por ele idealizada, para a execução de imagens panorâmicas em
grandes dimensões. Daí aos cargos oficiais de maior importância no
Império de Dom Pedro 2°, também entusiasta da fotografia, foi um
passo.
O
destaque como funcionário a serviço da nação continuaria nos
primeiros tempos da República. Reconhecido no Brasil e no exterior
como fotógrafo de paisagens, de obras públicas, de cartões postais
e de retratos de políticos e personalidades que se tornariam
célebres, entre eles os escritores Machado de Assis e Rui Barbosa,
Ferrez realizaria a partir de 1903 uma de suas séries mais
reproduzidas até a atualidade: a documentação completa das obras
no Rio de Janeiro de instalação da Avenida Central, hoje Avenida
Rio Branco, dos antigos edifícios às construções que foram
erguidas no começo do século 20.
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Qualidade estética e documento histórico
Marc
Ferrez obteve em sua época as mais importantes condecorações pela
excelência de seu trabalho fotográfico, tanto no Brasil como em
outros países, em diversas instituições internacionais, entre elas
os primeiros grandes prêmios em exposições nos EUA (Philadelfia,
1876) e na França (Paris, 1878), além de ter suas fotografias
exibidas com destaque na Exposição Universal de 1900, em Paris.
Várias de suas séries e álbuns também foram incorporadas desde o
final do século 19 aos acervos da Société Géographique,
sediada na França.
Como
se não bastasse, o nome de Marc Ferrez ainda está ligado ao
nascimento do cinema no Brasil: foi ele quem patrocinou a produção
dos primeiros filmes nacionais e instalou em 1907, no Rio de Janeiro,
o Cine Pathé, primeira sala de exibição permanente de espetáculos
cinematográficos. Ainda nesse ano, a Casa Marc Ferrez &
Filhos tomaria para si a distribuição da grande maioria dos
filmes exibidos nas diversas salas de cinema que surgiram no Rio de
Janeiro.
A
extraordinária qualidade estética, formal e documental da obra de
Marc Ferrez na produção de retratos de personalidades, além das
panorâmicas, tanto as urbanas quanto a paisagem natural que emoldura
e envolve seus enquadramentos, foi preservada intacta por seus
familiares no último século. Depois da morte do fotógrafo
patriarca, o guardião de sua obra completa foi Gilberto Ferrez
(1908-2000), neto de Marc e um dos mais destacados historiadores da
iconografia brasileira e da obra dos viajantes estrangeiros no
decorrer da história do Brasil.
Desde
a morte de Gilberto, a guarda e a preservação dos arquivos dos
Ferrez estão a cargo de sua filha, Helena Ferrez, que mantém há
décadas a catalogação dos documentos da família. Os catálogos
preservados contam com um extenso patrimônio em suportes variados,
no qual estão incluídos desde as relíquias de Zéphyrin, pai de
Marc e tataravô de Helena, às clássicas séries de ensaios em
panorâmicas registradas em daguerreótipos e fotografias por Marc
Ferrez.
Aos
cuidados de Helena Ferrez também estão os acervos reunidos durante
décadas por Gilberto Ferrez e todos os arquivos e filmes em negativo
do filho de Marc e pai de Gilberto, Júlio Ferrez (1881-1945) –
pioneiro que trouxe os primeiros equipamentos de cinema para o Brasil
e realizou as primeiras filmagens em território brasileiro. Os
catálogos dos Ferrez contam ainda com séries de correspondências,
muitos álbuns da intimidade da família, cadernos de anotações das
várias gerações, peças de artes plásticas e impressos em geral.
A
maior parte deste imenso acervo, entretanto, não faz parte do
material reunido no livro e na mostra “O Brasil de Marc Ferrez”.
As imagens que constam do livro e da mostra foram selecionadas da
coleção adquirida pelo IMS em 1998 – uma coleção que totaliza
cerca de 5.500 fotografias diferentes, produzidas no século 19 e
começo do século 20, incluindo mais de 4 mil negativos originais em superfícies de vidro.
Importante
como resgate da importância capital do trabalho de Marc Ferrez, o
livro, assim como a mostra e a manutenção do acervo pelo IMS,
também consolidam e estendem para além do círculo de especialistas
um trabalho que é um dos mais importantes legados visuais do Segundo
Império e da República Velha. Compreendida no período que vai de
1865 a 1918, a perícia técnica e a grande arte de Marc Ferrez se
mantêm, até os dias de hoje, como um dos registros fundamentais da
fotografia no Brasil e no mundo.
por José
Antônio Orlando.
Como
citar:
ORLANDO,
José Antônio. Relíquias de Marc Ferrez. In: Blog
Semióticas,
7 de junho de 2012. Disponível no link
http://semioticas1.blogspot.com/2012/06/reliquias-de-marc-ferrez.html
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